Lua Azul escrita por Mr Ferazza


Capítulo 10
IX. PESADELOS


Notas iniciais do capítulo

E aqui temos mais um pesadelo de Alec e, com ele, mais alguns mistérios.



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IX. PESADELOS

ALEC

Naquela noite eu tive o sonho mais estranho que alguém, em qualquer lugar do universo inteiro, poderia ter. Normalmente, as pessoas “normais” sonham com algo que querem muito ter ou sentir; sonham com alguma situação estressante pela qual passaram ao longo do dia e podem, inclusive, sonhar com duas pessoas em uma campina, conversando sobre como o vampiro tem vontade de matar — ao mesmo tempo em que ama — a humana com quem ele está conversando.

                Tudo isso pode parecer um sonho perfeitamente normal; pessoas criativas sonham coisas vívidas e sem sentido. Pessoas normais sonham com situações normais em que elas estão fazendo coisas normais e realizando o desejo mais profundo de seu subconsciente. E existem pessoas como eu, que sonham consigo mesmas, fazendo coisas idiotas e se comportando de uma forma completamente diferente de seu comportamento habitual.

Isso poderia não parecer algo aterrorizante... Se eu tivesse a certeza absoluta de que a pessoa com quem eu sonhava era mesmo eu. Não era só o comportamento completamente diferente do meu que me dizia que aquela pessoa não era eu. A aparência também podia dizer muito.

Meu sonho começou de uma forma bem normal. Na verdade, chagava ser chato de tão normal que aquela situação me parecia. Um dos bisnetos de Noah nos dava uma bronca a passava, novamente, o sermão sobre sermos aberrações e todo aquele assunto que eu investigava; mesmo no sonho, eu sabia que eu investigava aquele mistério perturbador.

O bisneto de Noah, que era, de uma forma que deveria ser considerada um ultraje, parecido demais com ele, sorriu daquele mesmo jeito desprezível que seu bisavô costumava fazer. Se eu estivesse agindo de mesmo modo que eu agia de verdade, eu teria tido náuseas ao ver seus incisivos cariados e cheios de pedaços de comida parcialmente mastigados. Os longos anos que o homem passara sem ser apresentado ao banho ficavam evidentes quando ele abria a boca e o cheiro de comida pútrida se infiltrava por minhas narinas.

Em vez de controlar a náusea que certamente estaria subindo por meu estômago, se a situação fosse algo normal, eu ri. O cara com a os dentes sujos sorriu de novo e depois arqueou as sobrancelhas. O homem que estava diante de nós não era tão jovem; tinha, talvez, uns 30 anos. Sim, Noah era velho o bastante para ter um bisneto de trinta anos.

— Posso saber qual é a graça, garoto imundo? — ele perguntou, o que eu achei que fosse meio que hipocrisia demais. Quem ele pensava que era para chamar alguém (quem quer que fosse) de imundo?

Eu também arqueei uma sobrancelha para ele, deixando evidentes meus pensamentos com relação às palavras dele.

— Não é nada — disse o garoto que parecia comigo e agia, também, de uma forma completamente diferente. — Só não havia ficado sabendo que inventaram um jeito de guardar comida para o inverno — eu disse, apontando com a cabeça para seus dentes cariados e cheios de vestígios se sua última refeição.

O cara também tinha um bom senso de humor, para a frustração do garoto que se parecia comigo — é claro que eu podia sentir o que ele sentia; era como se eu estivesse dentro dele. Podia sentir perfeitamente a frustração dele e, também, sua fúria depois que o sujo/neto de Noah sorriu com só um incisivo superior (metade de um, mais metade do outro; 0,5+0,5 = 1).

— Sim... Ele respondeu. Se estiver disposto a aceitar um pouco, eu posso dividir com você, seu morto de fome — ele disse e, por algum motivo inconcebível para o Alec que observava de fora, o Alec que agia de forma totalmente antagônica ao que me parecia certo, riu e depois proferiu uma expressão que criança nenhuma deveria ouvir. O Alec sociopata disse mais alguns palavrões e depois exibiu o dedo médio para o bisneto de Noah.

— Acho mais sensato que você vá para a sua casa, garoto nojento. E leva a escória de sua irmã junto. — ele disse e apontou para Jane, que continuava cala em algum lugar atrás de mim.

Aparentemente, aquele não fora um xingamento muito ultrajante. No entanto, eu — que não era bem eu naquele momento — comecei a me acalmar. Minha temperatura, que deveria estar elevada por causa da raiva, abrandou um pouco e se estabilizou em algo mais normal.  Sim, muito contraditório dizer que eu comecei a me acalmar, mas o que veio depois me surpreendeu de uma forma que eu não saberia o que fazer. Era um sonho, mas eu podia sentir muito bem o que acontecia.

