Jogos Vorazes - O Garoto Do Tridente escrita por Matheus Cruz
Areia cobre os meus pés.
Paralisados, eu e o resto da equipe hesitamos em dar os primeiros passos, nos sentimos teletransportados para um outro lugar, vendo a vasta paisagem à nossa frente.
Todos têm um enorme cesto pendurado nas costas e o meu pesa, roçando em minha nuca suada.
–- Bem vindos à Câmara 4. – ouço a voz rouca da treinadora pelo pequeno aparelho de escuta no meu ouvido.
Fina e macia, a areia amarelada se estende por metros e metros, cobrindo o piso da câmara. O local é tão grande que não consigo imaginar condições lógicas para pertencer ao Centro de Treinamento. Daria para pôr aqui quinhentas da sala que visitei ontem.
O oásis se assemelha à uma ilha, circundado pela areia. A vegetação densa e florida que lhe cobre, possui um aspecto sombrio. Aperto os olhos e consigo visualizar um pequeno poço artesiano de madeira em meio à uma rede de cipós e trepadeiras, e um rochedo trançado por galhos espinhosos.
A atmosfera seca dificulta minha respiração, sinto uma leve ardência nos olhos e uma sede descontrolada crescer dentro de mim, queimando minha garganta.
–- A tarefa é complexa e exigirá muito de vocês. Há cada dez minutos a temperatura subirá três graus, o que dificultará muito o desempenho. – a treinadora continua.
–- Com medo Finn? – Dakota sussurra ao meu lado, com o tom arrogante tradicional. Seu cesto balança.
–- Sim. Você também? – pergunto, insinuando um risinho no canto dos lábios.
–- Nada me assusta – diz, mirando o olhar além do oásis – Nem você seu imbecil! – sorri e dá um tapinha no meu ombro – Nem você... – sua expressão fica séria de repente, e ela engole em seco.
–- Câmeras espalhadas por todos os lados captarão cada movimento de vocês. Não esqueçam, isso pesará na nota. – meu corpo anseia por adrenalina, me posiciono, preparado. – O objetivo da tarefa é conseguir pôr o máximo de serpentes no cesto. Lembrem-se, ainda não estão na Arena, não haverá mortes.
Serpentes? Nós nos entreolhamos, surpresos.
–- Ah meu Deus... – ouço a exclamação de Zen, seu dedo aponta algo bem próximo, se mexendo.
–- Que idiotice, só isso? Pôr esses bichos no cesto? – Dakota pergunta num tom descrente.
–- Boa sorte, vocês têm uma hora. – é a última coisa que o aparelho em meu ouvido diz antes de ser desativado.
Uma hora, apenas uma hora...
Disparamos numa corrida frenética. Ninguém quer virar ensopado e seguimos para o oásis, escorregando e aos tropeços no terreno arenoso acidentado.
Dakota segue ao meu lado, numa destreza incrível. Ficamos lado a lado, acelerando, num clima de competição. O sorriso dela me convence que aquilo é apenas é uma brincadeira boba, tento retribuir a simpatia, e no final das contas percebo que a Dakota não é tão má quanto pensava.
Zen tenta me acompanhar, sua respiração chiada e descompassada chega aos meus ouvidos. Paro um pouco para esperá-lo, e o menino vem aos tropeços ao meu encontro.
–- Cansado?
–- Melhor continuarmos, os outros já estão chegando. – sigo a direção que seu dedo aponta e vejo o vulto ruivo de Irina se embrenhar nos arbustos verdejantes do oásis.
–- Você ainda está aqui? – me surpreendo quando viro e vejo Dakota me encarando.
–- Só dessa vez... – seus olhos se dirigem ao garoto do meu lado – Quem é o moleque?
–- Meu nome é... Zen. – ele responde com sua voz aguda em meio aos suspiros de fadiga.
–- O meu é Dakota – diz ríspida – É melhor adiantarmos, ou viraremos mingau.
Recomeça a corrida e pouco depois estamos pisando numa grama macia, cercados de tamareiras enormes e arbustos densos. Também há flores de diversas cores e tamanhos, desabrochando nos caules das árvores e nos cipós de trepadeiras, com textura e perfume bem reais. Sei que tudo isso é artificial, mas o aroma refrescante e úmido da mata adentra minhas narinas, trazendo oxigênio à meus pulmões encolhidos.
Dakota e Zen se agacham e enchem as mãos em concha com a água cristalina que transborda do poço. Me junto à eles e quando o líquido gélido desce por minha garganta ferida, fecho os olhos de prazer.
–- Oh, foi muito errado o que fizeram... – ouço alguém falar atrás de mim. Nós três viramos e damos de cara com o garoto do 11, Henry Lizz. – As serpentes...
Ouvimos um farfalhar nos arbustos em volta, chegando cada vez mais perto, e outro, os sons se multiplicam.
–- Como disse? – tento entender.
A expressão de Henry me dá arrepios.
–- O covil das serpentes é bem ai, no poço. – diz sério. Nos apressamos em se afastar do local – Conseguiram deixá-las bem irritadas. – Zen salta para trás quando uma, duas, três... dezenas de serpentes deslizam pelo gramado em nossa direção.
Velozes, nos cercam em segundos. As vejo chegarem à poucos centímetros dos nossos pés, erguerem a cabeça pontuda circundada por uma coroa de escamas e mostrar a língua negra. Os olhos amarelos parecem lançar pragas em mim, apertados, ameaçadores.
–- Socorro... – pálido, tremendo, com a boca entreaberta numa demonstração de horror, Zen sussurra. Uma serpente enrosca na sua perna fina, enrolando-a calmamente.
