Lua Azul escrita por Mr Ferazza


Capítulo 9
VIII. SORTE


Notas iniciais do capítulo

Tive de dar uma enrolada nesse capítulo porque era necessário dar a informação de que os dons deles não era completamente demoníacos... Qualquer coisa que eles desejem genuinamente pode acontecer.



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VIII. SORTE.

Jane

Tudo bem. Então era um consenso que Alec e eu não concordávamos um com o outro em nada. Absolutamente nada. Não um consenso, na verdade, porque isso teria de incluir o pressuposto que de fato concordássemos que não concordávamos com nada.

                Alec estava infeliz. Pensava que, de alguma forma, ele havia provocado o acidente de Noah, e agora aquela culpa idiota o consumia. Blá, blá, blá. Por que ele fazia aquilo com ele mesmo? Era tão difícil aceitar que aquilo não passava e um acaso? Uma coincidência?

                Eu não poderia dizer isso a ele; já devia estar até o pescoço com aquela história de coincidência... No entanto, era a única explicação sadia e normal (do tipo que não pressupõe- se que você está louco) que eu tinha. Alec, por seus motivos loucos, não acreditava nisso. Bem... O problema não era meu.

                Correção: Era, sim. Eu teria de ficar ouvindo suas lamentações por ele acreditar que podia fazer algo mágico. Parecia que eu podia prever o que aconteceria nas próximas semanas; Alec alugando meus ouvidos e achando que eu tinha de ouvir suas ruminações de sentimentos de culpa.

                Por que o garoto era tão obstinado? Porque não podia aceitar que tudo aquilo era uma coincidência?

                Tive de reprimir um sorriso quando me dei conta de que, de alguma forma, a obstinada era eu. Alec, pelo menos, conseguia aceitar ou levar em conta suas opções. Eu não. Não era capaz sequer de aceitar que poderia haver mais do que eu sabia. Alec era o Sr. Mente Aberta — sem trocadilhos, é claro. Noah partira desta vida com a mente bem aberta.

                — Alec? — chamei. Meu irmão tinha o rosto enterrado em um travesseiro; deitava-se com as pernas para fora da cama e ainda, eu tinha certeza, estava remoendo a história do acidente.

                Ele não respondeu. O que havia com ele. Tudo bem. Era uma hipótese tremendamente idiota a se considerar, mas se aquele acidente era culpa dele — se ele havia desejado que algo de ruim acontecesse a Noah —, ele não deveria estar assim; o que Alec mais gostava na vida era estar certo e isso, eu sabia, comprovava que ele tinha razão. Pelo menos em sua cabeça.

                Eu revirei os olhos para ele, mesmo que ele não estivesse vendo.

                — Escute Alec — sussurrei; eu estava consciente de que mamãe estava no outro cômodo. — Você não tem motivo algum para ficar aí, todo infeliz, acreditando que aquilo foi culpa sua... Não foi. Acidentes acontecem... Ah, por favor, essa frase é tão verdadeira que chaga a ser clichê. — disse. E era verdade. Ele não tinha motivos para ficar pensando que as desgraças eram culpa dele

                — Certo — disse ele, levantando o rosto do travesseiro; Alec não chorava, mas sua expressão transparecia tanta... Culpa e desespero que aquela cena seria menos desconfortável se ele o estivesse fazendo.

                Ele me mirou com uma expressão interrogativa nos olhos e eu sabia que ele procurava por algum sinal de que eu, por algum milagre, sentia o mesmo que ele. Alec desviou o rosto antes que eu pudesse perguntar o que ele havia perdido em mim.

                A verdade era que eu não podia sentir a mesma coisa que ele. Eu não podia considerar que aquilo tudo era verídico, porque ficaria um trapo se fosse real. Mais do que ele. E eu não queria me sentir daquele jeito. Não queria pensar que tudo aquilo era minha culpa ou de Alec.

                Sim, eu estava certa. Seria uma atitude mais saudável para mim. Não acreditar — escolher não acreditar — faria com que eu me sentisse menos pior. Era por isso que eu continuava negando veementemente que eu acreditava naquilo. Eu não acreditava. Era compulsório. Como se alguém, em minha cabeça, me dissesse: “Não acredite nas deliberações malucas que seu irmão tem como certas”. Ao mesmo tempo eu sabia que aquela voz não era um espírito do além; era a minha voz.

                — Olhe, Alec — eu comecei a dizer — Não vou fingir que sei por que você está desse jeito... Se lamentando por algo que não tem nada a ver com você. Que não foi sua culpa. Mas posso me solidarizar, entender o que você sente, embora, é claro, não sinta o mesmo.

