Jogos Vorazes - O Garoto Do Tridente escrita por Matheus Cruz


Capítulo 27
Conexões Onipresentes - Último Capítulo


Notas iniciais do capítulo

Galera, a fanfiction está chegando ao fim... estou feliz, mas vou sentir tanta, tanta, mas tanta falta de postar minha história e clicar em "Gerenciar suas histórias" e esperar por reviews, eu... não sei o que dizer, apenas: Obrigado!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/288838/chapter/27

Puxo o tridente ensanguentado para mim e desvio o olhar da fenda avermelhada que se ensopa no pescoço pálido e liso de Dakota. Devastado, tropeço no meu próprio pé e caio para trás. Aperto as pálpebras com os dedos enegrecidos, e balanço a cabeça em negação, num misto inebriante de pesar, alívio e incredulidade.

O canhão estoura.

Os segundos que antecedem o brado eufórico e carregado de sotaque de Claudius Templesmith são silenciosos e torturantes, meu único antídoto é a certeza absoluta de que voltarei para casa e nunca mais para a Arena.

O pesadelo acabou.. Sobrevivi. Uma voz alegre sussurra em minha consciência. Naquele momento, esqueço os obstáculos que me aguardam do outro lado da redoma, e soluço, abrindo um sorriso na face chorosa.

Murmuro agradecimentos, todas as palavras de gratidão que conheço, suando frio e ofegando enquanto sinto a tensão, aos poucos, descarregar metade dos meus músculos doloridos.

Abro os olhos salgados de lágrimas e vislumbro um campo de visão enevoado e cinzento. A Arena voltou a mergulhar na escuridão. As chamas se apagaram novamente atrás de mim.

Acabou, sussurro, venci!

–- Senhoras e Senhores! – as palavras retumbam na noite – Anuncio o vitorioso da sexagésima quinta edição dos Jogos Vorazes! O nosso guerreiro, o Garoto do Tridente, Finnick Odair! – o som no último volume faz meus ossos vibrarem sob a carne.

O aerodeslizador rompe as nuvens negras lançando os holofotes na minha expressão cansada e no cadáver mutilado da minha adversária. O hino de Panem inicia e as projeções tremeluzentes e opacas de Dakota, Zen, Dan, Irina e mais dois tributos iluminam o céu sombrio.

Tonto, levanto. Suspiro ao assistir o cadáver de Dakota ser recolhido. Um segundo aerodeslizador se aproxima, imponente, planando próximo ao chão, alguns metros adiante.

Corro em direção a ele, mesmo fraco, com as pernas tão gastas que parecem prestes a partir. Não largo o tridente. Sou surpreendido por dois indivíduos de guarda pó branco que descem pelos degraus magnéticos com um ar austero, suas grandes mãos cobertas por luvas brancas.

Eles agarram meus braços.

Um instinto selvagem pinica meu cérebro, mas não resisto, deixo o corpo amolecer e eles tirarem o tridente das minhas mãos.

A fronteira entre realidade e sonho some. Suspiro, sinto algemas gélidas me prenderem à barra lateral de uma maca. Sou carregado para dentro do aerodeslizador, deixando para trás o campo de extermínio que foi minha casa nos últimos dias.

As luzes correm velozmente no teto, rostos desconhecidos e abomináveis me encaram com preocupação. Entre os médicos cobertos de tatuagens, cabeças raspadas e lábios esverdeados, uma senhora me encara com uma expressão alegre, os dentes amarelados pelo fumo, à mostra.

–- Finnick, você conseguiu. – diz, beijando-me na testa. Você conseguiu... conseguiu... conseguiu... os sons se distanciam, a troca confusa de palavras entre os médicos se reduzem a vagos zumbidos, e então, escurece.

A conexão com a realidade é interrompida. Tudo passa num piscar de olhos. Estou no rochedo do Distrito 4, logo em seguida, não há nada abaixo dos meus pés, apenas o mar metros abaixo, batendo contra pedras pontiagudas. Grito, estou caindo. A água me envolve e com ela os fios crespos de uma rede, que aperta e sufoca.

Me debato, mas de repente, me vejo de volta na maca, agindo feito um louco. Mags fica preocupada, um médico prepara uma injeção contra a luz fluorescente, o medo esquenta nas veias, e vislumbro lentamente uma gota saltar da ponta afiada da agulha. O mar me envolve, a rede aperta, estou me afogando e a sensação é assombrosa.

