Cípsela escrita por Taticastrom


Capítulo 7
Erlerbnisse


Notas iniciais do capítulo

Olá minha queridas!
Monique, eu sei que prometi a história para semana passada e peço, por favor, não me mate... Eu tinha metade do texto pronto, mas sabia que não podia ser assim tão má. Não contar a história da Karly e do Spyer?
Resolvi ser meio má apenas...
E fiz um dos capítulos mais longos que me lembro de ter escrito. Eu tentei ao máximo fazer o melhor capitulo possível, queria mostrar a cena que surgiu na minha cabeça no primeiro momento de Aaron Spyer surgiu na escola. E tinha que ser algo digno de seus olhos e cabelos negros, vazios e que só lembram a treva eterna.



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Erlebnisse: do alemão, as experiências positivas ou negativas, que sentimos mais profundamente e através das quais realmente vivemos.

– Certo, acho que devo começar do início. – Respirei fundo e senti como se tivesse colocado meus pensamentos em uma peneira como Dumbledore e levasse Annebelle comigo.

Era véspera de meu aniversário de seis anos, e pela primeira vez a minha mãe não estava em casa correndo de um lado para o outro com os preparativos para festa. Esse ano eu tinha pedido o tema de bailarina e meu pai nem sabia que era o mês do meu aniversário. Como toda criança de seis anos que sabia que não ia ganhar o que queria, eu estava chorando no recreio, sentada, sozinha em um banco, vendo as crianças correrem de um lado para o outro, brincando.
Em uma dessas correrias saiu um menino bochechudo, cabelos e olhos negros. Ele corria de encontro aos amigos chutando uma bola de futebol velha, nunca descobri o que o fez parar naquele instante e olhar para mim e simplesmente sorrir. O sorriso dele era a coisa mais gostosa do mundo, me alegrou por um segundo, me fez corresponder aquele pequeno gesto infantil e o seguir com os olhos durante o resto do recreio. Eu o observava de longe, continuava sentada, solitária, e depois de um tempo voltei a lembrar de minha mãe.
No final do recreio, quando o sinal tocou, ele veio correndo na direção da porta, na minha direção. Ele diminuiu o passo, parou do meu lado e me cutucou e disse, com o sorriso mais gostoso do mundo:
– Não fica assim. – E sumiu entre a multidão de crianças enlouquecidas. Eu sequei minhas lágrimas e esperei a bagunça diminuir para pular do banco. Eu era muito pequena – continuo a ser –, então meus pés balançavam no banco e eu não gostava de descer com pressa.
No dia seguinte eu já estava mais contente e esperava a hora do moreno sair correndo, para que eu pudesse ficar vendo a sua alegria e me alegrar. E quando ele passou com seus amigos, ele parou, e os demais continuaram a andar.
– Ei, menina chorona – Ele falou, sorrindo. – Quer brincar com a gente? - Passei o recreio com os meninos, jogando bola, desajeitadamente, mas me divertindo. Diverti tanto que esqueci minha mãe e a festa.

Algo vibrava na mesa, então parei de falar e esperei Nana ler a mensagem. Por fim ela me disse que o Tiago estava esperando ela no estacionamento há algum tempo, ela havia esquecido que ele ia lhe dar carona. Ela se despediu meio sem jeito, guardando seus cadernos rapidamente.
– Obrigada pela força nos estudos, e eu quero o resto da história. – Ela falou ajeitando a mochila e colocando no ombro. – E vou começar a ver o Spyer com outros olhos... Nunca imaginei aquela criatura tivesse sido criança.
Eu ri da piada dela, mas sabia que eu era culpada por findar com a inocência no coração de Aaron, por acabar com sua infância, com seu sorriso infantil, com seu jeito encantador. Eu era culpada por transformá-lo em um rebelde, um rapaz frio. Ele parecia um príncipe de gelo, inalcançável e irônico.
