O Que É Amar? escrita por Hikari


Capítulo 9
Minha Heroína.


Notas iniciais do capítulo

Minha culpa, sei disso, sinto muito por ter demorado tanto.
Fiquei com uma carência de inspiração aqui, principalmente depois de perder meu texto com o shipper do Charles e da Silena (sim, a Silena, Filha de Afrodite) em que eu havia passado a tarde e noite escrevendo (longa história).
Espero que gostem!



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Tempo passado – casa de Annabeth.

Annabeth despertou sentindo um peso na lateral de seu corpo. Ao contrário do que era de se esperar, não era um peso opressivo, puxando-a, constante, para baixo, tragando-a para um desconexo transtorno corporal, confrangendo-a. Era um peso reconfortador, quase tranquilizante. Uma sensação agradável. Ela descansava no topo da cabeça de Silena, sentindo o cheiro das mechas claras de seu cabelo, o cheiro que ela levava consigo parecendo-se com o de maresia, como os de Percy, quando ela consistia em permanecer ao seu lado. Mas ela logo descartou a opção. Sonhara com ele aquela noite, devia ser isso. Apenas isso.

Ela lentamente percorreu com seus olhos a princesinha, esta quem se aninhava em seu corpo, sua altura diminuta enrolada como uma bolinha em miniatura, alojando-se nos braços da loira, agarrando seus braços e enroscando suas pernas pequeninas nas dela, respirando confortavelmente em seu pescoço, com uma harmonia regular. Os bracinhos da garota estavam envolvendo sua barriga, aparentando ali pertencer assíduos. Um sorriso postou-se delicado nos lábios de Annie, uma sensação quente abrigando-se dentro de si. Uma situação bizarra, e um pensamento um tanto inusitado achegara-se e arrombara as portas de sua mente. Olhando-a ali, perto de si, com o calor irradiando de sua saúde e sonolência, ela sentiu-se orgulhosa, e agradecida. Como se estivesse consigo um prêmio; um tesouro maior do que sua possibilidade de reconstruir o Olimpo. O familiar ardor irrompeu seu peito, subindo até seus pulmões, dificultando sua respiração. A filha de Atena analisou o rostinho da criança que protegia. Cuidadosa, retirou seus braços de suas costas da criança, e correu-a nos cachos de seus cabelos, afastando-se microscopicamente, tirando os fios das feições angelicais de Silena, a qual dormia profundamente, como se nada no mundo pudesse ser capaz de acordá-la. Annie ficou com uma súbita vontade de rir, mas a deteve a meio caminho na garganta. Seus dedos traçaram as bochechas rosadas, o nariz parecido com o de Percy, as sobrancelhas levemente franzidas em seu sono, e as pálpebras de seus olhos, que mexiam-se, agitados, perturbados por algo dentro de sua mente. Seriam pesadelos? Annabeth preocupou-se, e o seu coração acelerou o compasso. Sua garotinha estava tendo pesadelos? Como poderia fazê-la relaxar? Os seus próprios pesadelos atenuavam-se para um particular labor contínuo.

Annabeth soprou um vento suave no rosto formando suas primeiras gotículas de suor, aconchegou-a junto a si e cantou baixinho. Ela sabia que sua voz não era tão boa quanto os filhos de Apolo (afinal, estava ciente de sua habilidade atravessar bem longe essa linha estrutural da sintonia), mas pelo menos era uma forma de tentar consolá-la, o que quer que a incomodasse. Sussurrando, foi vagarosamente percebendo a respiração de Silena suavizando-se, até ela prender suas mãozinhas resolutas ao redor de si, amenizando a tensão de seus músculos, soltando um suspiro de alívio, e voltando a cair em sonhos.

Perguntas saltaram para sua cabeça assim que o perigo iminente se foi, ao escutar seu suspiro brando. Quem... quem era ela? É claro, isso era uma questão indeterminada desde o início, havia alguns dias. Mas por que ela parecia tão conhecida? Annabeth já vira aquelas feições, tinha certeza disso. Ela já a vira, apesar de a memória estar turva, como um borrão. Era quase uma impressão, um pressentimento. Uma visão? Não. Certamente, não seria isso. Porém, de qualquer forma, ela sabia que conhecia Silena. Sabia que um forte laço ligava as duas. Mas como? Ela mal podia detalhar – caso alguém lhe perguntasse – quem a criança exatamente era. De onde tinha vindo? De onde? Não havia respostas viáveis a considerar, uma vez que a criança recusava-se a replicar seu pedido.

Uma frase aparecida de lugar nenhum conveio a sua nuvem de suposições atormentadas, atropelando-as e eliminando-as do caminho: para que se importar? Não precisava saber disso. Não precisava. Ela a havia encontrado. Havia-a encontrado? Não era como se houvessem um dia a perdido, era? Houvesse a perdido, divergido em uma diferente rota, separadas por forças maiores que elas. Por quê? Aliás, desde quando começara a referir-se a princesa de sua garotinha? Sua garotinha? Pronome possessivo? Ela não era sua... de fato, não. Quer dizer, pelo menos, até onde sabia. Argh. Annabeth fechou os olhos, uma dor de cabeça aguçando a profusão de sua mente, acentuando-se como se houvesse recebido uma martelada direto na nuca. Era difícil pensar. Difícil ponderar. Queria que ela fosse sua, contudo... que pensamentos eram aqueles? Estava desarticulada, a cabeça pesada e revestida em um véu sinuoso de confusão. Talvez devesse apenas voltar a dormir. Quem sabe melhoraria a pontada certeira em seu crânio?

Sabia que isso não aconteceria. As perguntas voltariam. Entretanto, por ora, poderia ignorá-las. Tentar reordenar suas emoções, pois sabia de sua dispersão. Ela acariciou as costas da pequena, murmurando em seu ouvido palavras levadas pelo vento, para outro lugar, para outro tempo, escutadas por outro alguém. Outro alguém? Ela só queria adormecer, impossibilitada de ter essa permissão. A insônia acobertara-a, puxando-a de volta. Fazendo-a pensar.

Arrumou-se na cama, e o corpinho da criança encolheu-se, escutando atentamente as palavras da mãe.

-Está tudo bem. Eu estou com você, encontrei você. –Annabeth não sabia de onde as palavras vinham, mas pareciam plausíveis em sua boca, dando uma leviana impressão de terem sido fincadas ali na esperança de soltarem-se. Ela sentiu Silena deslocar-se, mas a teia viscosa que a prendia no presente a estava encasulando, levando-a para longe novamente. Ainda é madrugada, pensou meio sonolenta, ainda posso aceitar deitar por mais um tempo... –Não se preocupe, Silena. Eu estou aqui...

Eu estou aqui.

Sim, mãe. Você está. Silena sorri e inspira uma longa tragada de ar, inalando com ares preservadores o perfume da mãe. Ela tinha um cheiro único, e especial. Guardou-o para si como uma pérola, a qual estava sendo lubrificada a cada nano segundo que se passava na companhia da mãe. E isso era bom. Pois assim como a pérola era limpa, reformulando sua pureza, seu coração também se enchia de satisfação e apreço. Tudo o que sabia era que podia usufruir do momento, realizando em sua lista mental os programas que sempre quisera fazer com a mãe. E isso era bom. Porque era simples e fácil. Algo que necessitava nesse bolo de confusões, que poderia acarretar em apenas mais confusões, que desencadearia em um vácuo na linha espaço temporal e poderia leva-la a inexistência.

Silena fez uma careta ranzinza para o caminho que seus pensamentos estavam conduzindo-a. Balançou a cabeça e aguardou sua mãe encaminhar-se para a porta dos sonhos mais uma vez, para poder desagregar a agrupação de incoerência a qual as camadas do seu sonho a haviam orientado – ou melhor, a largado, resultando em um pânico acentuando-se em seu íntimo.

Manhattan – Tempo Atual.

Percy seguia uma trilha indistinta, rodando em círculos e se perdendo entre as árvores espessas. “Silena, o que fez, minha filha?” torturava-se com a pergunta em sua mente, seu sangue esquentando-se em um líquido borbulhante de nervosismo. Tentou controlar sua respiração desregulada. Acalme-se, nada irá acontecer com Silena. Minha pequena está bem... está bem...    

Não havia sol nos arredores de Manhattan. E não era o anoitecer, não era tarde. O Olimpo estava profundamente quieto, e o ar parecia carregado de eletricidade. Percy andara pela praia alguns minutos mais tarde, e nada conseguira em sua mente para rumar em um raciocínio concreto e lógico. Annabeth teria, sua sabidinha nitidamente teria uma resposta. Mas ela não estava lá, e isso frustrava as tentativas de Percy prosseguir.

