Lua Azul escrita por Mr Ferazza


Capítulo 2
I. COINCIDÊNCIAS




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I. COINCIDÊNCIAS

JANE.

— Irmã? — chamou Alec que naquele momento estava sentado ao meu lado, em um pequeno tronco tombado, abaixo da sombra de uma árvore.

                — Sim? — eu disse.

                — Não... Não era nada. — ele disse, mas pareciam palavras deslocadas, porque ele parecia muito pensativo; mais do que de costume. E, se havia algo que Alec gostava de fazer, era ficar pensando sobre quase tudo o que ele conhecia. Como se fosse uma miniatura de filósofo, ele gastava quase todo seu tempo refletindo sobre questões diversas.

                Eu tinha certeza que qualquer coisa poderia estar passando em sua mente, exceto “nada”; na verdade, Alec era um garoto reservado e raramente falava algo com alguém... A não ser que esse alguém fosse eu. Eu o conhecia mais do que nossa mãe, mais do que papai.

                Eu o mirei por algum tempo, imaginando que ele falaria o que havia em sua cabeça naquele momento.

                Ele nada disse.

                — Alec. — eu disse — Eu sei que você quer me dizer alguma coisa... Ande, desembuche logo... Seja o que for eu sei que deve ser importante... — minha voz minguou até que eu ficasse em silêncio; essa era outra característica dele... Alec nunca falava nada de incoerente, só abria a boca para expor suas ideias quando tinha certeza que sua teoria estava certa.

                E então, dessa vez, ele me surpreendeu um pouco, porque ele começou sua frase com as duas palavras que eu jamais sonhara que ele diria...

                — Eu acho... — ele disse, e depois ficou calado por mais algum tempo, pensando de novo. Então ele mudou de ideia e começou a falar de novo, algo diferente do que queria dizer. — Você acredita que papai mentiria para nós sobre algo que nos interessa? — ele perguntou. Sua interrogação me confundiu... Não era a linha de pensamento que eu esperava dele; Na verdade, Alec nunca pensava em coisas reais e concretas — Ele era mais ligado à fantasia e ao mundo de seus sonhos, do que na vida que tínhamos aqui: Em um lugar que existia de verdade.

                — Porque está me perguntando isso? — questionei-o; eu não tinha a menor ideia de porque ele me perguntava essas coisas.

                Ele deu de ombros, mas eu sabia que ele responderia à pergunta; Alec não era dado a atitudes mal educadas. Eu esperei por alguns segundos.

Então Alec suspirou pesadamente e ergueu as mãos, num gesto de quem se rende.

— Por favor, apenas responda... — ele disse, e se calou.

— Não. — eu disse simplesmente, mas depois complementei. — Você disse bem... Se fosse algo de nosso interesse, não acredito que papai pudesse, ou mesmo quisesse mentir para nós. — ele me olhou por algum tempo, e depois assentiu visivelmente satisfeito com a resposta sincera.

— Certo... Então, agora o Senhor Mistério vai me dizer o que está pensando, ou eu terei de adivinhar? — perguntei com sarcasmo.

— Você bem que podia tentar... — ele disse, se divertindo.

— Ah, cale a boca! — eu disse, e lhe dei um tapinha no ombro.

                Ele recuperou a expressão séria, e depois disse:

                — Estava pensando no que Noah sempre nos diz... Você sabe. A história do vovô. — Ele deixou sua voz se perder no ar quente do verão, e eu o fitei por algum tempo.

                Eu não conseguia acreditar que ele acreditava que Noah acreditava sobre algo que diziam de nosso avô... Eu não acreditava nisso; nem de longe. Para mim, o que Noah dizia eram delírios de um velhote caduco — que, por sinal, já passara do tempo de estar comendo a grama pela raiz. Dizem que vaso ruim não quebra... Provavelmente era isso.

                — Espere aí... — eu disse, mesmo não o tendo interrompido. — Não me diga que você acredita nas histórias que aquele velhote mentiroso inventa! — eu disse, minha voz subindo algumas oitavas no final.

                Ele me olhou pensativo.

                — Você não acredita? — perguntou ele, sem responder à minha pergunta.