Os minutos se passavam, e eu continuava ali, parada, olhando para o nada, pensando em tudo. Tomei fôlego e resolvi que era hora de voltar para o inferno que eu chamava de casa. Terminei de arrumar meus materiais e certificar que não havia me esquecido de fazer nenhum dever para o dia seguinte e sai da biblioteca.
O sol estava se pondo, então não achei que precisava ligar para o Gabe e pedir para ele me buscar. O caminho não era impossível de se fazer e eu estava querendo ficar imersa em meus pensamentos e ainda tinha a vantagem, além de neurônios poderia queimar calorias.
As últimas horas tinham revivido emoções antigas, feridas que eu achava que cicatrizaram, mas continuavam abertas, doloridas, como na época que ocorreu. Lembrar-me de minha mãe era a pior parte, eu havia feito de tudo para esquecê-la durante os anos, apagar da memória como ela era. Enquanto eu andava começou a surgir do meu lado a imagem de como seria ela agora, como se ela tivesse me acompanhando de volta para escola.
Ela tinha cabelos loiros, eu me lembrava, os usava sempre longos e lisos. Seus olhos eram iguais os meus, cor de mel, ela falava que eu tinha puxado seus olhos, pois era doce. Lembro que ela usava vestidos florais para ficar em casa, como se fosse uma daquelas mães de subúrbio norte americano. Ela adorava cozinhar, apesar de ser um total desastre na cozinha. Ela adorava planejas coisas, meus aniversários eram sempre divertidos porque ela criava as mais diversas brincadeiras, encomendava uma diversidade de guloseimas, tudo para me ver feliz.
De repente toda aquela ilusão despedaçou do meu lado e as lágrimas voltaram. Aquele ódio que crescia com o passar dos anos, o abandono sem explicação. Eu entenderia se ela tivesse largado meu pai, levado a vida dela, mas me tirar de sua vida foi um crime que eu não estava disposta a perdoar e nem teria, já que ela nunca voltaria. Eu nunca saberia o que levou aquela mulher amorosa largar sua filha em um mundo cruel e morando com uma bruxa.
– Karly, seu pai acabou de sair para te procurar. Você não está com seu celular?
Falando no diabo, ele sempre aparece. Eu acabava de chegar em casa e ao abrir a porta deparo com Leskova usando trajes minúsculos que acho que nem Evellyne seria capaz de usar. Sua voz me irritava profundamente, como se fosse um ruído numa frequência que de tão alta machucava meus tímpanos.
– Pode avisá-lo que estou sã e salva. – Peguei meu celular no bolso e vi que tinha algumas ligações e mensagens do Gabriel, mas eu havia tirado o som e o vibrar do celular para poder ficar na biblioteca. – E com celular ligado, em mãos. – Mostrei o aparelho e subi as escadas.
Depois de tomar banho e colocar meu pijama eu me joguei na cama e esperei que o sono tomasse conta de meus pensamentos, mas era impossível. Eu estava pensando em um milhão de coisas ao mesmo tempo. Pensando sobre as minhas recentes descobertas sobre os Hortz, sobre o fato de não ter conversado com Lucca durante toda semana, de Nicolle ter ficado ocupada toda semana com os preparativos da festa e não tive como incomodá-la com meus dramas, o Matthew estar em uma banda – tocando bateria – se ele odeia barulho alto, meu pai com aquela Leskova nojenta no andar de baixo, relembrando o tempo de inocência de Spyer e principalmente, eu estava pensando em minha mãe.
Sai da cama, fui ate meu guarda roupa e peguei uma mala escondida entre brinquedos velhos na parte superior. Dentro dela escondida sobre varios panos e pedaços de papeis estava uma caixa.A caixa estava mofada, amassada e até rasgada. Deixei-a no chão por alguns instantes pensando se abria meu passado ou continuaria enterrando esse ódio em meu coração. Era uma caixa grande de papelão, sem nenhum escrito nas bordas, apenas aquela cor feia e estranha.