Na praia, ao chegar em um aglomerado de rochas antes de fazer a volta para o acampamento, quando seus pés ainda arranhavam o solo arenoso e a areia impregnava-se entre seus dedos do pés e as fazia carícias, o rapaz achara o par de sapatos que Silena teimara ter perdido. Os sapatos eram presentes de Quíron, um par de sandálias gregas. O moreno deslizou um meio sorriso no canto dos lados, nostálgico com aquela lembrança, e com uma profunda solidão consolidando-se em seu peito, uma enorme e vazia lacuna parecera se apresentar dentro de seu âmago, minando qualquer outros pensamentos, apossando-se de seus recursos autodestrutivos, lembrando-o de que sua pequenina não estava mais com ele; não mais, não ainda. E esse fato o consumia.

Percy já saíra do acampamento. Não virou-se a fim de assegurar-se não estar sendo seguido. À essa altura, ele não mais se importava. Podia detectar com destreza o peso de sua caneta – espada, Contracorrente – em seu bolso, em prontidão, aguardando para ser usada. Não usava armadura, ou carregava escudos, embora talvez fosse necessitar. Mas, seja como for, não temia. Não quando os motivos levavam à pergunta que poderia finalizar com aquele turbilhão de acontecimentos repentinos e clarear onde Silena fora se embrenhar.

Um rugido ecoou pelo vácuo da escuridão, uma silhueta ameaçou aparecer por entre as estátuas ao seu redor. Percy ajeitou o capuz o qual encobria seu rosto, e abrigava-o dos socos congelantes do vento fustigante cujo pulso imaterial contrabatia seu corpo. Percy anotou em sua lista mental um cronômetro; essa o havia impressionado. Não demorou muito para virem. Apenas quinze segundos.

O céu, um negrume excruciante cuja cor causava-lhe um arrepio contrastante, deixava-o atordoado e aprofundava sua dislexia com uma eficaz que ele realmente acreditava não precisar no momento. As peças não se encaixavam, o equilíbrio não o estabilizava, muito menos o seu odor atrativo à monstros lhe era útil. Estava fadigado, entretanto nada mais poderia fazer considerando o acampamento quase em ruínas e os semideuses ocupados, combatendo os monstros que tentavam intervir dentro das barreiras de segurança, a mesma já destruída, desgastada e corrompida. Não saberia dizer como tudo se desencadeara, apenas acontecera. Subitamente, no meio do dia anterior, este sendo o dia seguinte ao desaparecimento da filha.

E ele havia sido incumbido de desvendar as razões. É claro, embora houvesse se voluntariado para isso. Porém, por que tinha a vaga impressão de que mesmo se não o fizesse, o cargo seria seu? Não importava. Estava a caminho de descobrir o porquê dos monstros terem invadido seu Acampamento sendo que nenhuma barreira conseguiu impedi-los de adentrarem na fronteira, exatamente como tantos anos atrás havia acontecido.

O acampamento precisava dele. Seus amigos precisavam dele, como tantos outros semideuses os quais tentavam manter o lar deles seguro. Por que mesmo concentrando-se nesse pensamento continuava sentindo-se inapto? Sua mente não fixava-se nisso. Ela rodava em busca de respostas que, muito embora, ele pensava já ter encontrado. Ele sentia-se inútil, pois a espada agora em sua mão de repente parecia ter engolido um peso extra, transpondo o peso natural em sua mão; seus passos saiam desestimulados e a todo minuto tropeçava nos próprios tornozelos. Mal podia enxergar a sua frente com precisão, como poderia atingir um monstro se esse aparecesse?

Oh, filha, o que você foi fazer? Continuava ponderando. Ele sentia algo estar relacionado com sua Silena. Não era mera coincidência o dia não raiar bem na época quando a garota havia desaparecido. Sem contar no fato de ele próprio comparar-se a um sinônimo de problemas; sua descendência deve ter herdado isso dele. O que quer que ela tenha feito, ou se envolvido, trazia insuportáveis consequências para a balança do presente. O que eu posso fazer? Ele não conseguia contatá-la, não conseguiria rastreá-la, de qualquer forma. Ela estava em outra essência. Outra...

Uma profusão de peso acomodou-se preguiçosa e dolorosamente em seu flanco, colidindo com seu corpo e arremetendo-o para o lado, interrompendo seu trajeto. Sua cabeça atingiu uma rocha próxima e sua visão reduziu-se a vários pontos disformes coloridos, fazendo o mundo girar a sua vista. Abriu os olhos cerrados e visualizou uma sombra dançando passos acelerados, como se estivesse em um concurso marciano. Não que Percy acreditasse que existisse outros seres ilusórios pertencentes a outros planetas, mas quando se tem aparentemente um elefante esmagando seu crânio, seu raciocínio coerente facilmente se dispersaria, entrando em uma enlouquecida e frenética disputa entre sinapses, seus neurônios colapsando-se em um frenesi instantâneo.

Nesse momento, tudo o que ele menos precisava era de um alienígena irritante em busca de um juiz para sua competição estúpida de sapateado tentacular. Tudo o que apenas queria era encontrar uma resposta para a barreira estar dissolvendo-se, a relação que sua princesa poderia ter com todo o tumulto e, se possível, poder voltar para seu acampamento com todos em segurança. Não tinha tempo para gastar, quase não tinha tempo o suficiente para recorrer sua rápida “visita” ao Olimpo. Porém, o que tinha de se preocupar? Era apenas um monstro estúpido em sua fome estúpida em perseguir estupidamente semideuses e que o encontrara porque fora estúpido demais em prestar atenção por onde corria. O que ele pensava que era? Um estúpido animal? Não, nesse exato instante preferia estar alimentando Cérbero no Mundo Inferior – onde logo poderia estar caso não se apressasse em achar uma solução de escape.

-Percy Jackssssson... –uma voz sibilou perto de seu ouvido, e Percy sentiu um arrepio percorrer sua medula. Piscou inúmeras vezes a fim de adequar-se, tentando amenizar a sensibilidade e recobrar a imediata consciência. Conseguia distinguir contornos desfocados, longe de serem nítidos, porém, soube quem era. E como não saberia? Já havia lutado com tantas dela. –Não digo que é meu dia de sorte, mas sei que vou ser bem recompensada. Portanto, agradeço-lhe antecipadamente.

A cabeça de Percy é pressionada com mais força sobre o gramado, e ele sente uma explosão lancinante cegá-lo. O homem range os dentes, recusando-se a satisfazer o monstro, cujo desejo era vê-lo desvanecer. A visão fica ofuscada e, por fim, vira um negrume sem discernimento. Ele tenta apurar sua audição, mas seus ouvidos zunem, abafando-se como se houvessem afundado algodão embebido em ácido dentro deles. Com uma lentidão maior do que Percy imaginara, seu corpo recupera-se do choque do torpor, e o susto vai desaparecendo rapidamente para as profundezas de suas preocupações. Tenta reordenar a mente confusa.

Haviam-no pego. Não, não podia ser. Bom, tecnicamente, sim, podia, e era bem provável considerando sua proteção frágil e o cheiro forte de semideus proliferando pelo ar hospedeiro em vários atributos tendo o acampamento ali perto. Entretanto, de qualquer forma, fosse o que fosse de fato, não podia ficar parado. Muito embora soubesse de sua vantagem ser mínima, tinha de tentar alguma coisa. Mas o quê? Estava decaído. Acabara de sair de uma luta contra dezenas de monstros ao salvaguardar a entrada do acampamento, próximo onde antigamente havia o pinheiro de Thalia, e estava com cortes e arranhões, resfolegando. Ao cair, Contracorrente escapara de seu tato e tudo o que encontrava ao deslizar a mão em busca da espada eram as folhagens envoltas com uma umidade inebriante, a qual congelava seus ossos.

Porém, desde quando se importava com esses meros detalhes insignificantes? Poderia desprezá-los facilmente. Há quantas vezes encontrava-se da mesma maneira em situações, até mesmo, piores do que vivenciava agora? Não era relevante que na época era mais jovem, ou mais disposto. Ele próprio poderia confessar livremente o quanto julgava-se desgastado, por tantas frentes que tivera de assumir. Mas disso ele poderia tirar um benefício: ele tinha agrupado mais experiências. De fato, estava com habilidades mais aprimoradas, o conhecimento se expandido. Era capaz de agregá-las em uma malha inundada de preciosas jornadas empreendidas por ele, onde havia recebido conselhos e guardado temores, transformando-os em um novo conceito de se conquistar ao longo de pesarosos anos. Era como se esta malha encobrisse seu ombro.