Grito quando a agulha perfura meu braço, mas instantaneamente um alívio me envolve. Adormeço, a rede se dissolve, sou libertado. Agora posso nadar para longe, livremente, enquanto o morfináceo corre veloz por minhas veias.

Dois dias depois...

Capital, Círculo da Cidade

O Círculo da Cidade encontrava-se abarrotado de pessoas naquela noite. Flashes se acendiam de todas as direções, fotógrafos observavam o movimento através das sofisticadas lentes de suas câmeras e repórteres discursavam animadamente nos microfones, numa cobertura ao vivo da Cerimônia de Coroação diretamente da mansão Snow, para todos os Distritos.

Fui surpreendido pelo visual das pessoas lá fora, e não deixei de sorrir quando avistei um rapaz, com pouco mais de vinte anos, se esgueirando elegantemente entre a multidão com a pele rosada coberta de escamas.

Mulheres trajam vestidos rodados e cheios, de renda, e se assemelham à bonecas vivas, pousando para fotos de revista e bebericando taças de vinho. As crianças olham fixamente para a fachada da mansão, deslumbradas, e para as projeções dos holofotes instalados nos jardins suntuosos e intocados do Presidente. Cores fortes e calorosas colorem a noite, dançando na fachada da mansão. Um grande palco brilha no Círculo e o slogan do programa de Caesar Flickerman explode num telão.

Respirei fundo, mirando as duas grandes poltronas vermelhas e macias que me esperavam no palco. Ainda estou sob olhares atentos, minhas afrontas ousadas aos Idealizadores durante os Jogos deixou muito gente de cabelo em pé, preciso consertar as coisas. Hoje.

Mags está muito preocupada ultimamente, escondendo alguma coisa de mim, mas toda vez que tento descobrir alguma coisa, ela muda de assunto, o que me deixa muito temeroso.

Me afasto da janela, puxando a cortina e deixando o cômodo sob a luz amarelada do lustre. Atrás de mim, Mags ajeita as pontas do cabelo diante de um espelho oval. Os cachos grisalhos cheios, no meio das costas. O vestido púrpura feito por Lia, tem um caimento desajeitado para o seu corpo magro.

Ela se vira, sorrindo, um colar de safiras reluz no pescoço fino coberto de veias.

Nós dois fomos chamados para um agradecimento formal aos Patrocinadores responsáveis pela compra do tridente, no Centro de Treinamento. No dia anterior – durante o qual passei metade deitado numa maca, recebendo tratamento intensivo nos ferimentos e lesões, duchas quentes e sendo esfregado dos pés à cabeça para limpar as grossas camadas de sujeira grudadas na pele – não imaginava o quanto a dádiva foi comentada por todo o país. Fiquei boquiaberto quando Mags disse que o tridente foi o presente mais caro da história dos Jogos Vorazes, e claro, isso significava uma dívida exorbitante com aquelas gordas madames da Capital.

A cortesia, mais cedo, naquela mesma tarde, foi uma experiência muito desagradável. Fui obrigado a sorrir de piadas sem graça e beber um vinho nojento, com um gosto de ferrugem semelhante a sangue. Além disso, precisei suportar a mulher de um dos Patrocinadores praticamente me despir com seus dois grandes e negros olhos, rodeados por rugas. Pelo menos, o Presidente Snow não compareceu ao encontro, ou as coisas teriam sido ainda mais difíceis.

–- Preste atenção... – Mags se adianta lentamente, aproximando seu rosto enrugado do meu, a expressão séria a deixa mais velha e acentua o contorno das rugas – Fiz o possível para salvar sua pele enquanto estava na Arena, mas agora é a sua vez... Por favor, cuidado com as palavras Finnick, um deslize e...

–- Não se preocupe, vou fazer a coisa certa. – confirmo, confiante.

–- Quem eles querem ver hoje, naquele palco, é o Garoto do Tridente, compreende? Então dê a eles o que querem e poderá voltar para casa. – o conselho é direto e faz os pelos da minha nuca se eriçarem.

Hesito, fitando seus grandes e determinados olhos.