Abri a caixa e duas orelhas saltaram dela. Era um bichinho de pelúcia empoeirado, remendado e decapitado. Quando meu aniversário de seis anos chegou, Gabe me entregou o bichinho falando que minha mãe tinha comprado ele antecipadamente e pediu para que ele entregasse. Nos primeiros meses eu não saltava o pequeno Senhor Carrot, mas quando ela não voltava, não ligava e meu aniversário de novo se aproximava eu comecei a descontar minha raiva no pequeno brinquedo.
Eu havia arrancado seus braços, pernas e cabeças um dia antes dos meus sete anos. Eu chorava alto e meu pai não estava em casa, me deixou com uma babá idiota que tinha dormido vendo filme e acreditava que eu estava dormindo. Mas no dia seguinte eu pedi a tia Julie que o costurasse de novo e isso aconteceu por mais uns anos até eu querer enterrar minha mãe e guardei qualquer vestígio dela naquela caixa. O Sr. Carrot foi decapitado, mais uma vez, pois não estava cabendo ele inteiro e eu não me importava com o estado do bichinho, ele era uma memória ruim na época.
– Oh, Senhor Carrot, vamos te consertar – falei com a mesma voz infantil que disse na primeira vez que eu havia destrinchado o brinquedo. Deixei a caixa aberta, coloquei o boneco na minha cama, tranquei a porta e peguei uma linha e agulha.
Eu nunca fui uma garota com dotes para dona de casa, na verdade qualquer coisa que eu fazia eu era desajeitada, então costurar o bichinho seria uma missão impossível para mim, mas eu queria dormir com ele hoje, por algum motivo. Durante minha costura – que não ficou muito boa – eu consegui machucar no mínimo umas três vezes e manchei o pobre Sr. Carrot de sangue, como se ele não tivesse sujo suficiente.
Depois de conseguir colocar a cabeça e o corpo juntos, mesmo que bem torto. Eu resolvi dar um banho no coelho, fui ao banheiro e o lavei, para poder dormir com ele, e então eu sequei com secador. Sabia que não era a melhor das ideias, então terminei de arrumar o Sr. Carrot passando perfume nele.
Com o coelho inteiro e cheiroso nos meus braços eu comecei a chorar, sentia falta de minha mãe. E nem sabia que era possível sentir a falta dela depois de tanto ódio e amargura que eu havia criado. Tirei tudo da pequena caixa, os cartões postais de suas viagens, os meus presentes. Tudo ali, guardado em uma caixa que nem daria para ser reutilizada. Peguei uma foto nossa, eu devia ter acabado de completar um ano, ela estava rindo me segurando.
Peguei um porta retrato em cima da minha escrivaninha, que tinha uma foto minha com Gabe e coloquei ela no lugar. Naquele momento a minha raiva pelo meu pai era maior do que todos os anos de sofrimento que minha mãe proporcionou.
Voltei para caixa até achar uma pulseirinha, eu dava duas voltas no pulso para fechá-la antes, mas agora ela ficava perfeita. Ela tinha escrito propriedade de Louise e Gabriel Tharde. Eu a usava muito, pois Louise, minha mãe, tinha medo que eu me perdesse.
– Karly, abra a porta e desça para o jantar. Precisamos conversar. – O tom de Gabriel era sério, mas eu não estava com clima para sentar-se à mesa com uma víbora e um traidor, era mais do que eu podia aguentar depois de tantas emoções confusas na minha cabeça. – Te dou cinco minutos, senão vou abrir sua porta e não terá mais como fechá-la.
Eu não dava a mínima para o que Gabe falava, eu voltei para o chão e fiquei rodeada por todas as memórias que ainda me restavam daquela mulher, de todas as coisas boas que eu conseguia me lembrar. De ter puxado todo o desastre dela, ela sempre ficava com medo quando me segurava de me deixar cair. E nunca havia caído de seus braços.
Estava totalmente imersa na falta que sentia de ter uma mulher para cuidar de mim, me explicar a vida, me ajudar e me ouvir... Quando ouvi minha porta abrindo. Gabriel usou sua chave para abrir meu quarto e olhava para mim com muita raiva. Quando olhei nos seus olhos, virando e mostrando Sr. Carrot em meu colo e todas fotos e papeis no chão, seu rosto mudou.
