Anjo Morto escrita por Duda


Capítulo 1
Era natal




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O céu estava cinzento. Não aquele cinzento que só indica chuva, mas um cinzento que faz parecer que ele está triste por alguma razão e que está segurando suas lágrimas o máximo. Mas acho que não será capaz de aguentar muito mais. Nem eu.

Não acredito na habilidade do universo de esconder os sentimentos. A dor é sempre menor do que parece. E mesmo assim, escondemos quaisquer sentimentos que estamos sentido, e quando cansamos da mentira, fazendo-as maiores do que realmente sentimos, para que uma terceira pessoa veja que o que você está sentido é um sentimento muito maior do que é. É como quando somos crianças e caímos de bicicleta. Se fosse junto com as crianças mais velhas, diríamos que foi só um simples arranhão e que nem doeu. Mas se fosse com sua mãe, nós diríamos que foi um machucado muito sério, uma dor insuportável e que precisaríamos da atenção total dela. Não gosto de mudar a intensidade de seus sentimentos. É uma ideia fútil, afinal, as pessoas nunca saberão como nos sentimos, por mais que tentemos explicar, pois cada sentimento, mesmo que definido com as mesmas palavras são diferentes. Minha solidão é diferente comparada à sua.

Era inverno eu acho. Sei que estava frio. E que a loja de esquina que vendia frango frito tinha o C do letreiro piscando, e nenhuma pessoa comprando frango. Sei também que as ruas estavam com menos movimento comparadas à noite de ontem, e que apenas a loja de frango frito estava aberta – imagino que por ter uma placa realmente grande escrito: Aberto 24h. A única pessoa que vi passando na rua era uma senhora, devia ter 70 anos, usava óculos e andava com uma bengala. Ela me olhou, deu um sorriso que lhe custou esforço e disse de forma carinhosa e com bondade: Feliz natal, querida. E tão lentamente como chegou, saiu. Foi assim que percebi que era natal. Meu primeiro desde que fui expulsa de casa. Estava passando o natal sozinha e com fome, no escuro de um beco sem saída. Deveria fazer então, dois meses que saí de casa. Lembro como foi. Estava frio também.
“Você é inútil! Um lixo!! Me arrependo do dia em que te tive, pior erro que cometi. Olhar para você me enoja, você deveria estar morta, isso sim! Você não é família... você é um monstro. Saia daqui. Não consigo olhar mais para você, saia e não volte mais, fique longe!”
E assim, minha mãe abriu a porta, minha irmã me entregou a pequena mala com cinco mudas de roupa e eu saí. Sem dizer uma palavra – não havia nada a dizer afinal. Desde então, eu vivo na rua, sem ninguém. Eu vivo em qualquer lugar – desde que seja longe de minha antiga família. Eles não me querem por perto.

Era natal então. Pensei novamente na loja de frango frito: O que faria uma pessoa ficar na noite de natal dentro de uma loja de frango frito vazia? O que a família dessa pessoa estaria fazendo agora? Comemorando sem um membro? Aliás, o que a minha família estaria fazendo agora? A mesa estaria incompleta, ou haviam apenas retirado a minha cadeira? E se tivessem tirado, onde ela estaria? Será que eles estivessem pensando em mim? E a minha parte do peru, ficaria ali como sobra, ou alguém a comeria? Será que assistiriam a apresentação minha e de minha irmã gravada em fita, como viam todo ano após o jantar, mesmo sabendo que eu não ocuparia o lugar próximo à minha mãe? Como seria a vida deles agora que eu não existia mais nela? Mas pensando melhor, como estava a minha vida agora que eles não estão mais nela?

Então o céu finalmente começou a chorar. E eu também.



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