My Germany escrita por UmGreyjoy, Florita


Capítulo 11
Adena Devet


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo da nossa pequena judia. Enquanto Adena aguarda por mais uma provável visita de Roys, onde há um pouco mais sobre a relação entre ela e o irmão de coração, e envolvendo alguns acontecimentos passados. Espero que gostem!



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Thomas Roys arrebentou a maçaneta, e invadiu o apartamento. Eu já estava com minha mochila nas costas, com meus pertences mais estimados. Segundos a mais para beber um copo d’água, para abraçar Dimitri, para abotoar o sobretudo... Segundos a mais de hesitação, fizeram com que ele chegasse primeiro, e destruísse meu sonho de fuga. Mas será que eu queria mesmo fugir?

De uma forma ou de outra, eu estava condenada. Eles iriam me caçar feito um animal, e me prender em um campo, como fizeram com Ashira. Correndo, não passaria da primeira esquina...

Mas o que vi nos olhos do oficial, era mais do que a frieza natural. Era ira pura.

Portanto, quando Dimitri partiu para cima, foi como uma faísca no feno. Thomas Roys tirou a pistola da cintura, e atirou três vezes no peito de meu irmão. Três explosões. O mundo inteiro se silenciou, mas o grito mais profundo de horror que saltou de minha garganta no instante seguinte aos três disparos deu lugar para os sons seguintes: O corpo de Dimitri, que despencou pesado sobre o piso; o vidro quebrando, enquanto Thomas Roys caminhava em minha direção, e esbarrava em uma pequena cômoda que continha o vazo cristalino; o ferro da pistola contra alguma fivela, ao retornar á seu devido lugar; os soluços desesperados que eu emiti, após ter suas duas mãos ásperas e pesadas pressionadas sobre meu pescoço. Ele queria me ver morrer. Queria fazê-lo sem arma alguma. Queria tirar minha vida, tomá-la, como se fosse Deus...

Então eu saltei. Chorando e me debatendo entre os lençóis.

— Dimitri! — gritei eu.

Ele estava ao meu lado, por sorte. Ainda meio sonolento, demorou a perceber meu mal.

— Dena — ele afagou meu rosto, calmamente. — Você estava sonhando.

— Thomas Roys não voltou?

— Não. Eu estive a noite inteira aqui. Vigiei pela janela, pronto para te acordar se fosse preciso. Mas não houve nada dele, nem de patrulha nenhuma. Você dormiu como um anjo a noite inteira, e eu decidi continuar aqui.

— Obrigada — eu o puxei para um abraço. — Ani ohevet otcha — Eu te amo, em hebraico.

Ele riu.

Ya tebya liubliu — respondeu o mesmo, em russo.

Dimitri apontou para um canto do quarto, onde havia uma mochila que me pertencia, e que parecia cheia.

— Eu arrumei para você.

Senti um calafrio que percorreu todo meu corpo.

— Se eu acreditasse em destino, diria que não nascemos para ficar próximos um do outro. Eu, pelo menos, sempre soube que esse momento chegaria.

Ele suspira.

— Eu também, Dena. No fundo, todos nós sabíamos e temíamos. Mas olhe para mim — ele segura meu queixo, e faz com que meus olhos subam até seu rosto. — Eu acredito em destino. E sei que nada disso é por acaso. E quer saber? Vamos acabar unidos. Um dia o nazismo vai acabar. Um dia você vai poder sair por aí sem medo, e vai poder brilhar nos palcos de teatros do mundo. Estados Unidos, França, Rússia, Inglaterra... O mundo vai ser seu palco! E é claro, eu vou estar na primeira fila da sua platéia, doce Adena...

Eu ri, e escondi o rosto, com uma mistura de timidez e tristeza.

Porque meus sonhos poderiam ser roubados antes de tudo aquilo acontecer. Eu poderia ser levada dali a qualquer momento.

O oficial voltaria. Eu sabia que ele voltaria. Ele tinha que voltar. Ashira...

— ... Um dia nós teremos filhos que sequer saberão o que é guerra. E um dia, eu vou me casar com você.

E essa foi a hora de gargalhar. Porque a muito eu não ouvia aquela proposta.