Então por que ainda relutava? Tinha de desvendar o que acontecia. Fazendo isso, sentia que iria encontrá-la. Sua Silena. Sua querida e amada Silena.

Nós vamos achá-la, Annabeth. Percy descansa os olhos, uma gargalhada irrompendo a garganta. Costumava ter conversas com sua sabidinha em sua mente, quando sentia-se solitário ou refletia poder tocá-la em pensamentos. De fato, era algo improvável (sem levar em conta as inúmeras impossibilidades a se ascender), mas era uma maneira de tê-la por perto. De poder ter – nem que fosse mínima – uma impressão ligeira de que ela estava ao seu lado, segurando sua mão, encorajando-o, ajudando-o a realizar missões, a erguer a filha. Nós resolveremos isso, Annie. Já estivemos em situações parecidas, não é?

-Ora, bela dracaenae. –a sua voz sai com certo esforço, porém consegue sentir a cabeça um pouco menos pesada ao notar a mudança de pressão em sua lateral, olhando por certa perspectiva, aliviando uma tonelada do fardo em seu crânio. A sensação assemelhava-se a retirar uma lâmina envenenada de uma ferida aberta e sufocada em álcool. Ele levou os braços para cima, fingindo coçar o pescoço, não ousou tatear o que quer que estivesse pressionando-o. Só mais um pouquinho... –Não tem o que agradecer. Na realidade, se assim deseja, posso trazer um companheiro para dividir a recompensa.

Antes que pudessem impedi-lo, levou a mão a boca, ajustando os dedos na lateral dos lábios ignorando o gosto metálico e acre que invadiu seu paladar, e assoviou com o timbre rasgando o vento que perscrutava a área. Logo em seguida, ele é interrompido bruscamente pela excruciante dor lhe corrompendo a mente. A prepotência do peso atinge sua caixa craniana e ameaça rachá-lo ao meio. O moreno entra em um transe conspiratório onde apenas a dor se sobressai. Forçava com todo seu empenho não desmaiar, perder-se na inconsciência, mas era quase incapaz de segurar-se por tanto tempo. Os berros em sua cabeça altearam e ele levou as mãos involuntariamente para a área infligida, tentando afastar o que descobriu ser uma pata dez vezes maior do que um cachorro teria naturalmente. Um rosnado arranhou sua sanidade, e ele, exasperado, semicerrou os olhos, encarando apenas glóbulos cruéis e sanguinários de um escarlate puro bruxuleantes, como chamas vivas, antes de sua precária visão obscurecer-se mais uma vez. Soube de imediato o que era. Cão infernal. O que um deles estaria fazendo com uma dracaenae?

Então, subitamente, assim como começou, tudo para. Um tsunami parece engolir o rosnado e substituí-lo pelo silêncio denso, cuja versatilidade fixava-se em seus nervos, deixando-o frustrado, tragando consigo a pressão descomunal e desoladora a qual agarrara-se em sua cabeça. Os seus ouvidos passam a um processo lento de adaptação e alguns minutos depois pode escutar, de maneira fraca, bramidos e cicios estridentes, semelhantes a um basilisco apocalíptico se asfixiando por um rato radioativo entalado na garganta. Eram... sinais de batalha?

Não podia se dizer ao certo, já como sua visão teimava em retornar. Vamos, vamos, vamos, ele sussurrava, a cabeça abaixada e retraída em seus braços unidos, em uma posição baseada na interminável dor a qual o incomodava de um jeito impertinente. Acalmou as batidas do coração, respirou trêmulo e piscou. Esse sentimento de suas veias estarem explodindo dentro de seu crânio era praticamente palpável, e Percy poderia facilmente atribuir a possibilidade de sua cabeça estar prestes a estourar como um balão ao receber muito gás hélio.

-Percy, desvie-se! –uma voz reconhecida engasta no espaço a sua volta, o som aumentando de volume conforme acostumava-se a realidade de novo. –Percy!

Percy rola para o lado, acabando se enroscando na vegetação rasteira. Um estrondo aparece a sua direita e ele abre os olhos, forçando a vista. A paisagem é escura, a princípio, e embaçada, relacionando-se com uma lente desfocada. Mas após alguns segundos, as formas transformam-se em figuras nítidas, e consegue enxergar ao tempo em que a dracaenae é arremessada em uma depressão na terra e dissolve-se em pó. Ele vira a cabeça depressa e ganha uma pontada intensa no fundo dos olhos, mas é premiado com uma maravilhosa cena da sua adorável cachorra infernal, Sra. O’Leary, cravando os dentes no pescoço de seu parente – este raivoso, espumando por entre os lábios – eliminando-o com facilidade.

Apesar de estar em uma situação delicada, consegue conceder a passagem de um sorriso aliviado nos lábios. Apoia-se com as mãos no solo e ergue-se, equilibrando-se com fragilidade no campo.

-Bom trabalho, garota! –ele a parabeniza, exclamando com entusiasmo. Analisando a área encontra sua Contracorrente no local onde caíra. Corre até lá e agarra seu punho, seguindo para onde seu cão infernal o esperava, cujo rabo inerente balançava-se de um lado para o outro, demonstrando animação. Percy sentia-se satisfeito por ela haver atendido o chamado, e não o ter deixado na mão. Chegando diante dela, acariciou seu focinho, virando o rosto gargalhando quando ela o batizou com uma lambida gosmenta. –O que foi garota? Está preparada para mais uma turbulência?  

Sra. O’Leary latiu, curvando-se e arrebitando o traseiro, parecendo aguardar o dono brincar de pega-pega com ela. Percy rolou os olhos e deu uma batinha final em seu nariz.

-Agora não. –o sorriso de Percy dissolveu-se imediatamente quando notou perninhas atiradas no flanco de Sra. O’Leary. Ele aproximou-se de sua lateral e corrigiu-se. Não um par de pernas, mas dois. Franziu a testa e estancou no mesmo lugar. Seu olhar sobrevoou o rabo que continuava a esvoaçar para os lados, e percebeu mais uma figura encolhida, paralisada. Percy assustou-se, os olhos esbugalhados. –O que...?

Uma cabecinha acocorou-se nos ombros da cachorra, parecendo-se inseguro ao manter-se abraçado ao pescoço que mal conseguia ser rodeado pelos bracinhos curtos. De qualquer maneira, em seu rostinho aparentemente inocente um sorriso travesso brota nos lábios do garoto de cabelos encaracolados e dourados.

-Oi, Percy! Viemos resgatar você. –comenta, animado, de um jeito confiante. Ao contrário da expressão de outra cabecinha, com as devidas características faciais idênticas, porém, com a diferença de seus olhos escuros e traiçoeiros brilhando de assombro, as bochechas de um tom peculiar amarelado, seus braços segurando-se no gêmeo com temor, apertando o estômago do irmão que reclamava.

-Quíron nos mandou ficar escondidos na periferia do acampamento, e acabamos encontrando a Sra. O’Leary. Pensamos que podíamos ajudar o acampamento, mas ela enlouqueceu! E nos trouxe aqui... e você está aqui! E eu acho que eu vou... –ele parou, empertigou-se com as bochechas infladas, com um tom esverdeado, e inclinou-se para o lado, soltando um ruído grotesco pela garganta. Percy ouviu o som aquoso colidindo com o chão e contorceu sua feição em uma careta.

Os gêmeos de Hermes, novatos no acampamento, seus alunos mais agitados na última aula do dia. Entendia o porquê Quíron os havia mandado ficar longe da batalha; porém, por outro lado, agora eles estavam correndo riscos mais perigosos do que antes. Não havia ‘barreiras’ de guerreiros gregos dos campistas como havia no acampamento. Tirando ele e a Sra. O’Leary, eles estavam vulneráveis, e não tinham mais do que nove anos. Como poderiam lutar sendo que ainda estavam iniciando seu processo de aprendizagem?

Bom, as suas únicas formas de retê-los de monstros tinham de bastar.

-Ei! Alguém, por favor, me ajude? Isaac, Neil, Percy? –a voz conhecida rebateu e Percy voltou-se para o rabo da Sra. O’Leary, a qual a figura com fios prateados refletindo a luz do luar oscilava na metade do rabo negro que sacolejava, irrefreável. Percy arquejou, não conseguindo absorver o tamanho dos fatos o qual o confrontava.

-Holly?! O que você está fazendo aí? –perguntou, em um estupor resultante do choque inicial.