                Ele assentiu para mim, a expressão era um misto de descrença com gratidão — eu não conseguia encontrar outras palavras para descrever... Mas também não era como se ele estivesse grato por eu me solidarizar. Era mais como se ele, já sabendo que eu não podia entender plenamente seus sentimentos, estivesse agradecido por que eu não tentei mudá-los ou discutir para tentar convencê-lo.

                — Obrigado. Sei que é o máximo que terei de você. — ele disse. No entanto, aquilo não soou como uma crítica e como se ele estivesse dizendo: “Já que você não é suficientemente inteligente para fazer algo além disso, eu agradeço” Era mais como se Alec entendesse o porquê de eu não poder compreender realmente aquilo.

                Eu assenti e olhei para ele; seus olhos já não me pareciam tão tristes e tampouco estampavam a frustração que eu sabia que deveria haver em seus olhos — algo que sempre acontecia quando tínhamos uma conversa que envolvia esses assuntos. Era como se ele tivesse realmente me entendido. Entendido o real motivo pelo qual eu me recusava veementemente a acreditar naquilo. Como se ele tivesse entendido o que eu pensava sobre aquela história. E como se tivesse compreendido o quanto eu ficaria muito pior do que ele se aquelas histórias fossem verdadeiras. Como se, naquele momento, ele tivesse começado a entender realmente o que eu pensava e o quanto temia que aquelas histórias fossem reais — eu tinha de me recusar a acreditar nelas.

                Por outro lado, eu também consegui vê-lo melhor. Conseguia compreender o que aquela história mal explicada fazia com ele — porque Alec detestava algo mal resolvido, mesmo se aquilo fosse prejudicá-lo.  E sabia que ele sabia que eu podia ver isso; o desespero dele por ficar sem entender algo tão extraordinariamente fora do comum e, ao mesmo tempo, tão próximo. Eu podia entender sua obsessão por aquele assunto muito melhor. Conseguia compreender porque ele se sentia compelido a me provar de alguma maneira que aquilo não era só uma história. Eu, agora, conseguia entender a frustração que aquilo lhe causava, mas também sentia que ele se resignara a guardar tudo para si... Pelo menos até que eu quisesse saber mais. — o que, creio eu, levaria um bom tempo para acontecer.

                Eu conseguia sentir que ele não sentia mais tanta culpa — o que, para mim, já era um progresso. Eu não podia dizer que ele estava errado. Ele acreditava naquela história de que vovô era... Bem, aquela palavra com “B                “, então, se isso fosse verdade — o que, na cabeça de Alec, era mesmo —, então isso não seria culpa dele. Ninguém podia culpá-lo por tentar saber mais sobre o que ele era, e isso incluiria alguns testes. Testes incluiriam cobaias, então... Era meio que inevitável.

                — Tudo bem. Já chaga disso — disse ele, limpando a garganta secando, no canto dos olhos, os últimos vestígios de lágrimas. Será que ele estaria mesmo disposto a esquecer daquele incidente? Eu duvidava. No entanto, era nossa única opção. Nossos pais sequer desconfiavam que deliberávamos sobre esse assunto. Em algum momento, com certeza, eles descobririam. Aquele não era o momento certo.

                Alec se levantou da cama e, com um andar meio que quadrado e formal demais, espiou pela janela entreaberta. Ele virou-se para conseguir um ângulo adequado e que o possibilitasse enxergar algo além da grande massa de árvores densas.

                — Posso saber o que está acontecendo? — perguntei em uma voz cheira de sarcasmo e alívio ao mesmo tempo.

                Ele se virou para mim, a sobrancelha esquerda arqueada um pouco. Ele estava tendo uma ideia, isso era certo. Era certo, também, que eu não iria querer saber o que era. Alec e suas ideias de sempre. Não era jogar na cara, no entanto, elas nunca acabavam de uma forma boa... Ele sabia disso. Mas eu podia, agora, compreender porque ele tinha de tentar. Saber tudo o que é possível seria indispensável.

                — Na verdade eu estava pensando... Você sabe que, em algum momento, seremos culpados pelo que aconteceu a Noah... — ele deixou sua declaração perder-se no silêncio quando sua voz minguou.

                Ele, mais uma vez, tinha toda razão, é claro.... Como se tudo o que acontece aqui nesse lugar imundo fosse culpa nossa. Bem, na verdade, para essa gente ignorante, era mesmo. Isso, é claro, não incluiria Alec, mas ele também acreditava que era nossa culpa. Na verdade, culpa dele, como Alec já se resignara a acreditar.

                Eu assenti. Era verdade. Em todo caso, sempre teríamos a vantagem de “pessoas sãs da cabeça não acreditam nesse tipo de coisa”. O Problema era justamente esse. Não existem pessoas sãs da cabeça nesse lugar. Parecia que pairava uma névoa de esquisitice e superstição sobre esse lugar... Ninguém aqui era normal? Talvez papai fosse, mas eu também não tinha certeza...