Depois balanço a cabeça, concordando.

–- Bom garoto, agora precisamos ir. – diz, sorrindo pelo canto dos lábios.

Retribuo num sorriso sedutor e ela aprova com um aceno. Ajeita meu cabelo coberto por uma camada generosa de gel e desprega um dos botões do meu terno verde, deixando à mostra o brilho dourado do meu peito. Chega ao pé do meu ouvido e sussurra:

–- Consegue ver um pontinho vermelho brilhando no lustre? Disfarce e olhe...

Levanto o olhar discretamente e vislumbro um brilho avermelhado acima das garras de ferro e dos cristais, é uma pedra, um rubi.

– É uma câmera. – revela – Reze pra que não grave áudio também.

A revelação não me surpreende, mas sinto, de repente, como se milhões de olhos estivessem pousados em mim.

–- Finn, o jogo ainda não terminou. Lembre-se disso: A Capital está em todos os lugares. – diz e segue em direção à porta, calmamente.

Engulo em seco, sentindo uma veia latejando na testa. Não consigo evitar, olho uma última vez o rubi preso ao lustre e abaixo a cabeça, acelerando o passo para seguir a minha mentora.

Faz duas horas que estou sentado naquela poltrona. Toda a excitação e os gritos eufóricos da platéia já cessaram há muito tempo e o silêncio perdurou no Círculo da Cidade desde então, rompido uma vez ou outra gritinhos de susto ou suspiros de alívio.

Centenas de olhos brilham, refletindo cenas de horror e desespero, sangue e mortes. Sinto as pálpebras pesarem. Talvez seja o peso das lágrimas, ou o medo de enfraquecer diante de um pesadelo reprisado. Uma ânsia de vômito fumegante rodopia no meu estômago, quero me levantar e correr para longe dali, mas não posso, há dezenas de câmeras ligadas, vindas de todas as direções, com suas lentes focadas no meu rosto, atentas a qualquer emoção que deixe transparecer em expressões.

O imenso telão brilha, exibindo Dan e Irina enquanto assassinavam um tributo – não reconhecido por mim. As crianças na platéia estão pálidas, mas não desviam o olhar, seus pais parecem não se importar que seus filhos assistam uma situação de tamanha crueldade, apenas assistem também. É nauseante.

Sobrevivi aos Jogos Vorazes, mas a Capital continua tão fútil, nojenta e assustadora quanto a que tive o desprazer de conhecer antes de entrar na Arena.

O meu maior desejo, nos instantes seguintes, é fechar os olhos. As próximas cenas são curtas e rápidas, e estou presente na maioria delas. Vejo Zen se aproximar sorrateiramente, com o meu tridente azulado na mão, caminhando na ponta dos pés, alternando com a minha imagem tentando romper os fios da rede em que Dakota me prendeu. A sensação que me atinge é indescritível, sufoco o choro. Dakota correndo e sendo prensada contra a parede por Dan. A sua primeira “morte”. O desespero dela ao se encontrar numa masmorra escura inunda a tela em cortes rápidos de tirar o fôlego; a convulsão de Dan, Zen matando-o e sacrificando-se por mim...

Uma lágrima escapa, quando percebo, me amaldiçoo por ter sido fraco.

Meu duelo final com Dakota é o mais longo e o que arranca mais suspiros e gritinhos da platéia. Ao rever os acontecimentos, não consigo entender como sobrevivi, nem lembrar de onde tirei forças para resistir. Quando a tela escurece, suspiro e fecho os olhos, enterro fundo a insegurança e me forço à continuar. O pior já passou, reflito e me forço a sorrir, inclinando a poltrona para encarar o simpático e famoso Caesar Flickerman.

–- Hum... difícil, difícil pessoal... – sussurrou no microfone cravejado de diamantes, o sotaque da Capital presente na voz grave e ressoante – Nosso vitorioso... vi uma lágrima escapar de um de seus lindos olhinhos esverdeados, Finnick Odair...

Suas pálpebras brilham em maquiagem azul celeste, pontilhada de manchas brancas que reluzem como gotas de orvalho. O cabelo verde foi penteado para trás e domado com gel, há uma trança pequena ramificada acima da nuca.