O que foi estranho também, apesar de tudo o que era estranho naquele sonho, era que, de certa forma, eu já o conhecia. Já havia, em algum momento, escutado um relato como aquele, mas, naquela hora, em meu sonho, eu não conseguia me lembrar de quando ou onde ouvira aquilo.

Minha pele, então, começou a se resfriar muito. A minha temperatura caiu pela metade e, depois, caiu de novo, ficando em quase zero. No mesmo instante, algumas coisas bem mais perturbadoras começaram a acontecer: Eu comecei a me solidificar, até que minha pele ficou com a consistência de uma pedra. Eu sabia que a resistência era impressionante, mesmo sem, ainda, tê-la tocado; já tivera um sonho com esse tipo de metamorfose.

O Neto de Noah começou a recuar de costas, seus passos eram apressados. O que ele estaria vendo? Eu podia ter uma vaga ideia.

E depois o mais perturbador de tudo aconteceu: Eu comecei a rosnar. Os rosnados nada humanos tomaram conta de minha garganta e as vibrações produzidas pelo som pareciam fazer cócegas em minha garganta. Os rosnados se tornaram mais fortes e mais perturbadores. Difíceis de se ignorar. Agora minha garganta doía e, antes que eu pudesse imaginar que era por conta dos rosnados exagerados, percebi que eu estava seco e frio. Precisava de algo quente e molhado para aliviar a dor em minha garganta... E a água não seria o suficiente, deduzi por instinto porque já sabia, mais ou menos, o que o meu sonho estava me mostrando.

Eu havia me transformado em um monstro.

Jane, que estava em algum lugar atrás de mim, colocou uma mão restritiva em mau ombro frio, advertindo-me para que eu parasse com aquilo. Será que ela não havia percebido no que eu me transformara? Com um movimento rápido, eu tratei de afastar a sua mão. Fiz mais do que isso. Em vez de retirar seu toque de mim, de retirar sua mão de meu ombro, eu acabei retirando sua mão inteira do corpo.

A mão de Jane caiu no chão e o sangue jorrou de seu braço. Olhei para o solo e, com uma parte muito pequena de minha mente — era estranho que, repentinamente, eu pudesse pensar em várias coisas ao mesmo tempo —, me perguntei por que eu estava sem sombra. A deliberação sobre aquele fato curioso continuou em um pedaço muito insignificante de minha cabeça. A maior parte de meus pensamentos estava voltada para o sangue que jorrava, sendo desperdiçado. 

De repente, uma dor mais afiada do que a lâmina de uma adaga cortou minha garganta, prometendo me matar se eu não colocasse algo quente, molhado e meio viscoso em minha boca. Eu queria sangue. Queria me fartar com o líquido encarnado que saía de onde, há pouco, estivera a mão de Jane.

Sem pensar muito no que estava fazendo — apenas seguindo meus instintos —, eu ataquei minha irmã, sorvando todo o líquido vital que ela tinha... No entanto, quilo não era realmente o bastante. Eu queria mais e o fluxo sanguíneo de Jane não era suficientemente rápido para prender minha atenção ou mitigar minha sede. Com movimentos instantâneos, retirei minha boca de seu antebraço mutilado e passei a seu pescoço, cravando meus dentes fortes e incrivelmente afiados — eu tinha certeza de que, se quisesse, poderia cortar uma pedra só usando eles — em sua jugular.

Meus dentes afiados e cruéis — sim, eu sabia que ma arrependeria disso, mas, naquele momento, não havia nada que eu quisesse mais a não ser saciar minha sede de sangue — cortaram sua pele, sua traqueia e suas artérias como se fossem nada. Eu praticamente não encontrei resistência; meus dentes eram bem fortes para que cortar e rasgar a cartilagem fosse algo fácil demais. O sangue que eu sugava inundou os pulmões de Jane quando eu cortei suas artérias. Os gorgolejos úmidos e quentes só me davam vontade de continuar.

E sentir o sabor daquele líquido quente e delicioso só me fez sugar com mais voracidade o sangue de minha irmã. O sabor, a fluidez lenta, e a forma como o sangue aplacava a dor em minha garganta caíam muito bem em mim e parecia que eu não me cansaria de sugara vida de Jane. Por mais que tentasse pensar de uma forma racional... Não. Eu não tentava. A única coisa que fazia era sugar e querer que o sangue mitigasse minha sede que, apesar daquilo tudo, ainda ardia como se minha garganta estivesse seca, semelhante à areia sob um sol do meio dia.