— Não ria! — protestou ele, segurando o próprio riso. — É verdade, Adena. Você merece ser feliz. E não importa onde, nem quando... Você será. Sua vida não pode ser uma eterna guerra. Um dia, doce Adena, você vai ser livre. E eu sempre estarei aqui para você.

— Eu sei, irmão. E eu o encontrarei. Nem que procure durante toda a vida.

Nenhum de nós dois queria admitir. Mas aquela foi nossa despedida. Talvez a última.

Entretanto, não a primeira.

Quando eu tinha dezessete anos, fazia dois anos em que eu estava me escondendo na família Savinna. Nós estudávamos em casa – uma medida necessária para evitar qualquer suspeita sobre mim. Porém, vez ou outra, eu, Milla e Dimitri tínhamos permissão para sair. Milla e Dimitri tinham amigos por toda vizinhança. Eu, por outro lado, sempre era novidade.

Um garoto, apaixonado por Milla, trocou de paixão quando me conheceu. Seu nome era Victor Berker.

Victor tinha cabelos loiros tão claros, que pareciam brancos. Seus olhos eram verdes, como dois limões imensos. Seus traços, fortemente alemães. E sua personalidade também.

Quando estávamos todos sentados na calçada diante de sua casa, não parava de falar sobre as maravilhas de sua raça, e colocava-se como superior diante dos dois irmãos Savinna. Comigo, era diferente, é claro. Ele tentava camuflar seu preconceito contra os não-alemães. Mas sequer imaginava com quem estava falando, afinal.

— Eu estou me empenhando para ser o melhor da minha turma — ele me contava. — Mal posso esperar para entrar no exército, e servir nossa Alemanha com meu sangue. Livrar nosso país desses judeus malditos, e dessa gente impura.

Dimitri e Milla ouviam a tudo, sem pestanejar. Apesar de serem contra tudo aquilo – como seus pais eram – não podiam levantar suspeitas sobre sua família “traidora”. Eu odiava ouvi-lo falar sobre aquilo. Portanto, sempre mudava de assunto, já que não queria ser grosseira.

Um dia, porém, minha paciência ultrapassou seus limites.

Era fim de tarde. Dimitri jogava bola, e Milla estava tendo aulas de piano em casa. Victor estava sentado na guia ao meu lado, tagarelando sobre suas lições – que eram, basicamente, uma grande e intensa lavagem cerebral instalada em toda escola da Alemanha. Cansei de ouvi-lo dizer sobre como o Führer iria salvar o país da desgraça, sobre como ele mostrou-lhes a verdade.

Foi quando ele mudou de discurso, e entrou em seu assunto preferido: Judeus.

— Quero matar esses infelizes — dizia ele. — Quero matá-los até não poder mais contar.

— Você me mataria se eu fosse uma judia, Victor? — questionei, duramente, olhando profundamente em seus olhos.

— Mas que pergunta! — disse ele, ofendido. — É claro que mataria!

— Pois te digo que você é asqueroso.

Seu rosto corou, num vermelho intenso sobre sua pele extremamente branca. Seu olhar logo se tornou o mais odioso que eu já vira na vida. Seus professores teriam orgulho.

— Pois te digo que você é uma vadiazinha, Ivy Savinna.

E ao final da frase, o punho de meu irmão veio como um vulto, certeiro no rosto de Victor. Eu mal havia percebido Dimitri se aproximando.

— Do que chamou ela, Victor? — berrou Dimitri.

Ele sorriu, com o sangue entre os dentes trincados.

— Vadiazinha. Sua irmã é uma vadiazinha. Deixe-me tratar dela, Dimitri. Só me dê um minuto.

Dimitri explodiu outra vez, socando o nariz de Victor desta vez, que o agarrou, e os dois rolaram pela rua. A gritaria entre os outros garotos era intensa, mas ninguém conseguia separá-los. Corri para dentro, e só quando Alek e o pai do outro garoto chegaram, a briga cessou. Dimitri saiu com um nariz quebrado, e alguns hematomas. Mas Victor também não saiu ileso.

— Você me disse, papai — Dimitri falou em sua defesa. — “Sempre defenda sua irmã”.

É claro que Alek se referia a Milla, mas o homem apenas sorriu, e não contestou.

Minhas saídas tornaram-se cada vez mais escassas depois deste dia.

— Trate de mim, minha doce Adena — Dimitri dizia, poético, com o riso escondido em cada letra.