                — É óbvio que não... Aquele velho pode muito bem estar ouvindo coisas por aí. Ele só diz isso porque não tem nada para fazer... — Meu comentário perdeu-se no silêncio quando vi que Alec não estava concordando.

                Eu o olhei de novo interrogativamente, até que ele resolveu responder a pergunta que evitara com outra, há pouco.

                — Na verdade eu não sei se acredito ou não... — ele disse. — Pensando bem, é muita loucura junta para que acreditemos em qualquer aspecto dessa história... — ele se calou repentinamente. No entanto, eu podia sentir que, se ele não tivesse se calado, viria um porém.

                — Mas... — instiguei, e ele ficou calado, como se eu não o tivesse convidado a falar mais. — Mas... — eu disse de novo, e ele suspirou pesadamente, se rendendo.

                — Mas, sinceramente, eu não vejo porque Noah insistiria tanto nisso, se não houvesse verdade alguma na história... E você sabe que Noah nunca foi de inventar histórias desse jeito. Na verdade, ele nunca fez questão de ouvir as outras. — ele disse, e sua lógica parecia categórica.

                — Sim, pode ser. — eu disse concordando com ele. — Mas você sabe que Noah não conhecia nosso avô para dizer que ele era um... — engoli em seco para conseguir dizer a palavra... Não que me assustasse, mas me parecia muito idiota, e eu tinha de ganhar força para dizer algo tão bobo. — Mago!

                Ele me fitou com os olhos distantes, como sempre... E eu não sabia se ele estava pensando no que eu dissera, ou se estava pensando no que ele diria.

                Como Alec não disse nada, eu continuei.

                — Você sabe... Vovô viveu um pouco antes de Noah nascer. E morou a maior parte de sua vida na França; chegou aqui e, logo depois, morreu. Noah não teria como saber alguma coisa sobre ele. — eu disse, e meu argumento era incontestável. O que me deixou surpresa, porque era exatamente por isso que Alec pensava tanto: Para que quando falasse, seu argumento não pudesse ser rebatido.

                Ele assentiu, admitindo que minha lógica era boa.

                — Certo. Mas Noah poderia ter ouvido a história... Alguém pode ter dito a ele. As pessoas se comunicam. — ele disse.

                — Sim, e é exatamente por isso que eu acredito que isso não é possível... As pessoas se comunicam e mentem. Mesmo que alguém tivesse dito a ele, era bem provável que fosse mentira. Você e eu sabemos que essas coisas não existem. — eu falei, tentando fazê-lo ver que não havia nada de verdade no que Noah contava.

                — Pode ser... Mas Noah falou que vovô era um mago! Ele disse que vovô sempre conseguia tudo o que queria... E que coisas aconteciam a quem era desagradável com ele, ou com algum parente... Não me diga que essas coisas são inventadas, porque você e eu sabemos muito bem que... Bem... Você se lembra daquela história da Anne e da mãe dela...

                — PARE COM ISSO! — eu explodi, gritando com ele. — Não se atreva a falar dessas histórias em voz alta; alguém pode ouvi-lo! — ele me fitou meio assustado, mas depois revirou os olhos, dando pouco crédito a meu ataque de histeria.

                O que ele tinha na cabeça? Ele com certeza fazia aquilo somente para provar que estava certo.

                O episódio de Anne e de sua mãe não passavam de coincidências horrendas. Algo que merecia ser esquecido. Para sempre. Mas Alec não esquecia algo com tanta facilidade assim. Tampouco eu... No entanto, eu fazia questão de subjugar essa história no amontoado de lembranças em minha mente. Já Alec... Fazia o possível para obter mais informações sobre o que eu chamava de coincidências. Porque eram exatamente isso, e não havia nada no mundo que me fizesse duvidar disso. — Simplesmente coincidências infelizes.

                Porque ele não conseguia aceitar isso da mesma forma que eu?

                Quando parara para pensar sobre o que aconteceu com Anne e a torta de maçã da morte, eu aceitara de bom grado que aquilo não passara de um acidente. Lamentável. Um lamentável acidente.

                Alec, Anne e eu brincávamos de esconde-esconde. Então, Alec vira porque Anne sempre conseguia nos achar; ela espiava sempre. Ele me contou e eu quisera tirar satisfações, como se aquilo tudo fosse muito importante.