Pisco, tentando orientar meus pensamentos sombrios e buscar uma resposta sensata. No entanto, ao encarar Caesar e sua faceta entristecida, só consigo sentir ódio. O Zen não voltará mais, ele se foi e a culpa é toda... Agora não adianta esse olhar de falsa compaixão, ele e aquelas criaturas que chama de platéia se divertiram ao ver o meu amigo morrer! Desgraçados! O Zen foi embora... para sempre.

–- Eu gostava dele... – sussurro, rouco, tentando não vomitar em palco – Ele era legal...

O sorriso espontâneo e amigável de Zen invade minhas lembranças, a voz aguda ecoa nas profundezas do passado. A platéia suspira em uníssono, como uma faca cortando o ar. O vento frio que sopra sobre o Circulo da Cidade atira algumas mechas sobre minha face.

Encontro Mags no público e ela assente em resposta, parecendo ao mesmo tempo satisfeita e aflita diante da minha atuação. Você, Finnick Odair, precisa ser quem a Capital quer que você seja! Ao seu lado, Lia enxuga lágrimas com um lenço lilás e logo atrás Claire conversa animadamente com Jeline.

–- Zen foi a pessoa mais... humana que conheci. – Prendo as mechas lisas atrás da orelha avermelhada e encaro Caesar com uma expressão amável, mas meus olhos continuam frios e verdes.

–- Esse jovem garoto... Zen, não é? Bem, ele sempre se mostrou um tributo meio fraco, talvez até covarde, pensa que ele pode ter feito o que fez... por medo? – quando seus lábios rosados param de se mexer e os sons de sair, abro a boca, perplexo diante das palavras absurdas que ele acabou de dizer e das barbaridades que vêm à minha cabeça.

Então foi isso que eles usaram para justificar a ousadia de Zen... Transformaram um ato honroso em covardia.

Cerro os dentes, permeado por uma onda de calor.

–- Ele me poupou, porque sabia o quanto seria doloroso para mim ter que matar... um... – sinto a pulsação acelerar – Ele salvou minha vida, encontrou o tridente. Não queria matá-lo.

Mags foi clara mais cedo. Cuidado com as palavras. Foi difícil encontrar uma saída para me tirar da linha de tiro. Na Arena, fui muito impulsivo e não medi as conseqüências dos meus atos. Os Idealizadores sentiram meus insultos (tanto os diretos quanto os indiretos) e ficaram descontentes ao se deparar com um Garoto do Tridente totalmente diferente do qual eles imaginaram que eu fosse. Enquanto tentavam reparar o estrago que os Jogos fizeram no meu corpo, Mags lutava para reparar os estragos que fiz durante o reality.

A Capital está em todos os lugares.

Caesar sorri, satisfeito com a resposta (Zen não é o assunto preferido da Capital) e se recosta na poltrona giratória, virando-a de frente para o público. Seus dentes incrivelmente brancos somem sob os lábios novamente, e seus traços se organizam à formar uma nova expressão. Quando suspira, aguardo as palavras seguintes, já ciente do que se tratam, mesmo assim sinto um frio na barriga e a estranha sensação do estômago estar se petrificando.

Pergunta sobre Dakota e tudo que envolveu sua volta triunfal à Arena. O rancor remoído do passado, o que pensei quando a vi retornar da morte... e enquanto explicava, mantive uma expressão neutra, quase indiferente.

–- Finnick... hum, você não a amou nem um pouco? Dakota era uma garota bonita, charmosa...

–- Não. O coração do Garoto do Tridente nunca teve dona... – respondo sem rodeios, evitando que a pergunta pairasse no ar. Caesar ri e as mulheres na platéia gritam histéricas.

O apresentador muda de assunto, cortando o burburinho no ar.

Caesar possui pouco tempo, faz algumas piadas e perguntas fúteis, nenhuma mencionando Dakota ou Zen novamente.

A platéia explode em risadas, suspiros e pulinhos de excitação enquanto narro os principais fatos da Arena de forma teatral, dando ênfase a feitos heroicos, como se me orgulhasse deles. Quando a entrevista chega ao fim, o hino de Panem retumba, no último volume.