– Eu não... – Ele havia se esquecido, aposto. Ele nunca lembraria que hoje completava exatos 12 anos que aquela mulher saiu de nossas vidas sem explicar o motivo. Se fosse outro ano, eu teria passado sem muitos problemas, chamaria Nicolle ou Matthew para sair ver um filme de terror ou uma comédia, um besteirol. Se fosse fim de semana, pediria para Gabe me levar para jantar, comeríamos pizza e íamos rir inventando histórias para as pessoas a nossa volta.
Mas não era um dia comum, nem um ano comum. Eu estava sobre o mesmo teto que Alexandra Leskova, exatamente como há doze anos, eu passei a maior parte do dia fora para evitar toda essa dor que me cortava por dentro, porém eu havia relembrado aquele dia com Annabelle e era pior, muito pior do que todos os outros dias.
– Você demorou a voltar por causa dela? – Ele falou entregando uma foto de Louise, que o impedia de sentar do meu lado. – Eu não sabia.
– Não se preocupe, Gabriel, você nunca se lembra. – Tirei a foto bruscamente de sua mão, me levantei e fui até meu calceiro para pegar uma nova caixa para guardar as coisas.
– Eu teria combinado para nós três sairmos se você tivesse me lembrando. – Ele estava triste, e eu sabia que não estava ajudando no humor dele, mas eu não queria que ele tivesse bem. Ele era o maior, se não único, culpado por toda essa dor.
– Três? O que, diabos, te faz pensar que me sinto melhor por ter essa vadia comigo? – Gritei. – Eu queria estar com meus amigos, mas estou de castigo. Eu queria estar rindo de qualquer coisa estúpida e esquecendo a Louise como ela nos esqueceu. Em vez disso eu estou em casa, chorando, segurando um maldito brinquedo que ela me deu.
– A Alexandra não tem culpa de nada disso. – Ele começou a ficar nervoso, e eu estava gostando disso. – Você me desrespeitou e por isso está de castigo. E sua mãe, ela foi por que...
– Porque essa mulher chegou! – Gritei. – Você nunca entendeu isso, né? Ela só foi embora porque não aturava mais viver com você e essa vadia. Eu não suportava, também. Essas paredes não são grossas o suficiente para impedir os gemidos quando Leskova estava em seu quarto. – Gabriel abriu a boca para falar algo, mas eu continuei: - Nem a sua frustação quando ela se foi. Você se lembra desse dia, né? Quando ela disse que vocês eram apenas amigos e saiu por aquela porta. Eu estou esperando que se repita e que você quebre a cara igual da última vez. Para eu não ser a única dessa casa que consegue enxergar quem é aquela mulher. Uma víbora sanguinária que nunca, eu disse nunca, devia ter entrado nas nossas vidas, muito menos na nossa casa.
– Como você sabe ou se lembra disso?
– De você e da Leskova? – Eu ri. – Eu era uma criança, mas não era cega. Já vi mais do que você imagina da relação de vocês, e não é de agora, já que suponho que ela esteja se comportando e dormindo no quarto de hospedes. – Por sinal, você se lembra que era ali que minha mãe dormia?
– Não importa o que você saiba ou deixe de saber – ele mudou sua voz para tentar mostrar que ele estava no comando. Ele era tão iludido a esse ponto? – Eu e Alexandra somos só amigos atualmente e exijo que a respeite, como ela te respeita. – Revirei os olhos. – E ela não está tentando pegar o lugar de sua mãe, ela não vai fugir como Louise fez.
– Ajudaria muito se ela fosse embora. – Sorri. – Tem mais algum urgente a tratar ou posso celebrar esse dia como eu quero? – Segurei Sr. Carrot mais próximo.
– Tenho, sim. – Gabriel falou. – Não importa que dia seja, não importo se foi o dia que sua mãe foi embora, o aniversário dela, o seu ou de suas amigas, se você não for chegar em casa antes de escurecer quero que me fale onde está. Não ligo onde esteja, mas eu quero seu maldito celular ligado, é para isso que pago a conta dele.