                “Você diz isso porque seu irmãozinho idiota nunca consegue encontrar ninguém” ela dissera.

                “Se você não espiasse, também não conseguiria nos encontrar” eu dissera a ela.

                “Ah, cale a boca sua nanica com cabelo de feno.” Ela dissera. E foi o que bastou.

                E então eu explodira num ataque de gritos, chutes e ofensas. E para piorar as coisas, ela somente ria do que eu falava, o que fazia com que minha raiva queimasse ainda mais.

                “Eu quero ver se você vai rir quando um raio atingir sua cabeça imunda e parti-la em duas. Quando o fogo queimar seus miolos, se é que você tem algum, vamos ver que vai rir.” Eu dissera, e com essa, ela se afastara, ainda rindo, andando de costas, de frente para nós. Por um segundo, eu considerara como seria bom se ela tropeçasse em uma pedra e caísse com a cabeça em outra.

                Alguns dias depois, ficamos sabendo que Anne tinha saído para colher maçãs, para fazer uma torta... Até aí, nada de mais. Mas o campo aberto em que ficava a única árvore de maçãs que tínhamos, era longe e não havia jeito de chegar lá, se não contornando a montanha... — Sim, tudo muitíssimo acessível. — Bem, foi nos dito que Anne e seu pai enfrentaram uma tempestade no caminho. Anne ia às costas do homem, mais alta do que muita coisa... Então um raio caíra em sua cabeça, abrindo um enorme buraco em seu crânio. Seu pai só se dera conta de que havia algo de errado quando sentiu o cheiro do cérebro de Anne pegando fogo. Ele desmaiara imediatamente, batendo com a cabeça numa pedra... Depois disso, ficou inconsciente. Até hoje.

                Voltei ao presente, e Alec estava me olhando interrogativamente.

                — Você não acha que essa história é casualidade demais? — ele perguntou baixinho, quase cochichando.

                — Não , eu não acho. Coincidências acontecem o tempo todo. E não fale mais nisso. — eu disse, virando a cara para o outro lado.

                — Você sabe que está mentindo... — ele disse para mim. Como era possível que ele soubesse assim tão rápido!? Na verdade, nós não costumávamos mentir um para o outro, então era improvável que algum de nós soubesse quando isso acontecia.

                — Ah, estou, é? — perguntei, me fingindo de desentendida. — Posso saber como você chegou a essa conclusão tão rápido?

                — O primeiro de tudo... Quem mente evita olhar a outra pessoa nos olhos, e você desviou o rosto. — ele disse, e eu me senti erubescer — e segundo... Você repetiu parte de minha pergunta em sua resposta... E esse é o sinal mais claro de mentira: Eu perguntei se “você acha que essa história não era casualidade demais”, e você disse “Não. Eu não acho”. Viu só? Não tente mentir para mim, irmã...

                Eu o mirei. Verdadeiramente irritada. Porque eu não queria admitir que achasse aqueles fatos tão estranho quanto ele.

                Eu suspirei e lhe lancei um olhar de verdadeira frustração.

                — Tudo bem, tudo bem! — eu disse. — Você tem razão... Eu verdadeiramente acredito que esses acontecimentos são coincidência demais... Mas isso não muda o fato de serem coincidências, Alec; o que esperava que eu dissesse? Você pode até querer pensar mais sobre o assunto... Mas eu quero que ele seja esquecido. Não estou a fim de ficar pensando sobre coisas que acontecem casualmente cada vez que eu digo algo... Você sabe tão bem quanto eu que o caso de Anne foi uma enorme casualidade, então não tem porque você ficar pensando nisso... — meu pequeno discurso perdeu-se no silêncio, enquanto ele absorvia o que eu dizia.

                Ele assentiu pensativamente, e depois pareceu se dar conta de algo que eu dissera; algo que eu mesma não percebera... E eu não tinha ideia do que era.

                — Espere um momento — ele disse, mais para si mesmo do que para mim. — Você sabe que o caso de Anne não foi o único... Sendo assim, não foi só uma coincidência. São coincidências, Jane. E eu não espero que você entenda o quanto isso é improvável. — ele disse, e eu não gostei disso.

                — O que está querendo dizer? — eu perguntei quase exasperada. — Por acaso, você quer dizer que sou obtusa demais para entender seu ponto de vista?