-Eu explico para você... se você conseguir me tirar daqui. –ela respondeu, a voz ainda espantosamente calma e doce. Percy pôde perceber seus olhos fechados, e seus músculos tensionados. O rapaz tornou a dar atenção a Sra. O’Leary, que inclinara a cabeça para o lado, curiosa, encarando o rabo em divertimento.

-Senta! –comanda, com a voz rígida, e é exatamente o que ela faz. Holly solta um berro quando o rabo pousa no chão e, por sorte, não se transforma em uma omelete exótico. Ops. Percy tampa Contracorrente e a guarda no bolso, em seguida dispara para a traseira do animal e salta para o rabo, tentando pará-lo. –Vamos, Holly. Pule!

A garota abre um dos olhos, hesitante. Fita-o, aterrorizada, porém logo assente com a cabeça em concordância, obedecendo-o. Examina o campo e é capaz de impulsionar o corpo para o lado, aterrissando na grama, cuja maciez amortece a queda. Percy bufa incrédulo, jogando-se para o lado em seguida. Experiências? Espera, desde quando ele precisava delas se ele apenas improvisava sempre quando se deparava com algum problema?

A garota arfava, respirando profundamente. Ela começou a rir, deleitando-se pela sensação da grama molhando suas costas, no entanto, o riso sumiu velozmente quando, de esguelha, percebeu os monstros descendo o declive na direção deles. Ela sentou-se, ereta, e os olhos saltaram das órbitas ao observar, atrás deles, uma corrosão de movimentos, a luta no acampamento. Paralisada, apenas ficou vidrada nos seus adversários, os quais tinha certeza não ter a mínima chance de vencer. Mas Percy poderia protegê-la, não é mesmo?

O homem parece ter avistado os monstros ao mesmo tempo, pois levantou-se apressado e ergueu Holly nos braços, acolhendo-a e disparando na direção da Sra. O’Leary, quem aguardava por ele alegremente, com a língua pendendo no canto dos lábios. Percy aconchega Holly atrás dos gêmeos e ela, sem relutar, abraça a cintura de Neil a sua frente, ainda soluçando com o mal estar. O filho de Poseidon salta atrás dos três.

-Corra, garota! –insta, esticando os braços o máximo que conseguia para alcançar e arrodilhar as três crianças. Sra. O’Leary de imediato arremeta-se para frente, ultrapassando qualquer distância possível a fim de despistar os monstros em seus calcanhares. Sombras estendem-se para todos os lados, e antes de ela mergulhar em um, Percy avisa com um tom sério e severo para Holly: -Você me explicará tudo isso mais tarde, mocinha.

E então, eles são englobados na massa escura em um passeio gratuito através das sombras sobre as costas da grande e forte cão infernal.

Tempo passado – casa de Annabeth.

Silena certificou-se de sua mãe haver sido arrebatada pelo sono novamente antes de se aprumar, sentando-se um tanto desconfortável. Não queria ser embalada em seus pesadelos mais uma vez; por vezes, sonhava com o caminho interminável de pedras negras as quais transformavam-se em prateadas e em seguida eram embaçadas pelo negrume como uma paisagem vestigial. As lembranças de quando e como dormira eram vagas, conturbadas, e ela apenas tinha a atenção das visões que a acobertaram. Lembrava-se da mãe, mesmo não sendo sua mãe, discutindo com Percy. Lembrava-se de Apolo, de alguma forma, com uma potente força raptando-o. E também lembrava-se de Nico, de ter apanhado sua mão e ele tê-la conduzido. Contudo, ele teria a guiado para onde?

Ele me trouxe de volta, a pequena pondera com os olhos ardendo, bom, mais ou menos.

Olhou para os lados, e notou a mão de Annabeth enroscada em seu tronco, como se antes estivesse abraçando-a. Silena deixou um sorriso deslizar pela sua face, terno e caloroso, e com cautela e delicadeza para não acordá-la, retirou a mão de sua mãe de sobre si e com a mão livre puxou um travesseiro para perto, deslocando-o a fim de ocupar e substituir sua saída. Enquanto isso, ela esticava as pernas para o lado, impulsionando-se para fora da cama, mordendo os lábios em frustração. Annabeth resmungou algo indistinguível e seus dedos fecharam-se na borda do travesseiro, levando-o ao perto enquanto virava de lado. A garota solta nesse momento a borda da fronha e suspira, aliviada. Annabeth estava de costas a ela, encolhida, com a testa franzida e o semblante contraído, como sentisse dor. Silena desvia o olhar para a janela.

Lá fora, o sol ainda não havia se erguido. Seus pés moveram-se quase involuntários para perto do molde quadricular incrustado na parede. Aconchegou os braços no parapeito, acomodando a cabeça entre eles, e ficou fitando a imensidão descomunal e implacável das estrelas. As estrelas cintilavam, brilhavam e pulsavam em meio a obscuridade, destacando-se com sua luz tênue e vaga, despejando a única luz a qual iluminava o corpinho miúdo e os contornos inconsistentes da garota. Não notou quando sua mão levantou-se, sustentando-se no plano pelo qual barrou-lhe a passagem. Queria tocar as estrelas, tocá-las e correr com elas lá no céu. Elas podiam ter uma própria cortina de apresentações, e talvez a estrela cadente fosse, na realidade, alguma desajeitada estrela que caiu do palco. Silena suspirou, sonhadora, porém desacreditada em tais contos de ninar. Gostava de pensar assim, era mais fácil no mundo em que a enclausurava. Contudo, sabia que elas não se passavam de rochas – rochas que além de tudo estavam mortas, inconstantes no espaço.

Embora permanecesse com a mão encostada no vidro translúcido, ele absorvia seu calor e a presenteava com um vento gélido, congelando sua pele e deixando sua palma em um estado dormente, adormecido no reino glacial. Ela não se importava. Queria apenas fazer a coisa certa, pelo menos uma vez. Queria poder ser capaz de reparar tudo, de não estragar os eventos. Queria deixar seu pai orgulhoso, e a mãe... ela queria apenas ter a chance de não desapontá-la, desejava mostrá-la o que ela havia se tornado.

Porém, algo a perturbava. Ela havia realmente se tornado alguém? Era apenas uma criança. Seus únicos feitos, de fato, fora ser capaz de perder seu bracelete, colocar-se em perigo, e assistir incapacitada as pequeninas formas reluzentes as quais nunca poderia alcançar. Uma criança que mal conseguia manter-se em segurança mesmo fora de sua realidade. Apenas uma criança que conseguia destruir a vida da mãe mesmo antes de nascer. Por que tinha de ser assim? A essa altura, deveria ter aprendido a lição. Reunir a família. Sim, mas como?

De esguelha, percebeu uma cortina branca tremular há alguns metros de distância. Andou a passos lentos em sua direção, permitindo a mão desgarrar-se da barreira congelante e lustrosa e estendeu-a a frente, agarrando a cortina e empurrando-a para o lado. Uma porta revelou-se por trás, levando a uma varanda que antes não havia reparado conter no quarto. Sentiu a mão latejar, no entanto não incomodou-se com o breve desconforto. Deu mais alguns passos para frente, pousou a mão sobre a maçaneta a qual abriu-se sem demonstrar resistência ao girá-la.

Silena não se incomodou por ter perdido suas meias durante a noite, não se preocupou em procurar chinelos, e não deu a menor importância em o que estar vestindo ser somente uma camiseta antiga e aparentemente miúda pertencente a seu avô Fred, embora fosse larga para o corpo dela, acabando por deslizar pelos seus ombros, seu tecido pendendo até alcançar seu joelho. Silena muito menos sentiu o frio quando andou até na barreira de proteção que rodeava os limites da área. Esta barreira constituía-se em uma plataforma onde se apoiavam colunas perfiladas em um espaçamento de, no máximo, dois pés, de mármore prateado com traços de uma pintura grega; acima, sombreando, havia o parapeito, de material igualmente bem talhado; nas bordas quando ela se divergia para os lados, havia um bloco de mármore a fim de salvaguardar qualquer possibilidade de queda. A ponta de seus pés descalços bateram na base da sacada, na barreira levemente inclinada para cima em que se continha a plataforma, e ela elevou-os para encaixá-los na própria onde ficavam as colunas que adornavam a barreira, sustentando o parapeito, onde ela circundou e inclinou-se para frente, observando abaixo de si. Realmente era uma altura maior do que esperava.