– Sim, senhor. Mais alguma ordem?
– Vá dormir! Eu me livro disso. – Ele foi para pegar a caixa, eu puxei da mão dele.
– O que você tá pensando? Quer apagar ela da minha memória como você fez com ela antes mesmo dela partir? Eu não sou você. – Eu o empurrei para fora do meu quarto. – Eu quero privacidade! E nunca mais toque nas minhas coisas.
Eu fechei a porta com força e puxei meu criado mudo para dificultar a abertura dela de novo e liguei o som na maior altura. Eu sabia que ele estava gritando do lado de fora e que a vadia estava tentando o acalmar, dizendo que é rebeldia de adolescente, que passa. O que me dava mais vontade de virar o pescoço dela. Escorei no criado mudo e abracei Carrot, acabei adormecendo assim, só acordei com meu despertador no dia seguinte.
Ainda estava escuro, mas, hoje, mais do que qualquer dia, eu queria desaparecer daquela casa sem ser vista por ninguém, mas sabia que isso só faria Gabriel me culpar mais e adorar mais a víbora. Então tomei meu banho demorado, maquiei o suficiente para cobrir as marcas de sono e choro que se misturavam em meu rosto, coloquei aquele uniforme mórbido e me olhei no espelho. Apenas um dia normal, era o que aparecia naquela imagem. Coloquei o Sr. Carrot bem escondido no meu guardarroupa, junto com a caixa, e tranquei-o, pois sabia que meu pai não tinha a chave dele e esperava que Alexandra não fosse louca o suficiente para tentar abrir, por fim, desci.
Café da manhã na mesa, especialidade de meu pai, panqueca de desculpas. Eu só não sabia se era para mim ou para Leskova, que teve que ouvir todo meu drama. Preferir acreditar na segunda opção, então sentei no sofá e esperei o casal descer.
– Bom dia. – Leskova falou, toda sorridente.
– Dia, pois não sei como será bom se você ainda está aqui. – Falei devolvendo o sorriso e depois voltando minha atenção para o teto.
– Karly! Peça desculpas e que isso não se repita. – Gabriel falou enquanto descia as escadas.
Disse um desculpa forçado e continuei a admirar o branco do teto de minha casa, enquanto os dois riam e comiam. Ainda bem que eu não tinha comido as panquecas, eu teria vomitado tudo com tanto enjoo que aqueles dois me davam. Tudo o que queria era chegar à escola e ter pessoas que realmente me amam por perto, mas meu pai resolveu demorar mais do que o normal naquele dia.
– Filha, hoje você vai perder o primeiro horário. Vamos esperar Alexandra se arrumar, vamos dar carona a ela, ela vai procurar emprego.
– Já passou da hora dela perceber que não é bem vinda e ACHAR algo. – Respondi. Não queria perder o primeiro horário, apesar de ser geografia, pois isso significava mais tempo respirando o mesmo ar infectado pela sanguessuga do mal.
Minutos depois ela estava pronta, mas só havia um emprego que ela conseguiria usando roupas tão justas e decotadas, mas acho que ela conseguiria muitos clientes a essa hora do dia e muito menos com aquela cara ridícula que nem para puta serve.
– Estou pronta. – A voz irritante ressoou no meu ouvido, parecia que ele ia explodir.
– Vamos logo? – Falei. – Não quero perder mais um horário porque a sua amiga demora anos para escolher a roupa.
– Desculpa, Karly, não queria te atrasar. – Ela falou e eu olhei para ela com a cara de tédio.
– Desculpas rejeitadas. – Falei e entrei no carro, colocando meus queridos fones de ouvido e tampando qualquer sermão estupido que meu pai tenha me dado por ter sido tão grossa com a mulher.
Cheguei ao colégio o sinal do segundo horário soando e cheguei na hora que o professor fechava a porta. Pedi desculpas e entrei na sala, sentei entre Nicolle e Annabelle e com Lucca sentado atrás de mim. Não me lembrava de ter conversado com ele nos últimos dias, na verdade nem me lembrava de tê-lo visto.