Puxo meu cesto das costas e o abro. O medo nos cegou, nossa missão é capturá-las e essa é uma grande chance de conseguir o maior número delas em menos tempo. Ouço um sinal agudo, ensurdecedor...
A temperatura aumenta.
É uma tarefa, eles não nos deixariam morrer antes da Arena, nunca.
Dentro do cesto há uma espada, o metal reflete meu olhar preocupado e estendo a mão para pegá-la.
–- Isso deve resolver. – Dakota toma a espada de mim e desliza o metal pelo corpo do bicho enrolado na perna de Zen, rompendo-o em vários pedaços, liberando um líquido verde viscoso.
–- Garota, vocês estão ferrados, elas são bestantes! – Henry grita, pendurado em um dos galhos de uma árvore.
Zen suspira aliviado por estar livre, mas arregala os olhos para a cena seguinte.
Os pedaços do animal se sacodem com violência, e a substância que liberam respinga em nós. As outras serpentes recuam, temendo algo. Henry tapa os olhos e balança a cabeça negativamente.
AH! Uma cabeça, um corpo novo, sei lá! Aquilo me aterroriza de uma forma impressionante... Os pedaços estão se regenerando. O que antes era uma serpente agora são... SEIS!
Avançam, com os dentes afiados pingando veneno.
–- O que foi que eu fiz? – Dakota se pergunta.
–- Converse com suas primas, talvez elas mudem de idéia e desistam de nos matar.
–- Filho da mãe, se eu não tivesse tão... – o grito fino de Dakota me deixa zonzo – AI, Finn, socorro... – ela aperta meu braço com medo.
–- É... nada te assusta... – tento ser sarcástico, mas o temor não deixa.
–- Vem gente – Zen segue para o fim do oásis.
Corremos, elas vêm nos perseguindo, imbatíveis. Ouço um farfalhar acima das nossas cabeças, mas não dou importância.
Bestantes! O que eu mais temia nos Jogos.
O calor começa a fazer efeito, falta oxigênio.
Mais serpentes bloqueiam nossa saída do oásis e saltam em nossa direção. Enrolam nossos pés, num movimento violento, pressionando a carne. Ah... esta chegando na cintura e subindo. Olho de soslaio para Dakota, elas já alcançaram o pescoço da menina. Zen é derrubado e seu corpo some, coberto delas. Pouco depois somos nós três os soterrados, presos numa camisa de força. Meu cesto é amassado pelo peso do meu corpo.
Uma melodia singela chega aos meus ouvidos em meio aos sussurros das serpentes. Quatro notas que ecoam fluentemente e faz minha pele arrepiar. Os bichos deslizam numa velocidade assustadora por cima de mim, ferindo meu rosto com suas escamas. Ai, aquilo faz cócegas, um cheiro horrível, cálido e forte me faz espirrar.
A música continua, fazendo elas acelerarem cada vez mais, me matando...
Depois de uma negritude esverdeada embaixo daqueles bichos nojentos, consigo ver o teto de metal da câmara de treinamento através dos galhos das árvores, e o mínimo de oxigênio circular dentro de mim. Levanto o tronco e percebo as serpentes recuarem mais uma vez, e em direção à um enorme cesto à nossa frente.
Entorpecidas pela canção elas seguem hipnotizadas e se alojam dentro do cesto aberto. Pouco depois estamos livres. Eu Dakota e Zen trocamos olhares curiosos e levantamos com dificuldade até conseguir ver de onde vinha aquele som.
O garoto negro, de cabelo crespo escuro trançado até os ombros, olhos castanhos claros, estatura média e pouco mais magro que eu, sopra nos orifícios de uma flauta, segurando o instrumento de madeira entre os dedos.
Serpentes caíram aos seus pés, adormecidas.
–- Como você fez isso? – Zen perguntou com aquele sorriso simpático familiar, se aproximando de Henry.
–- Meu avô me ensinou. Sempre carrego essa flauta comigo. – Henry responde e sorri.
–- Ah, e porque você sabia que devia usá-la com as serpentes? – Dakota fica de frente para ele, com as mãos na cintura e expressão de desconfiança.
–- A música é o tipo de arte mais perfeita: nunca revela seu último segredo. – diz marotamente. A resposta inesperada deixa Dakota boquiaberta e desencadeia em mim uma admiração por aquele garoto. – Bem, acho melhor vocês pegarem seus cestos e colocar essas coisinhas fofas ai dentro – aponta para as cobras adormecidas – antes que elas despertem.
Seguimos o conselho e nos agachamos para pegá-las.
O sinal soa mais uma vez, aumentando a temperatura.
Ponho o cesto pesado de volta nas costas, todos nós cumprimos a missão.
–- Nem sei como agradecer... – digo para Henry.
–- De nada. Não é só porque entrei nesses jogos nojentos que vou ficar assistindo a morte de outras pessoas e não fazer nada. Vou continuar sendo eu mesmo, mesmo que isso custe a minha morte.
Aquilo me toca profundamente, mesmo sabendo que os Idealizadores não nos deixariam morrer antes dos jogos realmente começarem, isso só foi um pequeno aperitivo para o que encontraremos na Arena. Minha única reação é estender a mão direita para o garoto:
–- Quer ser nosso aliado?
Dakota e Zen nem perceberam que os tratei como uma equipe, apenas continuaram ao meu lado, compartilhando a mesma expectativa pela resposta de Henry.
–- Vou adorar. – a mão gélida e suada aperta a minha.
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