-Silena! Não acocore-se em todo canto dessa maneira. Você pode cair, filha. –uma voz sussurra atrás da garota e rapidamente ela joga seu corpo para o lado, tentando localizar de onde aquela voz viera. Mas não havia ninguém atrás de si. Apenas o vento cortando o ar com um sibilo, cruzando em seus cabelos desarrumados, fazendo-os esvoaçarem. Seus pés escorregam de onde estavam presos e ela cambaleia, tentando segurar-se pelo parapeito, acabando por se firmar no último instante quando envolve barreira de mármore com os braços a sua frente. Seu estômago estava contraído pela agitação, seus pés planavam a poucos centímetros do chão, e sua visão estava abaixo, onde uma queda vertiginosa provocava-a. Após alguns segundos, tateia o chão com a ponta dos dedos, saltando em segurança no solo úmido pela umidade fria da noite, ainda tentando estabilizar seus batimentos cardíacos disparados pelo choque do susto eletrizando-a, como se houvesse encostado o dedo em um fio de tomada desencapado.

-Não vou não, pai! Não se preocupe comigo... –o sussurro prolonga-se, parecendo vir de seu outro lado, causando-lhe um arrepio na espinha. Ela torna a cabeça para sua direção, mas não há ninguém exceto o horizonte infindável, onde já não podia recortar e distinguir a divergência entre o céu e a terra. No entanto, ela reconhece aquela voz, porque era a mesma voz que escutava quando assistia uma gravação sua pela tela de um monitor quando o pai resolvia filmá-la, a mesma voz que pronunciava as suas palavras; a sua voz. E então segue-se uma risada doce a permeada de mistério. –Você é muito negativo, nada vai acontecer comigo.

Ela engole em seco, as mãozinhas cerradas tremendo não só de frio, mas de pavor. Era a voz dela, e a primeira voz discerniu ser o timbre do pai. Mas de onde vinham? Nada a acompanhava. A varanda onde ela se encontrava estava vazia, as cortinas entranhadas na abertura da porta sacudiam-se, adentrando no cômodo escuro do quarto da mãe, onde deixara a porta escancarada. O piso claro do mármore não cultivava nenhum móvel ou enfeite, e a barrreira era apenas possível enxergar pela suave e quase extinta luz vinda das formosas estrelas.

-Eu sou muito negativo? –escutou a voz do pai murmurar crepitante atrás dela, podia imaginar seu sorriso brincalhão e seus olhos idênticos aos dela fitando-a curioso e radiante. Podia, também, visualizar cada detalhe do traço do rosto que ela analisava tanto desde quando ela conseguia se recordar. Já havia linhas cansadas na testa, embora ele se esforçasse para ocultar, mantendo o semblante sempre valente e elegante. Tinha olhos mais experientes também, e sempre sabia quando a pequenina tentava passar despercebida por ele no meio da noite para se encontrar com Blackjack e bajulá-lo com donuts para levá-la em um passeio noturno. A gargalhada do pai ficou mais nítida. –Eu só quero protege-la, querida. Você é...

-‘...o bem mais precioso da minha vida’, eu sei, eu sei. Você sempre diz isso! –a garota escuta a voz rente ao seu ouvido. Seus passos recuam para trás até ela colidir com a extremidade da varanda, no canto onde o muro fazia sua curva onde suas costas apoiaram-se com sua rigidez provocando-lhe uma pancada amortecida pela tensão formando-se em seu âmago. Consegue apreciar o timbre de sua voz distante e notá-lo exasperado. Porém, mesmo com a barreira atrás de si, ainda consegue ouvir o diálogo seu e do seu pai, vindo de ambos os lados de sua cabeça, impregnando-se em sua audição, cada vez mais claros.

-Porque é a verdade. Eu não saberia o que fazer se fosse perdê-la. –dessa vez, o som é mais brando e ela tem uma forte impressão das mãos do pai rodeando sua cintura e baixando-a de onde quer que poderia estar pendurada, mesmo sendo impossível. Seu pai não estava lá, ela estava encostada em uma concreta parede de mármore, e estava no chão. Ela sente-se desabar e a visão tornar-se fosca, fecha os olhos, com os músculos retesados e os braços apegando-se as pernas, trazendo-as ao peito e afundando sua cabeça nos joelhos, tentando respirar. Seus pulmões pareciam estar inundados de vermes, retorcendo-se e bloqueando a troca de ar. Podia vagamente lembrar-se daquelas palavras. Era como se resgatasse uma memória perdida no mar túrbido de sua mente.

-Claro, pai. Eu também não, se fosse o contrário. –sua voz melodiosa agora divaga a sua frente, tornando-se mais firme e audível. Silena abre os olhos, mas o chão onde senta está refletindo uma claridade amarela e laranja, e sua aparência já não é de mármore, e sim de um material liso e espelhado. No entanto, ainda conseguia sentir a textura do mármore, assim como se olhasse, pelo canto do olho, podia ser capaz de enxergar a varanda e não onde, se olhasse diretamente, a varanda havia sido transfigurada. –Porém, você sabe muito bem que já sou grandinha que já poderia combater até mesmo a Medusa!

-De fato você já está maior do que ano passado, princesa. –a garota podia ver o pai agora, uma imagem um tanto disforme, como um holograma, assim como a figura de si mesma alguns meses antes, ao lado do pai, ambos na beira de um muro protetor de aço inexorável. O pai ria, com os cotovelos aplanando à barra da proteção, onde estava de costas, observando a figura fantasmagórica da filha que se encontrava a sua frente, com a face ruborizada, os braços cruzados e uma postura de protesto. Silena recordou-se, então, do passeio que o pai fizera com ela, poucos meses antes. Ela tinha se encontrado com a avó, Sally, a qual dera a ela o vestido azul safira em que usava naquela lembrança, com a franja puxada para trás, presa por um grampo para que assim não caísse nos seus olhos astutos. Silena sabia que era sempre o pai que arrumava as suas mechas de cabelo loiros e de súbito, ali naquele canto inexistente no campo da memória substancial daquela recordação, sentiu uma profunda falta do carinho do pai, de quando ele ralava com ela quando saía loucamente do chalé pela manhã, fazendo-a voltar para se trocar adequadamente e fazendo-a sentar-se em seu colo para que pudesse pentear com afeto as madeixas que quase sempre prendia em um rabo de cavalo, enquanto conversava com ela com o timbre brando sobre sonhos e histórias, assim como às vezes, sobre suas prioridades no dia. Ela retraiu-se mais apertado no cantinho, temendo. Até que a voz com ar risonho do pai acrescenta: –Mas talvez você tenha de rever um pouco esse conceito em relação a Medusa.

-Mas é verdade! Eu te convoco para uma luta agora, sir Perseu! –Silena observa a si mesma enquanto afasta-se um pouco do pai e agacha-se, tirando da bota uma adaga de bronze celestial, a qual herdara da mãe, e a empunha nas mãos. Não sabia, de fato, o porquê via claramente aquela lembrança, contudo não importava. Seu queixo apoia-se no joelho, a testa franzidas. Fora naquele dia em que ela escutara a história do pai, de quando lutara com o próprio monstro que mencionara, juntamente com a mãe. A outra Silena sustenta o olhar de seu pai, cuja sobrancelha arqueia-se, para em sequência sacar sua caneta, destampando-a. A garota “holográfica” destemida murcha os ombros de maneira solene enquanto Contracorrente desdobra-se, alongando-se em sua espada, o punho da arma conciliando-se em perfeita concórdia com as mãos do pai, este desgrudando-se da cerca e aproximando-se da filha. Sua altura ultrapassa muitos centímetros da altura miúda da garota, portanto a cabeça da garota entortou-se para trás a fim de permanecer com os olhos fixos nos dele. Ela intercala o olhar entre a espada e sua adaga, correndo sua visão com um pavor ligeiro ocultando-se dentro de si, dá um passo para trás e força um sorriso de lado.

-Talvez seja melhor nós apenas... –Silena nota si mesmo pigarrear, coçando o nariz com as costas da mão onde a adaga estava sendo segurada. Ao redor as pessoas mal parecem reparar na dupla de pai e filha em riste com armas. –Você pode me contar a sua história da Medusa de novo?

A paisagem começa a desbotar, desvanecendo-se aos poucos. Silena endireita sua postura, com os braços confortavelmente repousados já relaxados sobre as pernas. A cabeça está inclinada para o lado, um calor aquecendo seu coração, derretendo qualquer resquício de temor ou resistência dentro de si. Antes da imagem sumir por completo, Percy solta sua gargalhada ribombante e guarda Contracorrente no bolso, remetendo-se para frente e apanhando a outra Silena nos braços, de forma que ela não conseguiria escapar. Certamente seria de certa forma perigoso carregar uma garotinha de seis anos nos braços com essa segurando uma adaga dilacerante entre os dedos, mas não com Silena. Ela não a deixou sequer tocar em seu pai, que aconchegou-a perto de si, com um dos braços abaixo dos joelhos da filha e o outro nas costas, com ela passando os braços pelo seu pescoço.