                Ele assentiu de novo.

                — Jane, nós dois sabemos que é exatamente isso; você é obtusa demais para entender o que eu estou dizendo. Obtusa ou teimosa... — seu comentário se perdeu quando eu lhe dei, de leve, um soco no ombro.

                — Não seja idiota, irmãozinho — eu acariciei a palavra com todo meu sarcasmo. — Eu entendo perfeitamente seu ponto de vista... Só não concordo com ele. Não acredito que sejamos netos de um... Mago. Nós dois sabemos que essas coisas não existem.

                — Não estou lhe dizendo que nós somos. Só estou querendo entender o que todos dizem. O que Noah passa o dia martelando em nossos ouvidos. E, você há de concordar comigo, essas coincidências são demais... Sim, porque você se lembra do recorrente “confronto” com a mãe de Anne.

                Eu sacudi a cabeça rapidamente.

                — Eu já estava quase esquecendo esse assunto... Muito obrigada por me lembrar. — eu disse asperamente, e, quase que automaticamente, as imagens desse dia horrível vieram à minha mente, e isso não era algo agradável de se recordar, sobre qualquer tipo de circunstância... De longe, era preferível que algo me tivesse causado um dano cerebral permanente, só para que eu fosse impedida de me lembrar.

                Depois da morte de Anne, sua mãe ficara sabendo do que eu dissera a ela — ainda que de algum modo que eu não tivesse conhecimento, mas isso era discutível, pois eu gritara as palavras para Anne, então muitas pessoas deviam ter ouvido.  — e saíra correndo, no meio da rua, gritando feito uma lunática, com um machado nas mãos, atrás de Alec e de mim.

                “Vocês vão pagar pelo que fizeram à minha Anne, feiticeiros malditos.” Ela gritava enquanto corria atrás de nós.

                Alec e eu corríamos até os músculos das pernas protestarem e pedirem piedade, para que parássemos, mas isso não era possível; se diminuíssemos o passo agora, poderia ser o último que íamos dar, porque a mãe de Anne estava muito perto, e não havia arbustos ou lugares para usar de esconderijo... Enquanto corríamos em círculos — tentando deixa-la tonta —, eu considerava a possibilidade de entrar na floresta e me esconder por lá até que a velha lunática fosse para casa.

                A mulher histérica parara alguns segundos para recuperar o fôlego, de costas para nós, e eu puxei Alec floresta adento, a que ninguém se atrevia a entrar — eu só podia esperar que a mulher ficasse com medo o suficiente para recuar e não entrar lá, para procurar por nós.

                Esperança inútil; a mulher recuperou o fôlego a tempo suficiente para ouvir os gravetos sendo esmagados por nossos pés, e entrou na floresta de coníferas atrás de nós. Eu puxei Alec, de novo, para trás de uma sequoia grande e espessa o suficiente para nos escondermos os dois, sem que ela percebesse... Mas é claro que não seria tão fácil; Alec tropeçou em uma raiz que estava exposta na superfície e caiu, revelando nosso esconderijo.

E nós estávamos presos; não havia mais saída, porque, de um lado, ficava a face de um enorme pedregulho — não havia saída —, e, do outro, a lunática corria em nossa direção, brandindo o machado pesado para nós.

Ah, meu Deus” eu murmurei baixinho, mais para mim mesma do que para Alec, que estava tão assustado que quicava no mesmo lugar, por causa de sua agitação. “O que vamos fazer agora? Bem que um acidentezinho bem grave poderia ser útil agora...”. Eu murmurei as palavras, sabendo que seriam as minhas últimas.

A louca já estava perto quando ergueu o machado para deferir seu golpe final, a lâmina brilhando sob a luz forte — porém, dentro da floresta, agora fraca. — do meio dia. E então, antes que eu pudesse pensar em alguma outra coisa um forte clarão irrompeu por entre as árvores densas, e acertou o machado da mãe de Anne bem na lâmina afiada. Depois disso, o fogo começou a se alastrar pela madeira lustrosa do cabo, e o queimou em uma questão de milésimos de segundo — algo tão sinistro que eu não consegui explicar como aconteceu. —. Então, a mãe de Anne sentiu o fogo em suas mãos, e largou o que restava do machado imediatamente, a lâmina super afiada e pegando fogo, caindo direto exatamente na metade de sua cabeça, abrindo uma grande fissura no meio do crânio. Depois disso, foi quase impossível de suportar o cheiro de miolos queimados. Enquanto o sangue jorrava do enorme corte na cabeça da mãe de Anne, Alec e eu corríamos assustados, em direção à nossa casa, deixando para trás a floresta e uma mulher que só existiria por mais alguns segundos, se é que ela já não havia morrido.