O sangue acabou muito antes do que eu havia pensado, mas, é claro, o sangue não era infinito.

Com um gemido baixo e incontrolável, eu afastei a carcaça drenada de Jane e, sem pensar muito no que fazia, corri atrás no bisneto de Noah que ainda se afastava como se fosse uma tartaruga andando vagarosamente em câmera lenta.

Eu corria de uma forma alucinantemente veloz; ele se afastava, literalmente, com lentidão demais e eu me preparei para saltar sobre ele. Quando o homem virou-se para ver o que havia acontecido, me viu em pleno ar, preparando-me para dilacerar seu pescoço como fizera com Jane. Ele se abaixou bem a tempo de se desviar de meu ataque vertiginosamente rápido e eu passe diretamente sobre ele, caindo a alguns metros de distância de onde ele estava com a cara no chão, tentando não ser notado pelo monstro que era eu.

Eu me agarrei ao galho de uma árvore e me ajustei para que pudesse cair de pé, como sabia que poderia fazer. Instintivamente, depois que toquei o galho, flexionei os joelhos para me equilibrar e cair em uma posição de ataque que eu acreditava ser a mais eficaz em uma situação como essa. A parte dianteira de meus pés tocaram o chão primeiro, absorvendo o impacto com uma eficiência silenciosamente letal.

Com os olhos fechados, inspirei profundamente para sentir o cheiro fresco e farto de minha presa... Como era um adulto, obviamente tinha mais sangue do que uma criança insignificante de doze anos.

Naquele momento, eu notei que ele havia notado que estava encurralado. Seu arfar apavorado me avisara isso antes que eu pudesse abrir meus olhos e verificar com imagens. Ele desviou de mim pela direita e eu o persegui, chegando à sua frente em menos de um segundo; o homem parou quando eu interceptei seu caminho e, quando ele abriu a boca para falar alguma coisa — provavelmente para praguejar ou gritar por ajuda —, eu pulei em seu pescoço com um movimento rápido. 

Como havia acontecido com a criança, eu cortei a traqueia dele e o sangue, gorgolejando, inundou seus pulmões enquanto eu sugava sua vida também. O bisneto de Noah se debatia de uma forma cada vez mais débil e tentava, em vão, escapar de minhas mãos que podiam, facilmente, triturar um bloco enorme de pedra. Rapidamente, eu coloquei uma mão em seus cabelos para imobilizar sua cabeça e puxei-o para baixo para que eu não tivesse de ficar dependurado e para que ele não tivesse outra opção a não ser ficar quieto... Com a força mal calculada, eu separei sua cabeça do restante do corpo que agora, pelo pescoço, começava jorrar sangue de uma forma convenientemente abundante.

Joguei a cabeça incorpórea de lado e levei minha boca insistente até o lugar onde o sangue jorrava. Eu continuei sugando o sangue até que esse corpo, como o outro, ficou completamente drenado.

Quando eu realmente acabei, me senti com mais sede ainda. Minha garganta ardia e eu estava me contorcendo com a dor que a ardência seca provocava em mim. No entanto, agora, eu me sentia menos gelado do que antes e o calor parecia irradiar fracamente por todo meu corpo de pedra.

                O Sol finalmente saiu de trás de uma nuvem, fazendo com que minha pele, além de minha garganta, ardesse. Mas não era o mesmo tipo de ardência de minha garganta... Esse era mais real e mais urgente. Não era sede, e sim dor. A pele pálida de meus braços começou a ficar vermelha e, depois, enegrecendo a cada segundo que o Sol me tocava até que eu peguei fogo.

                Uma parte muito pequena de minha mente, em meio à dor, notou que eu, realmente, não tinha sombra, como era de se esperar para qualquer coisa que existe. Isso também me apavorou. O que antes eu pensava que poderia ser só porque a luz não era suficientemente forte, agora estava comprovado. No entanto, eu não conseguia me concentrar nisso por muito tempo. A dor das queimaduras era lancinante e isso era o que mais prendia minha atenção.

                A dor era demasiadamente intensa para que eu, mesmo em um sonho, acreditar que era uma imaginação. Parecia que cada nervo de meu corpo estava sendo esmagado por um pedregulho de dois trilhões de toneladas enquanto, ao mesmo tempo, eu era rasgado com uma adaga e alguém jogava sal em minhas feridas...