-Está bem, eu contarei, minha princesa. Quando chegarmos em casa. –o pai segue em direção à saída, com a delicada figura em seus braços, delineando seus traços com um misto divertido e paternal, inclinou-se e beijou o topo de sua cabeça, que já alojara-se confortável em seu peito.

Silena pisca, desvencilhando-se de uma lágrima acumulada no canto dos olhos, riscando sua pele com a ardência da privação de sua companhia. Será que o veria de novo? Se conseguisse impedir que sua realidade imploda, sim. E assim, permitiria negar-se de ver a mãe até o último suspiro – e assim ela nunca a veria crescer, desenvolver e criar laços com o mundo e com sua própria natureza. Será que ela conseguiria aceitar isso?

Ter mamãe ao meu lado para me apoiar conforme os dias passam nunca foi uma opção, ela chacoalha a cabeça, abaixando as pálpebras com força. A agitação voraz fez sua cabeça estourar em pontadas agudas e finas, externando-se em uma comoção lancinante. Parou de súbito, e sentiu-se desnorteada e zonza por um instante. Sua mão direcionou-se para o colar de contas enroscado envolta de seu pescoço, respirou fundo três vezes, quando encontrou as bordas do anel da mãe, tocando com a ponta dos dedos o tracejado da concha, de certo aspecto segmentado. Abriu os olhos e levantou a cabeça; seu pai ou a outra Silena não estavam presentes, não havia outra paisagem senão aquela sacada, aderida junto ao quarto de Annabeth. Tudo fora engolido pela noite mais longa de sua vida.

A garota impeliu a cabeça para trás, estreitou os olhos e contou, ou tentou contar, as estrelas que lampejavam lá no alto, contudo ela logo confundiu-se na passagem de estrelas. Um punhado aglomerava-se em uma mesma área, enquanto outras dispersavam-se pelo ampla escuridão infindável e sem profundidade. Ela levou as duas mãos para a nuca e retirou o cordão de contas, deixando-o guardado na palma das mãos abertas ao ajeitar a cabeça no bloco de mármore atrás de si. Examinou-a detidamente, as seis continhas, segurando cada uma com indicador e dedão, rolando-as no dedo e depois soltando-as em seguida. Pegou o anel da mãe, encarando-o por dez segundos, ou mais.

-Você não vai desaparecer, vai? –perguntou em um sussurro ciciante. O parco brilho quase insuficiente das estrelas transmitia uma faixa prateada faiscante em seus olhos, fazendo o anel reluzir. Repôs o colar de volta no pescoço, mas manteve o anel em seu dedo, brincando com ele a fim de se espairecer. Em todos os anos que se passara, ela nunca pensara que poderia um dia sentir realmente o amor da mãe com tanta nitidez; afinal, ela sempre a amara. E por que não quisera acreditar nisso quando lera as palavras pela primeira vez? Com a cabeça deposta em seu apoio improvisado, ela se põe a degustar o horizonte. A paisagem é bela, conservadora e contemplativa. Mas ela não conseguia ver isso, eram todas peças de um quebra cabeça arremessado em contratempos. Era apenas uma pequenina criancinha, em todas as circunstâncias. E sempre refletira o quão injusto podia ser a vida; todos tinham de ter uma mãe, e, é claro, um pai. Mas ela não tinha um deles, porém sabia a magnitude que poderia alcançar quando todos estavam unidos. Há alguns dias desfrutara do sentimento amargo de um cálido desejo de traze-la de volta, de poder vê-la ali quando ela conseguisse acertar sua primeira flecha no alvo, quando ela conseguisse vencer uma corrida com Thalia, ou quando ela fosse capaz de vencer o pai em um combate. Queria ouvir a voz dela rindo de suas futuras piadas, abraçando-a e dizendo que estava orgulhosa. O orgulho dela em poder saber como ela poderia crescer. Queria vê-la ali, todos os dias! Na escola, nos raros dias quando o pai se atrasava alguns minutos, ou quando ambos caminhavam de volta para casa ou perambulavam percorrendo parques e pontos, ela podia observar famílias com seus filhos, filhos correndo em direção a mãe, com um sorriso satisfeito no rosto, e Silena em todas as ocasiões via-se pensar se aquela era uma forma dos deuses escarnecerem dela. Hera é a deusa da família, não é? Papai dizia que ela guardava rancor de mamãe... será por isso que ela tirou-a de mim? A pequena... suspirou. Talvez devesse esquecer isso. Sua mãe sempre estava ali em todos os momentos, embora ela nunca tenha a visto. Afinal, e aqueles dias em que seu pai a embalava em um cobertor nos dias inebriantes e a abraçava forte em volta da fogueira do acampamento, deixando-a se enrodilhar em seus braços, ficando apenas ali, sentindo-se segura ao escutar a voz dele conversando com os outros campistas. Gostava de inalar o ar natural do acampamento perdurado na camiseta do pai, preenchido de odores marítimos que a confortavam. Ali, ela podia fechar os olhos e imaginar a mãe acariciando seus cabelos, acalentando-a para o sono, onde quase sempre ela sonhava com ela. 

-Silena? O que está fazendo aqui fora? -em um lapso de segundos tomados pelo susto, a garota escondeu o anel por entre as mãos fechadas ao mesmo tempo sobressaltando-se, girando a cabeça para mirar Annabeth em pé com o corpo enrolado em uma das cobertas trazidas da cama. A garota seguiu a mãe enquanto essa se abaixava e sentava-se ao seu lado, desenrodilhando a mão de dentro da espessa camada aquecida ao passar os braços pelas costas da pequena, abrigando-a perto de si com um calor que a garota mal percebera sentir falta, alimentando seus músculos congelados mais uma vez, a privação ardilosa desarticulando-se. Annabeth atritou a palma pelos braços da pequena, tentando produzir calor. –Você está fria! Nunca mais faça isso, querida, não se esqueça de pegar uma roupa aquecida antes de sair para o ar gélido.

Depois de todo os anos esperando, ela havia sido repreendida – pela mãe. Um sorriso desabrochou-se em seu semblante, fazendo Annabeth franzir a testa, sem conseguir compreender. A pequenina anui afirmativamente a cabeça com uma energia pulsante fazendo a mãe dar um sorriso verídico raro nas últimas horas.

-Está bem, por que você escolheu vir aqui nessa madrugada? –reiterou a mãe, tocando com o dedo o nariz de Silena, fazendo-a contrair a expressão e fungar. A garota olha para as mãos cerradas por um instante, e murmura alto o bastante para ser audível.

-Vim aqui pensar. –ergue o olhar e ocupa-os no espaço. Segurou um soluço preso na garganta, a qual começou a se apertar. Eram muitas coisas despejadas de uma só vez. Ela tinha a impressão de se afogar em uma redoma catastrófica dos perfumes do chalé de Afrodite, aquela substância quase fazendo-a tossir sem fôlego e deixando sua cabeça desorganizada em um turbilhão de pensamentos. Apolo não estava mais ali para ajudá-la. E ela sabia que tinha de ser forte, como o pai ensinara. Sobe o olhar e desagrega os pensamentos englobados. Seu punho fecha-se com mais força, e ela sente com clareza uma dorzinha elétrica e levemente pungente percorrer sua palma com a pressão do objeto contra a pele, atingindo profundidade.

A resposta não surpreende Annabeth; analisando os atributos da pequena não é de se espantar que necessitasse de um momento reservado para seus pensamentos. Porém, em seu íntimo, ela alimentava esperanças secretas de descobrir o que realmente Silena precisava. À essa altura, já sabia o quão longe de casa ela parecia estar, entretanto não era como se ela se importasse em voltar para lá mais cedo – “Ou será que ela não pode?” Annabeth morde a língua para não questionar-se em voz alta e acabar com a lírica sonolência inocente da garotinha que se apegava no tecido para se proteger contra o frio. A loira tem a impressão de algo pesado e desdenhoso flutuar sobre suas costelas e então segue a visão de Silena sobre as estrelas.

-Você gosta delas? –observa, as estrelas estavam com um brilho mais intenso aquela noite, talvez fosse o dia de sorte de Silena achar as maravilhosas descobertas a olho nu, podendo pelo menos contemplar em serena despreocupação aquele fim de dia. Ou seria o começo de outro? De qualquer forma, sempre quando Annabeth tentava arranjar uma minúscula brecha de liberdade dos repugnantes monstros, em geral, na maioria dos dias mal conseguia enxergar um vestígio sequer do fulgor estelar; quem diria da lua.