Da mulher na floresta, não houve o mínimo murmúrio de dor ou agonia, então devia ser só um corpo sem vida, que jazia no chão úmido da floresta, sem consciência.

Alec me arrancou de minhas recordações com um pigarro discreto, me fazendo voltar ao presente; ele devia estar estranhando minha atitude, porque eu não costumava ficar pensativa — isso era coisa de meu irmão misterioso.

Ele fez isso com um bom motivo; o Sol já se punha atrás da montanha, e o que restara era a luz evanescente do crepúsculo da tarde morna do final da primavera.

— É melhor irmos para casa antes que papai e mamãe fiquem preocupados. — Alec me disse, eu assenti, concordando com ele.

Nos levantamos do tronco em que estávamos sentados, e andamos em direção à casa, onde, talvez, uma rodada de perguntas estariam esperando papai, porque eu sabia que Alec não desistiria tão fácil assim. Por mim, eu já teria desistido desses questionamentos há muito tempo, mas Alec era persistente, e nunca desistia de algo que queria... E ele estava mais do que disposto a saber tudo sobre essa história em particular. E eu tinha a forte impressão de que ele, mais cedo ou mais tarde, conseguiria o que queria. E não gostaria do que ouviria. — não que eu soubesse, mas tinha certeza de que, se houvesse uma verdade, eu não gostaria de ouvi-la.

Que fosse! Já que eu não conseguira demovê-lo nem um centímetro de sua decisão.

Quando chegamos a casa, papai esperava por nós, encostado na soleira da porta, ele tinha uma expressão muito mais branda do que eu pensava que teria, tendo eu e Alec chegado em casa a essa hora. Nós chegamos perto o suficiente, e papai de um passo lento para frente, e eu sabia o que ele ia perguntar antes que o fizesse.

Où étiez-vous? — perguntou ele em francês, o que sempre fazia quando estava estressado ou preocupado demais, e se esquecia de falar em inglês. — Sa mère et moi étions très inquiets. — ele complementou o que dissera. Mas isso não era necessário; Em nosso vilarejo, quase todos queriam nossa cabeça, porque achavam que éramos feiticeiros. A situação só se agravara depois desses incidentes com Anne e sua mãe... Isso não os fazia nossos maiores fãs.

Je sais. Il est très dangereux. — eu disse, e eu sabia, também, que não era um exagero. Afinal de contas, aquilo era bastante perigoso. Perigoso demais para que alguém normal se atrevesse a sair de casa (sendo dia ou noite), mas Alec e eu éramos teimosos, e o perigo não nos importava tanto. — Désolé, papa. — eu me desculpei. — Mas, por favor, entenda que nós não faríamos nada arriscado.

Papai me fitou severamente, e depois disse:

 — Andar por aí, no caso de vocês dois, já é um enorme risco, Jane... E não me diga que não é, porque esse povo ignorante tem quase certeza de que vocês são alguma coisa. Cette bande d'idiots. — ele praguejou em francês. — Não tente fazê-los aceitar a verdade, querida. Eles têm preconceitos demais para ver algo como realmente é. — Ele falou para mim, as parecia estar falando consigo mesmo.

Eu assenti em resposta ao seu pedido. Mas aquela nunca fora minha intensão. Fazer esse povo de ignorantes ver a verdade não é a tarefa mais fácil do mundo, ainda mais para duas crianças.

— Muito bem — ele disse, em um tom novo, claramente mudando de assunto. — o jantar está quase pronto! Lavem as mãos. — ele disse, batendo palmas para nos apressar.

E depois papai suspirou, porque sabia que o jantar lhe reservava outra rodada inevitável de perguntas.