Os habitantes se levantam em respeito, aplaudindo ruidosamente, e os holofotes lançam luzes fortes e amareladas no senhor austero e elegante que sobe tranquilamente as escadas de mármore em direção ao palco, rodeado de Pacificadores e acompanhado por uma criança negra e igualmente severa, que traz entre as mãos uma pequena almofada branca, na qual repousa uma linda coroa de ouro cravejada de esmeraldas.

Suspiro nervosamente, mantenho a postura ereta enquanto o Presidente Snow cumprimenta o país e faz um breve pronunciamento sobre a importância dos Jogos Vorazes para manter a paz e evitar conflitos futuros numa nação tão prospera e feliz.

Ficar frente a frente com o Presidente de Panem foi uma experiência assombrosa. Cada movimento daquele homem tão poderoso, era visivelmente calculado, e seus lábios rosados e contraídos se assemelhavam a boca de uma lagartixa. As suas duas pupilas amareladas pousaram em mim durante a coroação, como duas lâminas apontadas para minha alma.

A coroa pousou nos meus cabelos louros e sedosos, e senti seu peso me empurrar para baixo.

O presidente chegou tão perto, que sua barriga protuberante roçou a minha e sua face de traços brutos ficou a apenas alguns centímetros. Os olhos amarelos não tremeram nenhum segundo, enquanto os meus só faltavam saltar para tentar fugir dos dele.

Ele disse alguma coisa que não compreendi e depois se virou, saudou Panem e puxou a minha mão esquerda, levantando-a. O público aplaudiu, mas não consegui olhar para sua faces maquiadas e sorridentes, apenas a cidade deslumbrante atrás deles, repleta de cores, formas e riquezas. A fonte brilhava num verde fluorescente, no centro do Círculo da Cidade, rodeada dos dois lados pelo povo, com suas deslumbrantes cascatas me hipnotizando.

Um arrepio percorre minha espinha quando ouço a voz de Dakota com perfeição, emergindo das lembranças e dizendo: “Vou te mandar para o inferno!

Engulo em seco e respondo: “Não precisa, já estou aqui”



O sol surge no horizonte, lançando luz por trás das árvores. Não é possível sentir o ar frio da manhã dentro do trem, mas sinto a umidade do orvalho ao tocar o vidro gélido e embaçado, pontilhado por pequenas gotículas cristalinas.



Sentado numa poltrona macia e bebericando uma caneca de chocolate quente, suspiro com pesar e volto a encarar minha mentora.

–- Mags... Sinto muito.

Mags está sentada numa poltrona cor caramelo do outro lado do vagão, fumando um cigarro dourado. Sua face exprime saudade e angústia, e seus olhos encontram-se rodeados por pequenas manchas vermelhas. Aos seus pés, duas imensas caixas de vidro jazem abertas, com um lindo tridente negro reluzindo numa delas, e outra repousando meu brilhante tridente azul num acolchoado verde-limão.

–- Ás vezes é bom guardar segredos, principalmente aqueles que mexem com nossos medos. Mas evitar um pesadelo, o torna mais aterrorizante quando vem à tona. – suspira, apertando uma almofada contra o peito.

–- Ele foi muito importante para você. – afirmo, tentando passar alguma segurança a ela.

–- Eu o amei – fala sorrindo, observando o céu pela vidraça atrás de mim. – Fui a Dakota da minha história, mas quem sobreviveu... fui eu. – com delicadeza, acaricia o tecido púrpura com a ponta do pé direito, deslizando os dedos pálidos e enrugados pela barra negra do tridente.

–- Fez um igual para mim enquanto estávamos na Arena. Era de madeira, mas as pontas tinha afiadas – deixa aparecer os dentes amarelados entre os lábios quando sopra a fumaça cinzenta do cigarro.

– Quando sobrou apenas nós dois, fiquei aterrorizada. Ele me abraçou e disse que não faria nada de mal comigo. Afirmou que poderíamos ficar semanas ali, parados, até nos levarem para casa em segurança. Sabia que ele estava delirando, mas cedi aos seus braços... Não demorou muito tempo até sermos atacados por um bando de garras metálicas e elas o desmembrarem.

Fecho os olhos em solidariedade, mas Mags permanece imóvel e firme. Imagino algo assim acontecendo com a Annie, e os pensamentos me trazem uma única conclusão: não seria tão forte quanto a Mags está sendo.