                — Eu sei — disse, mirando-o de uma forma assustada. Mesmo sabendo que isso era meio que inevitável, não consegui deixar de me temer o que estava por vir. — Mas no que está pensando? — Eu disse por que era óbvio que ele pensava em algo. Se não estivesse, não seria Alec.

                Alec pareceu hesitar por um momento, talvez pensando no que me diria.

                — Bem... Eu talvez esteja pensando em, quem sabe, perguntar ao papai sobre aquela história de novo.  — Ele viu minha expressão de incredulidade ergueu as mãos em um gesto de quem se rende, como uma desculpa. — Só estou tentando entender, irmã.

                É claro que estava. E não foi tentando entender que todo isso havia começado? Pelas últimas palavras que Noah dissera antes de virar um grotesco enfeite de uma árvore tombada, isso só aumentaria depois que tivéssemos consciência de nossos dons. Obviamente, para mim aquilo tudo era uma besteira doentia e psicótica... Em que outro lugar do planeta um pessoa velha — Velha mesmo — iria acreditar e ficar falando para os outros esse tipo de loucura? Só aqui.

                — Sabe que ele não vai lhe dizer o que quer escutar. Mentindo ou dizendo a verdade, a ideia é ridícula. Papai sabe disso. Talvez você acredite nisso, mas ele não. — Eu disse, e não era novidade; já havia admitido para mim mesma que aquela história que papai nos havia contado era uma mentira.

                Ele me olhou interrogativamente, erguendo uma sobrancelha, e depois deu de ombros; ele já havia percebido que eu me dera conta que a história mal contada de papai era uma mentira das grandes.

                — Ele pode não dizer, mas quero ter a certeza de que tentei, pelo menos — Alec disse. O que era, no mínimo, um comportamento estranho. Não era do feitio de Alec dizer pelo menos. Ele nunca se conformava. Simplesmente não aceitava ter o mínimo ou, nesse caso, o máximo que podia conseguir. Era teimoso por natureza e queria ter a informação que imaginava existir.

                Eu pensei por um momento e depois dei de ombros. Se ele tinha um plano, com certeza não me diria. Ele não suportava que eu tentasse coagi-lo a desistir de seus planos.

                — Tudo bem, mas sabe que nem papai e nem nossa mãe gostam desse assunto. — E era verdade. Papai começava ficar branco feito leite, suar frio e falar em francês. Mamãe deixava transparecer pouco de sua aflição, mas tremia de uma forma que era evidente que estava incomodada por alguma coisa.

                — É claro que eu sei — disse ele, fechando o que havia abeto da janela para poder espiar a bagunça lá fora. Depois se sentou ao meu lado, na cama.

                — Você vai querer me dizer por que está fazendo isso? — perguntei.

                — A verdade é que nem eu mesmo sei. Mas acho que as pessoas logo vão perceber que o “acidente” é culpa minha. Ou nossa. De qualquer forma, não importa para elas. O caso é que, sendo verdade ou não, a culpa vai cair sobre nós. Não seria melhor estarmos preparados?

                Eu olhei para ele como se estivesse falando uma língua que eu não conhecia. O que ele queria dizer com aquilo? Será que ela tinha uma ideia mais clara da dimensão do problema que eu, naturalmente, desconhecia?

                — Não sei, Alec. Eu já disse a você que não acredito nessas coisas e, mesmo que os vizinhos fofoqueiros e supersticiosos acreditem, não acho que seja para tanto — Disse a ele e, assim que fechei a boca, ma veio à mente a imagem da mãe de Anne correndo atrás de nós com um machado enorme, pronta para nos matar. Estremeci de leve.

                Ele percebeu meu estremecimento e ergueu uma sobrancelha daquele jeito irritante de quem diz: “eu tenho razão”. Eu dei de ombros; pouco me importava aquela conversa. Por que teríamos de ter medo ou tomar cuidado com algo que nem sabíamos que havia acontecido? Talvez as pessoas agissem desse jeito só por repressão... Para que, talvez, fiquemos com medo, reprimidos e, assim, eles tivessem certeza de que não era nada relacionado conosco e o “dom” que diziam que tínhamos.  

                —Certo — foi só o que Alec disse.

As semanas se passavam de uma forma rápida. Por isso mesmo, eu agradecia que o tempo perecesse passar assim. Os dias, obviamente, não eram algo muito atravancado e cheio de afazeres. No entanto, eu tentava não pensar naqueles acidentes. Fiquei grata por conseguir fazê-lo com sucesso.