— Oh, querido Dimitri. Eu o tratarei. Estarei contigo, não se preocupe — respondia eu, num tom igualmente teatral.

Ele riu. Eu me aproximei, e dei-lhe um beijo estalado na bochecha. Dimitri chegou para o lado na cama, e indicou o lugar para mim. Hesitei a principio.

— Vamos — pediu ele. — Fique aqui comigo. Eu lhe prometo casamento.

Aquela promessa era típica. O que podia fazer? Apenas gargalhei, e me deitei ao seu lado. Coloquei a cabeça em suas costelas, mas logo me afastei, depois dele emitir um profundo “Ai”.

— Só não me quebre, doce Adena.

— Mas é claro que não — disse eu, brincando com seus dedos, que repousavam levemente sobre seu peito.

Eram em momentos assim que Dimitri me fazia uma coleção de perguntas. “Como era na França?” “Como era no gueto?” “Como são suas irmãs?”

Ele é um anjo.

Gisella Savinna nunca fora minha maior fã. Eu não a culpava. Parava para pensar e me colocava em seu lugar. Em como sua família corria perigo, se eu fosse descoberta. Ela tentava, isso não se pode negar. Tentava me ver como uma filha. Mas nem mesmo Alek conseguia isso com totalidade. E ela detestava, particularmente, minha intimidade com Dimitri. Eu fiquei arrasada quando ela o enviou para Londres quando eu tinha dezoito anos.

Eu chorava baixinho todas as noites, conforme a viagem se aproximava, assim que ele deixava nosso quarto. Milla nunca me ouviu, ou fingiu que não. Mas ela também estava muito triste. Não tanto quanto eu, ouso dizer. Afinal, Dimitri era aquele que mais representava uma família para mim.

Uma vez, enquanto meus soluços começavam, a porta rangeu. Era ele.

— Adena? Esta chorando?

— Não.

— Está sim, olhe para mim.

Eu me virei, com o rosto encharcado.

— Ah, doce Adena — falou, enquanto se ajoelhava ao lado da minha cama.

Não precisava dizer nada. Ele sabia o motivo.

— Amanhã.

— É, é amanhã.

— Londres. É tão longe de Berlim!

— Eu sei.

As costas de suas mãos enxugaram pacientemente cada nova lagrima que brotava e deslizava sobre meu rosto.

— Eu vou voltar. E me casar com você — disse, com um sorriso brincalhão. Meu riso fora irônico.

— Com uma judia...?

Eu sentia raiva de Gisella, naquela época. Eu sabia. Sabia que estava afastando Dimitri por medo que algo acontecesse entre nós dois.

— Sim. Com a mais bela judia.

— Vai voltar mesmo?

— Ora, Adena, é claro que vou! Agora chegue para o lado, vou dormir aqui esta noite.

— Dimitri...

— Vou dormir aqui esta noite — repetiu. — E me assegurar de que não volte a chorar por bobagem.

— Não é bobagem, vou sentir sua falta.

Ele me encarou. Suas feições brilhando com os fios de luz da lua que passavam pela janela.

— Eu também vou. Mas um dia eu volto, para te buscar.

— Me buscar?

— É claro. Londres deve ser um lugar melhor que Berlim para você, minha doce Adena.

Assenti. Com certeza deveria ser.

Pouco dormimos, muito falamos. Dias, semanas, e meses difíceis sem Dimitri. Eu começava a me perguntar se ele realmente voltaria. Foi quando eu mais me senti Ivy Savinna. Tentava esquecer do nome verdadeiro de propósito. Mas se Dimitri não estava ali, outra pessoa apareceria para me recordar.

No meu aniversário de dezenove anos, meu pedido de presente para Alek foi um dia inteiro fora de casa. Com pesar, ele concordou. Nada fiz de especial naquele dia, além de andar pelas ruas frias, sentindo-me desconfortável e fora de lugar.

Na volta para casa, encontrei um lugar que vendia livros gastos, e que era também uma biblioteca. Foi lá que topei com a garota de longos cabelos loiros, bochechas cor-de-rosa, e olhar brilhante. Porque ela me olhava tanto? Sabia que eu era judia?

Fugi de seu olhar, escondendo-me entre as estantes com cheiro de páginas velhas.