–- Ao voltar para o Distrito 4, pedi que forjassem um tridente em sua homenagem. Negro como o meu coração. Onde quer que eu vá, o levo comigo, é como se seus braços fortes ainda me protegessem.

Largo a caneca na poltrona ao lado e levanto, apertando o casaco de veludo azul contra o corpo e me esgueirando entre as duas caixas depositadas no chão. Mags se encolhe para que possa sentar ao seu lado. Minha mentora toca o meu ombro com ternura e sorri. Me aproximo mais dela e aperto suas mãos gélidas entre as minhas.

–- Prometo que nunca mais tocarei nesse assunto.

–- Entende agora porque precisa ter cuidado? Não há limites para a Capital... Eles estão em todos os lugares! Finnick, você saiu da arena, mas o pior ainda estar por vir...

–- Mags, do que você está falando? – o sangue foge da minha face, a adrenalina acelera, e a pergunta soa embargada.

–- Por favor, esqueça... – suplica, temerosa – Esquece tudo que te contei, por favor. Ninguém pode saber sobre ele, o meu Martin. A Capital lutou para sufocar a história... esse segredo pode custar a minha vida.

Não se preocupe – beijo sua testa fria – Guardarei seu segredo para sempre.

As câmeras depositam suas grandes lentes em mim. Para onde quer que eu olhe, pessoas sorriem, batem palmas, assobiam ou acenam. A estação cinzenta e estreita está abarrotada, surgem flashes de todas as direções, o barulho é intenso e uma leve fumaça flutua no ar.

Continuo a sorrir e acenar enquanto procuro com afinco os rostos que tanto ansiei em rever desde que deixei o Distrito 4. Pacificadores abrem caminho na multidão, sigo Mags pelo corredor improvisado, acelerando o passo e se desvencilhando das mãos que tentam me tocar, protegido apenas pela barreira de guardas. Claire vem logo atrás, alegre e orgulhoso.

Claire corre e se põe ao meu lado, eufórico, abraçando-me pelo ombro. Um cheiro doce de canela exala de seu terno vermelho-sangue.

–- Finnick, parabéns garotão! – bate no meu peito, retribuo com um sorriso tenso – Sabia que seria um vitorioso! – vejo sinceridade no seu olhar e sinto certa simpatia por Claire, mesmo ele sendo um típico habitante da Capital.

Pacificadores nos guiam até as portas marrons de carvalho do Edifício da Justiça. Meu coração está aos saltos dentro do peito, ando o mais rápido que posso, com a esperança de encontrar as pessoas que mais amo nesse mundo, atrás daquelas portas.

O rangido penetrante anuncia nossa entrada. Quando a luz invade o recinto de paredes amarelas no interior do Edifício, mais flashes explodem. Perguntas são feitas, mas não presto atenção. Ouço os gritos eufóricos vindos da Praça Principal do outro lado do prédio. Os repórteres no seguem e os Pacificadores impedem que se aproximem demais.

O corredor seguinte é longo e azulejado. A cerâmica do piso escorrega sob a sola dos meus sapatos, quadros decoram as paredes de um lado e do outro. Mantenho a postura, dando uma piscadela ou outra para as câmeras e me forçando a manter o charme. O prefeito anuncia a chegada, e quando atravessamos o portal seguinte, a multidão na Praça Principal aplaude energicamente.

Aceno, contente. Papai e mamãe avançam pelos degraus de mármore, chorando de felicidade. Vejo nas mãos trêmulas o anseio em me reencontrar. Abro os braços e desço em direção à eles. Aplausos ecoam, sinto a respiração quente deles no pescoço e as lágrimas umedecerem minha pele.

–- Filho, você conseguiu... Eu te amo – papai sussurra, em meio aos soluços.

–- Finnick Odair sempre cumpre suas promessas – respondo, abraçando, protetor, a única família que possuo.



Os flashes cessaram e nada ouço além do barulho do mar. O vento fresco acaricia meu corpo e atira minhas mechas para trás. Caminho lentamente, pisando descalço no rochedo morno e duro, mirando a garota sentada à beira do precipício.



O amor incondicional que sinto por ela parece mais aceso que nunca, ardendo em brasa no peito. A eternidade que nos separava dias atrás, não existe mais. Eu voltei, estou livre para tê-la nos braços e ultrapassar todas as fronteiras que nos separa.