O jantar foi evento muito mais silencioso do que eu pensava que seria — Alec não fez muitas perguntas sobre vovô; só o que ele disse sobre isso foi que estava ficando com mais medo das pessoas, que já estavam começando a olhar com a cara feia para nós. — o que era inevitável, porque, com desconfianças ou não, as pessoas não era nenhuma beleza.

Depois do jantar, Alec e eu fomos dormir; ele estava pensativo, como sempre, mas havia, em sua expressão, algo mais do que sua simples deliberação costumeira. Desconfiança, talvez. Mas eu teria de esperar para confirmar esta teoria, porque ele não falaria nada agora... Só quando tivesse um plano ou uma explicação bem definida a dar — eu preferia a segunda opção; os planos de Alec eram perigosos demais, além de serem ousados; mas eram mais inteligentes do que qualquer outra coisa.

Eu me cobri e fechai os olhos, esperando que o torpor do sono tomasse conta de meus membros. Mas eu estava preocupada demais com o que se passava na cabeça de meu irmãozinho para conseguir relaxar verdadeiramente.

Eu suspirei levemente, e depois disse.

— Vai me dizer no que está pensando? — eu perguntei, virando-me para ele. O quarto estava escuro. Só o que o iluminava — ainda que debilmente — era uma vela que fora deixada por mamãe no canto mais distante do cômodo.

Alec se virou para mim também, seu rosto era uma leve deformação contra a luz fraca da vela que iria se pagar a qualquer momento. — só o que restava dela era o pavio e meio centímetro de parafina. — Seus cabelos, ainda que fossem castanhos claros, da cor dos meus, eram parte da escuridão.

— Ainda não sei. — ele me disse. — Há muito que pensar. Primeiro. Você sabe... Eu tenho de tentar preparar a melhor forma de fazer papai falar sobre como vovô morreu... — sua declaração se perdeu no silêncio do quarto.

Eu suspirei e revirei os olhos, mesmo que Alec não pudesse ver.

— O que foi? — ele perguntou, exasperado.

— Você sabe que papai não pode contar como vovô morreu; ele se foi antes que papai pudesse se lembrar de seu próprio nome... Não sei se vai adiantar muita coisa. — eu falei, e pude sentir que ele concordava comigo, porque não replicou o que eu disse.

— Então você acredita que ele não saiba? — ele perguntou, com um toque de ironia, como se ele não acreditasse nisso.

Eu o fuzilei com os olhos, ainda que não soubesse exatamente onde ele estava.

— É claro que sim. — eu disse, e minha voz era carregada de irritação. — Você não?

— Ainda não sei... É que esses fatos estão muito vagos para que eu possa acreditar neles. A história que papai contou me parece... — ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras que iria usar. Não como se não as tivesse, no sentido de vocabulário limitado, mas como se escolhesse palavras menos agressivas para dizer o que queria, mas também não como um eufemismo. — Um pouco incompleta. — Ele disse. E aí estava; era como se a palavra incompleta, que ele destacara em seu tom de voz, originalmente seria um adjetivo mais agressivo, como mentirosa ou falsa.

Fingi que não percebi sua cautela, e continuei.

— Mas não há nada de incompleto — eu também destaquei a palavra — nessa história. Tenho certeza que papai contou o que ouviu de vovó. Não é uma coisa de outro mundo que eles tenham vindo da França e vovô tenha morrido aqui. Na verdade, é perfeitamente natural que ele tenha se perdido na floresta, caído do rio e morrido e hipotermia, ou afogado... — eu lhe disse.

— Certo, eu também acho isso — ele me disse.

— E então?

— E então o que?

— Porque razão você acredita que a história seja incompleta? — eu perguntei, e, depois de ele ter concordado, eu não tinha mesmo ideia de porque ele acreditava que a história era incompleta.

— Você não acha que há uma enorme lacuna nessa história? Em primeiro lugar, porque vovô entrou lá? E, em segundo, como é que ele ficou ofuscado pelo Sol poente, se o Sol de põe atrás da montanha, no oeste? E ele havia entrado na floresta pelo caminho do vilarejo, que fica de frente para o leste. Como você pode ver Jane, há enormes furos nessa história.

Eu não disse nada, só o que pude fazer foi suspirar. Resignada. Alec tinha tanta convicção em suas palavras, que era difícil duvidar do que ele dizia.