Há pessoas que odeiam a escola, acham extremamente chato acordar cedo para ouvir um tanto de baboseira inútil e que você nunca vai usar efetivamente na sua vida. Eu sou uma daquelas estranhas que ama a escola, eu me sentia muito mais em casa ali do que em qualquer outro lugar. Eu tinha uma família ali que era mil vezes mais próxima de mim que minha família de verdade. De fato meus amigos eram poucos, mas eu não precisava mais do que aqueles três para toda minha vida ter algum sentido. Eles eram o que restou da minha sanidade, eles me mantinham viva.
E fiquei imersa em meus pensamentos pelos dois horários. Ouvia Nicolle falando sobre os preparativos da festa enquanto supostamente fazíamos uma atividade de física. Sabíamos que não entenderíamos de qualquer maneira, para que gastar nossos minutos juntas com fórmulas de velocidade?
– Gente, vocês não acreditam. – Ela começou. Lucca e Annabelle estavam sentados juntos com a gente. – Não foi aceita a minha proposta de festa a fantasia sobre a história de Cípsela, sua prima Lucca conseguiu os votos de toda a comissão e teremos o criativo tema de Contos Recontados. Eu realmente queria sair da equipe depois de ouvir isso, mas não sou de desistir de um desafio e vou fazer essa ser a melhor festa que essa escola já viu. Apenas. – Ela mexeu em seu cabelo e virou os olhos.
Eu sabia que Nicolle queria muito que nossa festa tivesse um tema mais criativo, algo mais nosso, pois era mais a cara dela e a nossa cara, mas Evellyne era um estorvo na vida de qualquer pessoa, com seus decotes ela conseguia todos os votos masculinos e com algumas dicas de beleza e convites para eventos ganhava o restante da comissão. Eu já havia passado por aquilo na época que substitui Nicolle e não entendia por que ela continuava, mas minha amiga realmente não ia deixar se abater por uma garota mimada, ela teria as coisas do melhor jeito possível. O dela.
O recreio começou, eu e Annabelle sentamos em um ligar isolado para que eu terminasse de contar a minha história com Spyer. Nicolle tinha se juntado a gente naquele dia, pois a comissão não iria se reunir.
– Evellyne tem coisas mais importantes para fazer no intervalo do que ficar discutindo qual será o cenário da festa. – Nicolle imitou a voz da garota em questão e revirou os olhos. – Por que me sinto como uma intrusa aqui?
– Estava contando a Annabelle o meu passado com o Spyer. – Falei sorrindo.
– Que absurdo! – Ela fez cara de ofendida e sorriu. – Posso continuar como uma intrusa e ouvir? Com nossos anos de amizades você nunca me contou o que aconteceu aquele dia, nunca perguntei, achei que quando tivesse pronta me procuraria. – Ela tentou disfarçar que ficará chateada por eu não ter buscado ela.
– Claro que pode, né. – Falei sorrindo. Eu queria pedir desculpas a ela por ter falado com uma “estranha” antes de falar com ela, mas eu nem sabia que precisava e conseguia falar sobre aquele dia antes de Annabelle me fazer despejar toda minha dor em cima dela. – Eu parei no dia que conheci o Spyer, você se lembra? – Nicolle assentiu, éramos amigas desde aquele época, ela estava com os amigos de Aaron aquele dia.

Meu aniversário chegou e passou. E todos os dias eu me encontrava com Aaron, esperava-o no mesmo lugar, naquele banco amarelo descascado. Crescemos juntos e dos seis aos doze eu passava mais tempo com a Aaron do que qualquer outra pessoa. A avó dele me esperava na casa deles todas as tardes de sexta com bolo de chocolate e não teve um aniversário que não passamos o dia inteiro juntos.
Tínhamos outros amigos. Mas sempre preferíamos a companhia um do outro. Ele me fazia jogar vídeo game e eu o obrigava a brincar de casinha, mas os anos foram passando e como toda criança nosso corpo e mentes foram mudando.