O terrível acidente de que levara a vida de Noah não havia sido esquecido, obviamente, mas as pessoas pareciam aceitar de bom grado que aquilo fora só isso. Um acidente. Só a família do velhote parecia querer nos estrangular — Alec e eu — a cada vez que nos via. Seu medo ridículo de nossos supostos poderes os deixava fora de nosso caminho e, assim, a vida foi se tornando cada vez menos chata e ridícula.

Certa vez, um neto de Noah, que vivia com seus três irmãos e seus pais algumas casas depois da nossa, encarava-nos de uma forma verdadeiramente homicida enquanto cortava um tronco de árvore com seu machado. Eu devolvera o olhar e, rapidamente, ele voltou-se para o que estava fazendo.

Algumas semanas depois disso, um homem, que não parecia ser daqui — o que obviamente não era, pois ninguém se atrevia a bater em nossa porta —, chegou à nossa casa perguntando pela senhora que vivia na última casa do vilarejo... Essa era uma história longa e incrivelmente maluca. Tudo o que eu sabia era que o marido da senhora antissocial a havia deixado há mais de quinze anos e não deixara notícias... Procurando condições de vida mais dignas em alguma parte do mundo que não fosse uma ilha, ele a havia deixado para trás para que pudesse sobreviver.

Eu nunca havia pensado que alguém, de fato, viva lá... A casa estava sempre fechada, as velas, apagadas. Mesmo durante a noite. Algumas vezes, eu podia escutar barulhos estranhos, que muitos pressupunham ser uma alma penada. Bobagem... Mas o fato era que a mulher que viva isolada — mais isolada do que nós, que vivíamos naquele vilarejo esquecido — nunca havia posto a cara para fora... Seria, no mínimo, estranho. Depois de tantos anos sem ver o Sol, ela poderia estar morta por falta de vitamina D.

Quando alguém inteligente — ou não — o suficiente as aproximava da casa — e, eventualmente, batia para ver se estava tudo bem —, a mulher surtava, gritava e expulsava seus visitantes da forma mais educada que se podia esperar: Jogando coisas na cara de quem aparecesse.

O Homem elegante e estranhamente gentil — Sim, eu estava acostumada com a hostilidade com que todos tratavam a Alec e a mim — perguntou a Alec onde morava a senhora... Ele disse o nome, mas era complicado demais para que eu o entendesse. Parecia alguma sem em alguma língua que eu não conhecia. — Não que eu conhecesse muitas, é claro, mas o nome era realmente estranho. Alec só soubera de quem se tratava porque não havia mais ninguém com aquele nome ali onde vivíamos. Então ele deduzira.

Alec engoliu em seco, ainda com receio de que aquele homem fosse alguém que os vizinhos haviam convocado para nos matar.

— É... — ele hesitou. Poderia, para mim, parecer uma atitude idiota aquela de Alec, mas, se eu tivesse atendido a porta, creio que essa também seria a minha atitude. — Creio que a casa que você procura seja aquela no final do grupo — Disse Alec, inclinando a cabeça na direção da última casa.

                — Obrigado — disse o rapaz gentil com um forte sotaque que eu não reconheci.

                — Boa sorte. — Alec disse a ele

                Mentalmente, eu também desejei boa sorte ao gentil desconhecido. Ele iria precisar. Eu não sabia o que ele queria, é claro, mas o grande sacrifício seria a senhora solitária receber o cara.

                — O que acha que está acontecendo? — perguntou Alec, com as sobrancelhas arqueadas.

Eu dei de ombros; como se fosse da minha conta, pensei, mas não disse a ele. Já era bem ridículo que Alec tivesse aquele assunto para se preocupar, então porque se preocupar com coisas sem importância? Na verdade, nada do que Alec se incomodava em investigar tinha muita importância.

— Não sei, mas ele vai precisar de sorte. — eu disse. E era verdade. Aquela porta jamais era aberta sem que uns gritos de “saia daqui” ou “vá para o inferno” fossem ditos logo a seguir.  Será que a mulher que viva lá ainda se preocupava com o marido? O que ela fazia o dia todo trancada lá?

Na verdade, esse tipo de mistério era mais interessante do que especulas sobre nossa ascendência.

— Vai — concordou Alec.

A mulher recebeu o desconhecido gentil sem qualquer relutância. Alguns dias depois, eles foram embora de nosso vilarejo. A mulher e o viajante misterioso se casaram e foram embora do vilarejo.


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo está sendo escrito... Mais um sonho perturbador vem por aí e, com ele, muitos mistérios. Posso demorar bastante para postar. Obrigado. (gostaria de pedir aos eventuais leitores fantasmas (isso, é claro, se houver) que comentem, por favor.