Eu sempre ouvira falar na história sobre como vovô morrera: Um terrível acidente. Era o que todos diziam, mas essa explicação era tremendamente vaga, e eu nunca estivera satisfeita com ela. Alec tampouco. Fora ele que pressionara papai a contar, com detalhes, sobre como vovô morrera.

Lembro-me de papai ter começado a se agitar na cadeira da cozinha, passando a mão na testa o tempo todo e limpando o suor que porejava nela.

O que posso cantar a vocês, crianças, é somente o que sua avó me contou, mais ou menos quando eu tinha sua idade” ele dissera, mirando suas mãos, que se mexiam como se fossem um músculo involuntário. “Ela me contava que, primeiramente, papai, ela e eu viemos da França, quando eu ainda era um recém-nascido. Na verdade, depois de chegarmos aqui, não foi um tempo muito próspero para nós, e então meu pai tinha de ir longe para conseguir sementes para plantar alguma coisa, afim de que não morrêssemos de fome. Acho que ele foi acusado de ter roubado... Não sei o que disseram que ele roubou, mas, de qualquer forma, não é verdade... E saíram atrás dele, então, num fim de tarde, ele entrou na floresta para se esconder. O Sol que vinha de trás das árvores foi o bastante para ofuscá-lo; ele não viu e nem ouviu o rio, e caiu nas águas geladas do início de março, e então se foi. Nunca o encontramos, mas acredita-se que ele foi levado para o mar, juntamente com a água do rio.”

Quando acabei de me lembrar do que papai dissera exatamente naquela noite, ouvi a respiração regular e demasiadamente estável de Alec, o que indicava que ele já dormia.

Em vez de tentar dormir também, eu fiquei acordada, pensando com mais clareza no que relembrara; em muitas coisas Alec tinha razão. Papai, ainda que de um modo inconcebível — pelo menos para mim —, mentira sobre a história. Porque não havia modo de ele ter, levando em conta sua tensão, simplesmente tivesse recebido a informação errada. — esse sempre foi o meu maior argumento para rebater o que Alec me dizia (sobre papai estar mentindo). Na verdade, era o que eu pensava, porque não era um hábito meu ficar questionando a palavra de nossos pais. Na verdade, Alec também não era desse jeito, mas se agarrava às suas intuições muito mais facilmente do que eu às minhas.

E então, agora, pensando melhor nas coisas, eu tinha a convicção de alguns fatos que, antes, não estavam esclarecidos: Em primeiro lugar, era improvável que vovô estivesse em fuga por ter pegado emprestado algumas sementes. Ninguém faria isso. Não em uma terra em que, em algum momento, todos seriam obrigados a conviver em colaboração mútua. Sim, porque o inverno castigava toda a população do vilarejo, fustigava as árvores e matava algumas pessoas de hipotermia. Esse era nosso castigo anual — era raro o inverno em que toda a população permanecia incólume. —, como se já não bastassem todos os outros. E então, para que não morrêssemos de fome, nós reuníamos toda a comida que sobrava e dividíamos igualmente entre todos os habitantes. Ninguém ficava com fome. Jamais. E as histórias desse lugar vinham desde antes da queda do império romano... Sendo assim, não havia como essa regra ser instaurada depois da morte de vovô.

Meu raciocínio começava a fazer sentido. Minha linha de pensamento estava certa, e eu sabia que, derrubando somente a hipótese de vovô estar fugindo, toda a história já não fazia sentido. E a hipótese já caíra por terra...

Sim, a história era falsa. Disso eu tinha certeza. E também tinha certeza de que Alec tinha certeza que era falsa. E quando o dia clareasse, Alec acordaria, veria minha expressão e teria certeza que eu tinha certeza de que ele estava certo em ter certeza de que a história era  falsa.

Meus pensamentos começaram a ficar fora de foco, desorganizados e sem nexo algum.

Fechei meus olhos e tentei não pensar no que sabia, ou no que eu não sabia... Isso era irrelevante. Fiquei na tentativa de deixar minha mente vazia de pensamentos, esperando pela sonolência que demoraria um pouco para chegar à minha mente, que agora trabalhava rapidamente, misturando fantasias e realidades, verdades e mentiras, tentando sonhar com coisas irreais.

Mentiras agradáveis. Mas que pelo menos, eu sabia não eram verdade.


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