Subitamente eu chegava na casa de Spyer em uma sexta depois da aula e ele estava jogando com algum colega, passava o recreio rodeado por meninas. Não sei se alguma de vocês lembra ou sabe, mas Spyer era de nossa equipe de futebol na época que ganhávamos alguns troféus. Ele era o melhor jogador e as meninas queriam estar perto dele. E eu fui esquecida, deixada de lado. Mais uma vez.
Os meses se passaram e um dia eu tinha ficado para o jogo de Spyer. Mesmo não sendo mais a melhor amiga dele nunca havia perdido um jogo se quer, vibrava em cada ponto e tremia toda vez que ele saia machucado pelas faltas e marcações. E aquela sexta não seria diferente.
Na quarta anterior a esse jogo ele tinha participado de um campeonato, mas eu tive problemas com Gabe e não pude ir, mas ele não sentiria minha falta. Nas primeiras vezes depois de me sentir distante dele eu esperava que ele me visse, mas saia sozinha da quadra e desisti de esperar.
O jogo acabou, e como sempre o time de Aaron sairá vencedor, sem esperar ser notada saí para o estacionamento, Gabe disse que me buscaria pontualmente naquele dia, mas ele não estava do lado de fora e era uma noite fria.
As pessoas saíam buscando seu carro na pouca iluminação que o Estádio Municipal de Cípsela oferecia. Era a final do campeonato e os gritos eram altos, pais gritavam e outros choravam. Era uma emoção gigante e eu sorria por meu querido ter sido responsável pela vitória, mas não tinha ninguém para exibi-lo e nem sabia se podia chamá-lo de amigo mais...
Eu já havia saído do estacionamento, estava me abraçando para aquecer do frio, escorada no muro do estacionamento. Via as pessoas passarem rumo a algum restaurante comemorar a vitória ou talvez um bar para chorar a derrota. Eu vi o time de Aaron sair, meninas rodeavam os meninos de uniforme amarelo e não sabia se ele estava ou não lá.
Não sei como ele me viu com as garotas rodeando ele, ou se quer o motivo dele ter me visto, mas ele mandou as pessoas continuarem e foi ao meu encontro.
– Apreciando a vista, Tharde? – Ele falou. Não me lembrava de sua voz ser tão grave. Era a primeira vez que ele me chamava pelo sobrenome e não com o diminutivo de meu nome ou pequena.
– Esperando meu pai. – Falei sem olhar para ele. – Parabéns, foi um ótimo jogo.
– Foi bom, mas poderia ser melhor. – Ele falou meio vago e voltou a olhar para mim. – Por que você veio hoje?
– Eu sempre venho. – Falei sorrindo.
– Não veio quarta. – Eu ia começar a me desculpar pro isso e ele continuou. – Não sei por que você continua aparecendo aqui. Achei que já tinha entendido que eu cansei de você, todo mundo cansa de você! Você é uma criança ainda, olha, já está com lágrimas nos olhos. – Ele segurou meu rosto para olhar no olho dele. – Vai chorar por ouvir a verdade? Porque isso nem é o começo da verdade, você é uma chorona desde o dia que eu te conheci e se eu te suporto é por pena! Eu perdi a minha mãe quando nasci e ninguém conhece meu pai, e nem por isso saio chorando por aí como uma criança que perdeu a mão da mãe enquanto andava.
Spyer sabia que eu tinha apenar um ponto fraco, ele sabia seu nome e sobrenome e usou contra mim.
– Sabe por que sua mãe saiu de casa? Por que ela nunca voltou, mandou mensagem ou tentou entrar em contato com você? Porque ela simplesmente não suportava esse seu jeito estupido. O quão idiota você é? Não vê que estou feliz, que não preciso e nunca precisei de você? Por que continua a correr atrás de mim como se fosse um cachorrinho? Eu não te suporto, ninguém poderia te suportar. Nem seu pai te suporta, por isso ele trabalha o dia inteiro e a noite sai para beber e se divertir. Foi por isso que ele trouxe aquela ruiva para casa dele, porque ela fazia você desaparecer. Sua mãe foi embora, mas quem devia ter saído de Cípsela para nunca mais voltar devia ser você!