                Obviamente eu acordei sobressaltado. Quando se tem um sonho perturbador desse, é o mínimo que você pode esperar. O que meu subconsciente estava pensando? Francamente, aquilo fora bem assustador. É claro que o meu nível de pânico era igual ao do pesadelo anterior.

                Por que eu, ultimamente, estava sonhando com esses demônios hematófagos? Já era a segunda vez que eu tivera esse tipo de sonho ruim... Jane poderia tentar arrancar minha cabeça se eu dissesse em voz alta, mas parecia algum sinal de meu subconsciente. Não... Isso soava ridículo até mesmo para mim.

                O segundo fato mais irritante do sonho — além, é claro, de eu ter drenado toda a vida de minha irmã e ter decapitado o bisneto de Noah — era o fato intrigante e surreal de eu não possuir sombra.

Aliás, o sonho todo foi muito perturbador. E fora perturbador porque havia sido vívido demais e sensorial demais. Quando eu atacava, podia sentir a força bruta e a velocidade alucinante fluindo dentro e de mim e, agora que estava acordado, eu me lembrava exatamente de como era correr a toda velocidade, me lembrava de como era saltar e me lembrava de como era ter toda aquela força sobrenatural irradiando dentro de mim. Mas eu também me lembrava de partes desagradáveis, como o gosto do sangue e a luta débil de minhas presas enquanto eu sugava suas vidas.

Demorei, no mínimo, alguns segundos para compreender que o Sol já havia se infiltrado no quarto e estava claro desde que eu acordara. Me sentei na cama e esfreguei meus olhos com a lateral de minhas mãos fechadas em punho. Depois bocejei preguiçosamente e me espreguicei até que minhas articulações estalaram. Jane começou a se remexer em sua cama e, depois de alguns segundos de um sol alto batendo em seu rosto, ela acordou com um enorme bocejo também.

— Bom dia — ela me disse, ainda bocejando; seus cabelos louros cor de ouro líquido refletiam com perfeição a luz do sol, que chegava até meus olhos.

Eu desviei o rosto alguns centímetros e depois respondi de um jeito apático:

— Bom dia — eu disse, a voz baixa por causa da garganta seca falhou no final e, de certa forma, Jane percebera que o meu “Bom dia” poderia muito bem ter sido um: “O que tem de bom”?

Ela me mirou de um jeito que eu tive certeza de que percebera minha mudança de tom de voz habitual.

— O que aconteceu? — perguntou-me ela. Estava claro que, apesar de, às vezes, Jane ser tremendamente obtusa, ela ainda conseguia observar minhas mudanças de humor. Será que, como da outra vez, ela tivera um sonho ao mesmo tempo em que eu? Era difícil. A não ser é claro, que seu sonho — se é que ela tivera um — não fosse tão perturbador quanto o meu.

Eu a olhei com o canto do olho, mas minha visão periférica não era tão boa, então tiver de virar a cabeça; Será que ela tivera um pesadelo igual ao meu? O que ela sabia? O comportamento repentinamente sensitivo de Jane me deixara intrigado. Por isso minha teoria era que ela também tivesse tido um pesadelo... Mas eu poderia estar sonhando acordado e tudo não passar de uma enorme paranoia de minha cabeça.

Eu revirei os olhos para ela de uma maneira que tentasse dizer: Não é óbvio?

— Pesadelo — disse, bocejando uma última vez. Jane bocejou também.

Depois ela me olhou, nada surpresa e me pediu para contar meu sonho a ela.

Jane era uma ótima ouvinte quando conseguia se controlar de dar sua opinião em tudo e de arquejar nas partes mais perturbadoras. Ela soltou um ruído de exclamação quando percebeu que meu sonho — igualmente ao outro — também envolvia vampiros. Ficou de boca aberta depois que lhe disse que eu a havia matado e mais perturbada ainda ao saber que eu não era exatamente eu... Mas aquela era Jane, e logo ela havia deixado de lado esse sonho perturbador e começou a rir, completamente em um estado de negação. Uma negação que, agora, sabendo melhor de seus temores, eu compreendia.

— Sabe que isso é ridículo — disse ela, depois de se recuperar dos choques que as “besteiras” que eu dissera a ela haviam provocado nela.

Eu a olhei ultrajado.

— Não disse que não é — falei para que ela soubesse que eu, tampouco, dava algum crédito a esses sonhos malucos. No entanto, tinha de admitir que três pesadelos envolvendo vampiros em menos de dois ciclos eram muito estranhos. Mas é claro que não disse nada a Jane, que poderia, num sentido figurado, arrancar minha cabeça se eu sugerisse algo dessa natureza.