Annie nota a minha presença e se sobressalta, ficando de pé apressadamente. O vestido azul claro esvoaça, prendendo-se entre suas pernas, e seus cabelos ondulados caem em cascatas nos ombros, castanhos e reluzentes. O azul das pupilas trazem um brilho úmido e o peito fica ofegante no instante em que me vê.

Corro ao seu encontro, sabendo que não há nada no caminho para atrapalhar. Annie sorri e salta para os meus braços. A agarro e suas pernas se fecham em volta da minha cintura, nossos corpos quentes e trêmulos se encaixam e meus lábios são preenchidos pelo sabor de sua boca. Esqueço tudo o que houve desde os Jogos até aqui, todo meu ser só tem lugar para Annie agora.

–- Annie, eu voltei... te amo! Amo muito, muito, muito mesmo! Minha vida! Minha esperança! – a beijo e seus lábios macios roçam nos meus com intensidade, corações batendo um contra o outro numa velocidade impressionante. – Fiz tudo aquilo por você! Me perdoe se te magoei, mas foi para protegê-la, ninguém vai tira-la de mim novamente, nunca mais! NUNCA! – ela assente e me puxa para si, o beijo tira o fôlego, mas não cesso, apenas a aperto mais entre os braços.

–- Finn. Não tive coragem de... todos os dias vinha pra cá e esperava, não suportaria te assistir morrer... – senti um alívio repentino e recostei sua cabeça no meu peito. – Sei que precisou me proteger, seu pai me explicou. Fiquei assustada quando te vi na tevê, porque o Finnick que via naquela tela, não era o garoto pelo qual me apaixonei. Você estava diferente e pensei que nunca te teria de volta. É tão bom te ter aqui comigo... tão bom.

O vento sopra mais forte, uma nuvem cinzenta cobre o sol e o mar quebra feroz nas pedras lá embaixo. Agarro sua mão com fervor e a puxo para a beira do rochedo. Tiro a camisa, as botas, a calça.

Annie fica apreensiva e desvia o olhar, envergonhada. Toco seu ombro e a viro de frente para mim. Delicadamente, desamarro as alças do seu vestido e ele cai aos seus pés. O colar de pequenas conchas pende acima de seus pequenos seios.

–- Fizemos isso uma vez, lembra? – pergunto, e ela assente. – Juntos, ok? – ela concorda mais uma vez. – Confia em mim?

–- Sim. – confirma, encolhendo o corpo exposto ao vento frio e salgado da tarde. – Eu confio.

Aperto sua mão com mais força. Depois corremos pela superfície acidentada da rocha e saltamos, mais uma vez, para a imensidão azul celeste lá embaixo.

Dias depois...



–- Por favor! Diz que isso é mentira! Mags, eu te imploro, você não pode estar falando sério! – suplico, chorando desesperadamente enquanto Mags me observa, horrorizada, deixando transparecer pesar na face envelhecida.

–- Finnick, isso será daqui a dois meses... você não ficará lá para sempre, poderá voltar para o Distrito 4 de vez em quando, ver sua família...

–- Eu não quero isso! Minha casa é aqui, não vou voltar para aquele lugar! Nunca mais... – grito, apontando para o seu rosto, com ferocidade – Você está me entendendo? Nunca mais.

–- Finnick, tente compreender, daqui alguns meses será a Turnê do Vitorioso, não vai ser tão ruim assim, talvez, depois do evento, você possa voltar para cá! – tenta me convencer, mas nada adianta, estou irado, andando de um lado para o outro, praguejando.

–- Mags, você sabe que não vai ser assim! Imagino o motivo disso... – Mags silencia e seus olhos ficam soturnos, ela também sabe.

–- Finn, talvez...

–- Nem tente me iludir! Esqueceu que eu sou O Garoto do Tridente? O incrivelmente sexy Finnick Odair! – proclamo com falsa excitação – Eles querem meu corpo... – digo, diminuindo repentinamente o tom de voz à um sussurro rouco.

No silêncio, o canto dos grilos no mato lá fora, invade o recinto com uma melodia suave e macabra.

–- Vou fugir... – a ideia surge como uma faísca de esperança, meu rosto se ilumina e a pulsação acelera, sinto o sangue vibrar na cabeça. – Eu e a Annie. Vamos fugir daqui! – corro para a porta de saída do escritório, mas Mags agarra meu braço.