Desde o instante que ele começou a falar de minha mãe um fogo se acendeu em mim, as lágrimas secaram com ele em um instante. E meu corpo todo queimou quando ele falou da ruiva, se ouvir falar de minha mãe acabava comigo ouvir que Leskova era melhor que eu, que meu pai preferiu ela fez todo meu ódio aparecer.
Eu queria dar um tapa na cara dele, um que deixasse o rosto dele vermelho para quando ele voltasse para as meninas, que avistavam de longe ele falando comigo e cochichavam, sentissem dó dele e os garotos do time rissem por ele ter apanhado de uma garota menor que ele. Eu só queria expressar o desprezo que sentia por aquele que cheguei a achar que um dia amei.
Minha mão parou de me responder, minha mente desligou e meu corpo entrou em um modo de pura adrenalina, ódio e eu sentia um lado animalesco me dominar. Minha mão que caminhava para dar um tapa memorável no rosto de Spyer foi parar em seu pescoço.
Fazia pouco tempo que havia deixado minha unha crescer, mas ela tinha um tamanho razoável naquele dia. Em segundos elas perfuraram camadas superficiais da pele de seu pescoço traçando uma linha de sangue que acabou em seu coração. Minha mente voltou a funcionar naquele momento, ao senti uma pulsação do órgão mais vital do moreno em minha mão. Um monstro dentro de mim queimava e queria arrancar o coração deixando apenas uma poça de sangue como lembrança daquele que um dia eu amei. Mas meu lado humano e racional conseguiu se sobrepor e retirei a mão do peito de Aaron quando o garoto desabou desmaiado na minha frente, pessoas já nos rodeavam perguntando o que tinha acontecido e como ele tinha uma fenda no peito. Minha mão sangrava, ele sangrava e minha visão subitamente virou preta e branca. Eu senti minha mão doer, meu fogo cessar.
Os médicos dizem que ele conseguiu ativar um lado inativo de meu consciente, um lado que ainda temos e que foi esquecido desde que deixamos de ser nômades, ainda na época das cavernas. E ao ativá-lo, fez meu corpo produzir a mesma adrenalina que seria necessária se eu estivesse em uma guerra contra um felino de grande porte. E assim consegui perfurar sua pele e chegar exatamente em seu coração. Apesar de ter feito uma fenda no peito do garoto eu não o havia matado, seu pobre coração batia lentamente enquanto eu também desmaiava ao seu lado por ter usado todas minhas forças tentando acabar com a vida dele. Quando olhei para minha mão eu vi o motivo da dor.


Levantei a minha mão direita para elas verem, meus dedos eram meio tortos, como se tivesse atingido algo muito duro, no caso ossos de Spyer, mas não era o que queria mostrar, puxei a unha do meu dedo indicador revelando a carne embaixo dela e nenhum vestígio da unha que deveria estar ao tirar a postiça.
Minha unha de verdade ficou presa no coração de Aaron, mas apesar de estar fixada eu não havia perfurado seu coração ou nenhuma artéria que tiraria sua vida.

Respirei por alguns instantes e ouvi o sinal tocando, havia muito pouco se contado ainda, então apenas disse:
– Vamos para sala, teremos tempo para que eu possa continuar mais tarde. – E enquanto falava eu sentia novamente a mão doendo e a vista ficar cinza. Eu senti uma dor no peito, como se uma mão invisível tivesse feito o mesmo que fiz a Aaron, continuei andando para sala quase normalmente.


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Notas finais do capítulo

Queria poder dizer até breve, mas não sei quando poderei voltar. O ano começou e já entrei em um ritmo frenético, mas escrever é o que mantém a minha sanidade e todos os meus minutos de laser dedicarei a minha cidadezinha e seus habitantes misteriosos.
Obrigada pelo carinho Monique e Mari Guimarães. Se tiver mais algum leitor fantasma, por favor, me escreva, com certeza fará meu dia mais feliz.