Silena dá de ombros.

-Elas são bonitas. –começa, e então pensa melhor, suspirando brevemente com uma ruga formando-se na testa. –Papai me conta sobre as histórias de cada uma quando não consigo dormir, diz que há uma especialmente para minha mamãe, devido a bela e admirável coragem e altruísmo dela.

-Seu pai deve ser alguém muito atencioso, e deve gostar muito de você. –observa Annabeth, tentando absorver a informação que recebera espontaneamente da garotinha. A pequena assente, acompanhado com outro suspiro dessa vez carregado de melancolia e compaixão. Annabeth pergunta-se o porquê de sua tristeza; não deveria ficar feliz e animada com esse pensamento? Talvez sentisse falta dele, e pensar em sua presença doía quando estava longe de sua companhia. –Quer saber, você vai encontrá-lo logo. Estamos tentando sinalizar onde ele pode estar.

-Eu sei que vou estar com ele. Logo. –Silena lhe oferece a resposta vaga e concisa, ignorando sua segunda frase. Ela retira os olhos grudados da tela refulgente no alto, e mergulha a cabeça na barriga de Annabeth, a qual surpreende-se, afagando os cabelos da pequena após um lampejo de paralisia tomar conta de seus membros. –Eu quero ficar com você para sempre. Por que eu não posso ficar com você para sempre?

Percebeu, assustada, algo úmido molhar sua camiseta. Silena chorava desesperada, abraçando-a apertado, e ela não sabia o que fazer. Apavorada, tentou responder, mas não vinha nada em sua boca. Ela, que sempre tinha uma alternativa de disparar contra alguém, não encontrava nada para confortá-la ou responder a pergunta aparentemente simples, embora singular, daquela criancinha a quem criara um sentimento confuso ardente e massacrante. Encontrou-se pela primeira vez indefesa e despreparada, quando antes pensara ser de fato eloquente. Fez a única coisa que pensava poder ser capaz de proporcionar à ela, refugiou-se contra seu corpo e tentou acalmá-la, murmurando palavras reconfortantes e mansas a fim de conter seu desespero. Mas como poderia cessá-lo se ela própria estava prestes a se exasperar? Era uma aflição impossível de submeter em respostas, e tentou apenas concentrar-se na pequena garotinha, abrigando com uma das mãos os pezinhos ainda pequenos que se insinuavam frios e suados.

-Está tudo bem, está tudo bem... –sussurrava. Contudo, Silena não parecia escutar, continuava borbulhando em lágrimas, soluçando e arfando, enfadada. Um suspiro trêmulo escapou de Annabeth e ela descobriu-se com a parte externa dos olhos ardendo enregeladas. Ao fechar as pálpebras, ela notou brotar uma gota que escorreu pelo seu queixo, e ao mesmo tempo ouvia os sussurros lamuriosos e angustiantes da garota em seus braços.

-Por que não posso fazê-la ficar comigo? Por que ele não simplesmente a fazer voltar? Eu nunca poderei aprender com você, ou correr para você quando me machucar ou entregar uma carta e um abraço de dia das mães. Eu nunca vou poder ao menos dizer ‘feliz dia das mães’ enquanto todo mundo pode, ou simplesmente dizer mamãe. Não vou... por quê? –Annabeth não compreendia o que ela falava, não conseguia por mais que tentasse. Do que ela estava sussurrando? Por que as palavras tornavam-se indistinguíveis quando chegavam em seu ouvido? Por que ela não era capaz de se lembrar das palavras por mais que se esforçava para recordar? Ela apenas queria tranquilizá-la, pois vê-la ali, tremendo e chorando como se algo a machucasse e retirasse dela uma preciosidade muito importante, fazia seu coração estilhaçar-se e esses estilhaços atingiam-na de maneira dolorosa, deixando-a mais pesarosa e alerta.

-Ei, ei... –acariciou suas costas e por fim tentou enxergar seus olhos, sua face. Mas essa se mostrava escondida em sua camiseta, e no cobertor, e recusava-se a aparecer. Annabeth não forçou-a, portanto sua opção foi curvar-se sobre a pequenina e apoiar seu rosto no topo da cabeça da filha desconhecida, beijando os cabelos com os fios espetados para todos os lados, loiros e insurgentes. –Silena, o que aconteceu? Estou aqui, aqui com você. Confie em mim, eu vou sempre estar aqui. Por que não estaria?

Silena move-se desconfortável no colo dela, mas não afrouxa o aperto ao redor de Annabeth. Depois de alguns segundos tentando reconstituir o oxigênio que lhe faltava, ela paulatinamente eleva a cabeça, ainda semienterrada na camiseta inundada da mãe. Ela engole um nó embaraçado da garganta, e pisca os olhos esverdeados ainda cintilando como as estrelas lá no céu.

-Eu confio em você, confio mesmo. Mas mesmo assim você não entenderia. –ela funga e seu lábio inferior treme, o rosto enrubescido e apavorado, traçando contornos emudecidos em uma dor incompreensível. Annabeth não retruca, porém fita os olhos obstinados na pequenina, a qual afrouxa um dos braços firmes e fortes e sustenta a mão delicada na bochecha da loira. –Eu sempre quis encontrar minha heroína, Annabeth. A minha heroína implacável que já se foi faz tempo. Mas quando finalmente eu a encontro eu tenho de perdê-la mais uma vez. Eu nunca, nunquinha, desejaria desapontá-la; mas eu queria, pelo menos uma única vez, ser uma heroína como ela e poder salvá-la, alguém quem eu sei que não posso salvar, embora essa pessoa tenha dado a vida por mim. Eu quero conselhos, conselhos que só posso conseguir com você, porque minha cabeça está dando tantas voltas que pareço estar em um balanço que nunca para, e eu quero que ele pare, mesmo sabendo que quando ele parar ele possa arremessar-me para longe.

Mesmo sem conseguir acompanhar ou trilhar um raciocínio completo, Annabeth estudou o semblante temeroso da pequena, sorriu compreensiva e compadecida com o canto dos lábios, imitando o ato de Silena, ela também roçou a mão na bochecha da filha a quem daria seu último suspiro e transmitiu-lhe o que tanto esperava, uma paz e um conforto estimulante.

-Ser um herói não significa salvar todos ao seu redor, querida. Há sacrifícios, na maioria das vezes. Você já leu os mitos? –apontou para os céus, onde provavelmente estaria guardada todas as histórias, fazendo uma pausa. Ao voltar-se para Silena, notou-a afirmando com a cabecinha em relação a pergunta, os queixos apoiados ainda na camiseta de Annabeth, as testas franzidas unindo-se no ponto acima do nariz com os olhos consternados presos na face da loira, os lábios uma fina reta de concentração. Annabeth deu-lhe um sorriso brando e doce. –Porém, o verdadeiro significado de ser um herói é ter a coragem necessária para realizar aquilo o que é certo, mesmo o quanto pareça errado aos seus olhos. É conhecer o melhor, e confiar não só em si mesmo. É tomar decisões imprecisas que eles mesmo temem.

-Eu não entendo... –a pequena retorceu um bico para o lado, franzindo ainda mais as sobrancelhas, a filha de Atena constatou uma certa inquietação súbita na garota, virando o rosto, Silena sentiu uma ardência subir no nariz e deu um espirro longo mirando distante da mãe, fungando em seguida e torcendo o corpo novamente para o colo acolhedor da loira, com Annabeth medindo sua temperatura encostando o dorso da mão em sua testa e bochecha. Com a bochecha rosada e o nariz escorrendo, os olhos fatigados como se não houvesse dormido em nenhum instante da noite. Silena coçou a testa, ostentando uma expressão determinada. –Eu quero ser uma heroína.

-E você pode ser. –Annabeth sorriu, tentando ajeitar as madeixas de uma Silena sonolenta, com as pálpebras quase fechando-se, a cabeça inclinada, as pernas em torno da cintura da mãe com firmeza como se ela fosse desaparecer, os braços movidos para o pescoço. Annabeth lembrou-se com alegria de uma memória perdida, quando ela era menor do que Silena e permanecia assim com o pai, antes do pensamento de fugir de casa trotar para sua cabeça.

-Como posso ser se não tenho minha própria heroína lá para me ensinar? –Silena continuou indagando, arrumando as costas e levantando levianamente o queixo, ou tentando, com a cabeça cambaleando. Passou da hora de voltar para a cama, não é?