— Não, não disse — ela falou, dando de ombros e arrumando seus cabelos desgrenhados com os dedos — Mas, qualquer forma, não vejo uma razão válida para seu subconsciente estar sonhando com essas imagens.

— Eu vejo... Quero dizer: As pessoas pensam que somos aberrações do demônio. Nada mais justo do que nosso subconsciente, já cansado desse assunto tanto quanto nossa parte consciente nos veja como tais. Perfeitamente plausível.

Ela me olhou como se eu estivesse cantando alta e desafinadamente e depois, com um gesto de indiferença, deu de ombros de novo. Óbvio que ela não iria — não queria — ver minha lógica. Para ela, era só mais um sonho sem sentido entre todos os outros incontáveis sonhos sem sentido que eu já tivera na vida.

— Tudo bem. Faça e acredite no que quiser, mas duvido que esse tipo de sonho tenha algum significado... São só imagens malucas — ela disse aquilo como se eu estivesse sonhando simplesmente com borrões de cor indistintos e ridículos.

— Acredite, Jane... É muito mais do que você imagina — disse uma voz suave, rouca e grave, uma voz de homem.

Eu sabia que não era uma alucinação porque Jane também olhara na direção da porta que estava entreaberta, de onde a inconfundível voz de nosso pai viera. O sotaque francês carregou aquela simples declaração com uma gravidade de onde nem eu mesmo sabia de onde viera. 

Ah, droga! Papai escutara tudo atrás da porta que ficara entreaberta. A luz, agora que eu notara a porta meio aberta — ou meio fechada —, era mais intensa do outro lado. Senti uma rajada de vento frio, naquele momento, se infiltrar por entre a porta e eu me dei conta de que algo estava deslocado; a manhã parecia clara demais para estar tão fria, ou fria demais para estar tão clara — alguma dessas situações estava fora do lugar.

Jane e eu ficamos momentaneamente congelados e nossas bocas meio fechadas de espanto.

— O que? — ela perguntou quando nosso pai hesitou à porta, coma a cabeça para dentro do quarto, uma mão segurando a porta e o restante do corpo para fora.

Papai olhou para Jane de um modo... Solidário; acho que essa era a palavra certa. No entanto, eu não sabia por quê. Aquela intervenção repentina me deixara confuso. O que ele quisera dizer com aquilo? Por que dissera aquilo, para começar? Os motivos, naquele momento, estavam muito ocultos para que eu pudesse analisar o que papai dissera. A clareza dos pensamentos me fugia a todo o instante e eu estava momentaneamente incapacitado de raciocinar em linhas retas e objetivas.

— Toc. Toc — disse ele, ainda hesitando entrar. Depois ele entrou, fechou a porta e se sentou à beira de minha cama, que estava mais próxima da porta. Sua expressão era, além de confusa e solidária, cautelosa.

Jane e eu nos entreolhamos, esperando que ele começasse a falar. Por alguns minutos, o silêncio incômodo pairou sobre o quarto iluminado como uma névoa fria e incapacitante. Depois nosso pai pigarreou dias vezes antes de começar a falar. Mais tempo se passou e ele ainda não havia dito uma palavra sequer.

Jane teve de limpar a garganta e começar a falar entes que ficasse parecendo mais ainda que éramos somente três idiotas em um quarto, calados, mirando o rosto um do outro sem que nos atrevêssemos a dizer qualquer coisa insignificante...

Mas eu tinha uma certeza. Estava inconfundivelmente convicto de que o que papai tinha a nos dizer era tudo, menos insignificante.

— Hum...  — Jane pigarreou, constrangida por ter de começar ela mesma uma conversa sobra a qual ela não tinha a mínima ideia do assunto que seria abordado. Eu, no entanto, desconfiava...

— E então, pai, você dizia... — ela o instigou de uma forma nada sutil.

Thales pareceu congelar no lugar e na posição em que estava. A névoa poderia muito bem tê-lo feito inerte como estava. Ele deveria estar reunindo alguma coragem para dizer o que precisava ser dito.

Ele suspirou e depois, bem devagar, abriu a boca, disse apenas três palavras que vieram carregadas de estresse e nervosismo. Por isso mesmo, eu fiquei surpreso por ele não tê-las dito em francês, que era algo que sempre acontecia quando o estresse se abatia sobre ele. As palavras, porém, vieram cheias da mesma solidariedade que eu vira antes em sua expressão. Enquanto mirava Jane em seus olhos azuis como um céu tempestuoso, a expressão de meu pai parecia estar pedindo desculpas por algo que eu sabia que ele não havia feito.

— Alec tem razão. 


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo tem algumas explicações e mais segredos...