— Adena Devet!

Olhei espantada para a garota, que tinha me seguido.

— Sim! Adena Devet, é você!

— Shiu! — fiz eu. Então olhei direito para seus traços, e logo estava abraçando a menina magra e pequena.

— Susanna!

— Sim!

— Adena, você está ótima! Graças á Deus! Não sabe quanto pedimos por você...

— Meu Deus... Como você está? Onde estão seus pais, e seus irmãos?

Seu semblante escureceu num segundo.

— Não sei.

Nós seguimos para um lugar nos fundos da livraria, onde havia mesas e cadeiras. Para nossa sorte, estava deserto. Contei sobre os Savinna para ela. Dimitri, Milla, Alek e Gisella. Minha rotina diária. Quantas coisas havia aprendido nos quatro anos em que estive com eles.

Susanna Weiss estava definitivamente feliz por mim. Mas eu temia que seu passado fosse tão terrível – ou pior que o meu. E estava certa.

— Eles destruíram tudo, Adena. Não sobrou nada. Eu e meus irmãos corremos pela porta dos fundos. Ouvi tiros. E logo estavam atirando atrás de mim e de meus irmãos também. Eu via fogo, via outras pessoas correrem e se misturarem conosco. Eu vi meu irmão que corria ao meu lado levar um tiro... E então o perdi...

Coloquei minha mão sobre a dela. Sabia exatamente como era: Um filme de tudo estava se desenhando em sua mente. Como acontecia comigo, quase sempre.

— Eu corri tanto... Corri a noite inteira. Invadi uma casa, e os donos eram alemães. Eu não conseguia falar nada. Eles me acolheram, apesar de tudo, apesar de saberem que eu era judia. Os oficiais não iam desistir assim tão fácil... Caçaram meus irmãos, um por um, e só faltava eu. Eles revistaram a casa em que eu estava. Tinham armas em punho, apontando para os donos da casa, para seus outros filhos, e para mim. Eles me viram, e um deles olhou bem nos meus olhos. Meus olhos azuis. Eles não me mataram, porque pensaram que eu era alemã. Você consegue imaginar isso, Adena?

— Não — respondi, sincera.

Não naquela época...

— Mas agora estou bem. Morando em um lugar bem escondido, com alguém. Alguém que você conhece...

— Mesmo? — perguntei, entusiasmada.

— Paulo Stern.

E minha expressão mudou. Eu o conhecia, e muito bem. Era o antigo noivo de minha irmã mais velha, Elliora. Instantaneamente, a imagem dos belos, brilhantes e apaixonados olhos de minha irmã me vêm à mente. Ela o amava, e era correspondida. Queria ter uma casa cheia de crianças, e nos contava sobre as coisas bonitas que Paulo lhe dizia quando passeavam pela rua juntos. Mas seus sonhos acabaram.

Não podia ficar triste por Susanna, por outro lado. Ele era um bom homem.

— Nós nos encontramos por acaso — dizia ela. — Ele fugiu de um campo, com outros judeus...

— Fico feliz que estejam bem, Susanna.

O encontro com Susanna foi o melhor presente possível. Quando Dimitri voltou, nós íamos juntos visitar ela e Paulo Stern, no galpão abandonado que tornaram seu lar, em um lugar um pouco afastado da cidade de Berlim em si. Paulo tinha vergonha de me olhar nos olhos, e era doloroso para mim vê-lo e lembrar de Elliora.

Mas eu me lembro que, em muitas conversas que eu tinha com Ashira sobre amor, discordávamos da forma que ele melhor se desenvolve. Ashira acreditava em amor a primeira vista. Eu acreditava que o amor verdadeiro se constrói. No entanto, concordávamos em algo: “Quando você ama alguém, você não o prende ou inibe.” Elliora era pura de coração, e jamais teria rancor de Paulo por seu envolvimento com Susanna. E eu também não teria. O amor deles era bonito. Susanna Weiss fora hábil para construí-lo.

Um dia, porém, Dimitri e eu chegamos ao galpão, e eles não estavam. Seus pertences estavam intocados. Nunca soube de Susanna Weiss ou de Paulo Stern desde então. Sempre peço á Deus que estejam bem, e juntos.


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram? Reviews aceitas. Beijos, e até breve.