-Você tem seus passos, e esses passos você pode seguir. Você pode se tornar uma grande heroína assim como ela. –assegurou-lhe mansa. Annabeth expirou, e puxou a coberta que se instalava para fora da varanda, entre as fendas das colunas de mármore de proteção. Silena ficou calada por uma fração de segundos, tentando lhe explicar com cautela o que a perturbava, o que causava-lhe um grande peso em seu peito.

-Eu tenho medo. Eu quero tê-la por perto.

A brisa da noite rasgou o ar, retalhando-o com sua frieza apática. Silena manteve seu olhar pousado em Annabeth, apesar do cansaço que sentia afluir sobre si, mas ela parecia distraída. As mãos da mãe procuraram as da garotinha e enveloparam ao seu redor, fixando-se nos traços que desenhava ao longo da pele de Silena.

-Alguns sacrifícios valem a pena...

Silena não respondeu. Tentou abafar um arquejo, e engolir um choro contido, deteve sua vontade de sacudir os ombros de Annabeth dizendo o que a aguardaria para o futuro, para que de modo algum o encaminhasse ou para pelo menos descobrir uma maneira de pará-lo, de não deixá-lo proceder. Sua boca começou a secar, como se houvesse engolido um punhado da areia do deserto árido e ardiloso. Iria prosseguir na conversa com ela? É claro que sim, talvez não soubesse se ansiava por ouvir o que tinha uma absoluta certeza de que sua mãe falaria, mas desde quando sonhava em trocar palavras como essas com sua heroína, bem diante dela, confortando-a? Ela nunca mais poderia ouvir seus conselhos, portanto o melhor era aproveitá-los agora. Pressentia que devia escutá-la antes de voltar; pois queria ardentemente entendê-la.

-Mas e se minha heroína fez algo que para mim parece tão errado, tão injusto? Ela pode ter sido uma grande heroína para mim, mas ela fez algo que nos separou, e nos deixou muito e muito longe. –seu timbre começara a titubear para um vibrante e trêmulo, Annabeth balançou a cabeça, espantando qualquer lembrança desapegada e focou-se na pequenina. Com um tom leve e prudente, lembrando a Silena das tardes pacíficas na beira da praia do acampamento quando seu pai ensinava-lhe a estar sensível a correnteza do reino de seu avô, explicou.

-Às vezes, Silena, o certo e o errado andam em lados paralelos, próximos um do outro, de tal maneira que eles se entrelaçam formando uma fina linha quase inseparável o qual aparenta ser impossível diferenciar um do outro. Temos de compreender, assim, os dois lados do emaranhado. Pode parecer que sua heroína fez algo que tenha separado ambas, e isso de fato parece errado, talvez eu posso não conhecê-la, mas eu não tenho dúvidas de que a escolha foi para um fim honrável e procedente de boas coisas. Portanto, tente separar os fios entremeados. Eu creio que em algum lugar distante ela está lhe pedindo perdão por tê-la deixado tão longe de si. –Annabeth deixa um ponto para sua justificativa instalar-se no coração da pequenina. Acariciando as bochechas rosadas da garota, ela inquere: -Você irá perdoá-la?

Os olhos esverdeados analisam-na admirados e com um respeito renovado associados à mãe. Como se desabrochasse uma flor na primavera, de uma noite congelada para uma manhã com o esplendor do sol, ela percebeu que nutria um ressentimento misturado a culpa, como os fios entrelaçados os quais Annabeth mencionara. Por que nunca assimilara isso desde o início? Um ressentimento por nunca ter sido possível estar perto dela. Talvez, lá no fundo, sentisse um remorso crescer ao pensar que a mãe tomara a escolha que apenas a afastara dela, embora superficialmente cancelasse esse pensamento tolo que apesar de tudo acreditava ser falso – o que certamente era. Silena desvencilha as mãos do carinho de Annie e a laça com outro abraço, dessa vez não tentando impedir o choro de vir.

-Eu sempre perdoarei minha heroína, Annie. –e abaixa a voz, até não se passar de um sussurro rouco. –Ela nunca teve escolha, na verdade. Talvez a culpa tenha sido minha... 

-Sempre temos escolhas, Silena. –Annabeth a interrompe, correspondendo ao afeto, enterrando a cabeça nos cabelos da menina, murmurando ao seu ouvido: -Lembra-se do que disse sobre o certo e o errado? Não julgue a si mesma dessa maneira, princesa.

Silena pôs-se a se aninhar no colo de Annabeth, chorando até não restarem mais lágrimas para derramar, até a voz engrossar e sua língua pesar, até que o desespero acobertasse a tristeza, e até a serenidade dos murmúrios da mãe atravessarem e ruírem o exaspero. Estava cansada demais, confusa demais e um imenso buraco surgia em seu peito pela falta do pai enquanto uma lacuna era preenchida pelo encontro com a mãe, e isso a deixava com apenas uma vontade de afundar cada vez em seus sonhos.  

Mal conseguia estabelecer seus sentidos e sincroniza-los com a consciência quando seu corpo foi carregado, a cabeça deitada nos ombros da mãe, as pernas ainda enroscadas na cintura e os braços segurando-se em seu pescoço. Annabeth ergueu-se após maçantes e dilacerantes minutos que pareciam nunca terminar. Com o cobertor como uma capa, ela dirigiu-se até o quarto, saindo do ar frívolo da noite e fechando a porta da varando com os tornozelos. Arrumou Silena na cama, e a garota reclamou pela ausência de seu toque. Rapidamente, Annabeth ajeitou-se ao seu lado e Silena abraçou-a satisfeita, com sono e bocejando.

-Sabe, eu pensei no que você havia dito sobre Percy. –a loira fala baixinho, para não incomodar a audição letárgica da pequenina. –Eu... eu estava errada. Completamente errada. E não consigo deixar de pensar o como fui estúpida em permitir que obscurecessem minha visão desse jeito, e nas palavras que disse ao meu Cabeça de Alga.

Silena não lhe propõe a resposta demandada pela mãe por um tempo, levando Annabeth a pensar por um segundo que a pequena já teria caído em um sono nebuloso, ou que não ouvira com clareza suas palavras. Entretanto, Silena move-se, esfregando seu rosto na barriga da mãe e sentindo seu cheiro, perseverante em não esquecer-se dele. E com a vozinha onírica, compassiva e aveludada revela:

-Heróis também são aqueles que admitem que estão enganados, não é? Se você está errada, há uma maneira simples de consertar isso. Percy vai entender, afinal, vocês se ama-aaaa...

Silena não termina a frase pois o sono dominou-lhe suas entranhas e fê-la disparar para longe da realidade. Annabeth não precisou que ela terminasse. Pois eu o amo, e o Cabeça de Alga vai sempre estar lá... Fechando os olhos, a única coisa que pensa é em seu bobo pertencente aos mares. Como ele estaria? Será que ele a perdoaria? Estaria tendo algum pesadelo? Ou será que estava babando no travesseiro em uma ponta do colchão como sempre ficava? Sentia falta dele, e essa falta extenuava-se, exacerbando até criar uma profunda dor em seu peito. Ela o amava, amava tanto que se descobrira não ser capaz de ficar longe dele por muito tempo.

A aflição escarnecedora manteve-a acordada o tanto que pôde, mas por fim a respiração lenta e harmônica da criança em seus braços venceu uma brecha no silêncio de sua mente, acalmando-a e cantando para ela, até conduzi-la em um redemoinho frenético e influenciador, que lhe trouxe a almejada e disputada escuridão muda.


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Notas finais do capítulo

Certos trechos que mostrei para o meu irmão me ajudar a revisar (porque como devem ter percebido, eu sou muito desatenta a alguns detalhes e por vezes deixo passar algumas coisinhas) e ele me fez descrever toda a "barreira de proteção" da varanda de Annabeth, me convencendo depois que me obrigou a ter de desenhá-la para ele entender, ha. Aliás, ele falou para eu tirar uma foto do meu cabelo só para mostrar aqui como é o penteado da Silena, eu tive que arrumar uma parte dessas também só por causa dele, culpa dele ->
Enfim, eu meio que não achei o capítulo um dos melhores, mas espero que tenham gostado. Por favor, não se esqueçam de comentar, eu fico completamente desanimada quando recebo poucos comentários, desculpe-me se o motivo são os textos longos.
LEITORES QUERIDOS, por favor, respondam-me: de quantas palavras, em média, vocês acham que eu devo dividir em cada capítulo a fim de não ficar tão cansativo? Desculpa por esse ter sido grande, mas eu pensava que haviam sido apenas 4 mil e poucas e quando vi já tinham dado 10 mil e tantas.
Espero vocês nos comentários! Obrigada por lerem, e por continuarem me aguentando! E bem vindos aos leitores novos, não se esqueçam de me dar um oi!