–- Finnick, não! Você não vai!

–- Ninguém vai me impedir. – puxo o braço para si – e você não contará a ninguém!

–- Finnick, não posso prometer! O melhor a fazer é aceitar...

–- Eu... jurei... guardar... seu... segredo! – devolvo rispidamente. Mags lança um olhar feroz contra mim, e seus lábios se encolhem. Por fim, assente timidamente, baixando a cabeça.

Corro porta afora, ansiando por reencontrar Annie.

Dois dias depois...



Deslizo as botas pelo cascalho enquanto faço a volta em direção ao terreno íngreme, que desce em direção ao meu destino.

O capim verdejante deita com a ventania que destrói o Distrito 4, raios irrompem no céu escurecido por nuvens negras carregadas. O mar, a poucos metros de onde estou, avança para a praia numa violência descomunal e atinge o imenso rochedo a quilômetros de distância.

A chuva torrencial se precipita fortemente, ensopando o solo escorregadio. Me seguro em algumas pedras, enquanto desço em direção à cabana, onde marquei para encontrar a Annie.

“Fizemos isso uma vez, lembra?”

“Finnick, te amo... sei que vai conseguir... por mim!”

Raios iluminam a passagem, a tarde virou noite, as nuvens escuras parecem trevas, o mar tranqüilo e verdejante, meu confidente fiel, entrou em ebulição e vai matar meu bem mais precioso... está alcançando a cabana.

Minha bota escorrega numa das pedras. Seguro em um galho espinhoso e sinto-o perfurar minha mão, o solto e quando firmo os pés no chão, vejo o sangue respingar na minha blusa branca.

Não importa o que aconteça, não saia de lá... Vamos fugir, a Capital não pode nos separar”, disse para a Annie algumas horas antes.

Vejo os vultos brancos de farda militar entrarem na cabana.

Grito e começo a correr, eles descobriram! A Mags não pode ter contado, eu jurei guardar o segredo dela!

–- Annie! – grito.

É tarde demais...

–- Senhor Odair – me viro e o vejo apontar um revólver em direção ao meu coração. O Chefe dos Pacificadores encara-me friamente, mas a voz que ouço, não é a dele – Quantas vezes terei que repetir? Ninguém foge da Capital. Estamos em todos os lugares.

Mags se adiantou, surgindo de trás das costas largas do Pacificador. A capa de chuva ensopada grudando no corpo magro. Calmamente, tocou o braço do guarda e ele abaixou a arma, desconfiado.

Mais dez Pacificadores estão atrás deles, com as armas apontadas para o meu peito. A chuva e os capacetes me impede de ver os seus rostos com perfeição, mas reconheço nos traços de Mags um sincero pedido de desculpas.

Olho para trás e vejo os Pacificadores saírem da cabana, mas a Annie não está com eles. Quando percebo, sinto dois braços fortes como pedra me imobilizarem. Não tento lutar, todas as minhas esperanças se esvaíram, me sinto fraco.

Mags deve ter chegado a cabana antes dos Pacificadores e levado Annie para algum lugar seguro, por conta da tempestade. No mínimo, terei que ir para a Capital amanhã, por precaução, e acabarei perdendo dois meses para estar com a minha família e com a Annie.

Mesmo agora, não consigo sentir raiva de Mags. Sei que foi ela quem denunciou a minha fuga para os Pacificadores e sei também que fez isso para o meu bem. Caso fossemos pegos em fuga, a Annie seria assassinada e eu voltaria para a Capital mesmo assim. Ela já perdeu alguém especial, sabe a dor, e impediu que soubesse também.

Na manhã seguinte embarquei para a Capital sem me despedir da Annie. O céu estava cinzento, a chuva forte ergueu uma neblina espessa pelo Distrito. Abandonei meus pais na estação com desculpas insatisfatórias. Mags não pôde me acompanhar, e nem falou comigo desde a noite anterior. Chorei, sozinho naquele vagão de trem, sabendo que o pior está no final dos trilhos.

O destino é inevitável. E um único pensamento ecoou na minha mente durante toda a viagem... A certeza que o pesadelo não acaba quando o jogo termina.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!