Cípsela escrita por Taticastrom


Capítulo 8
Quatervos




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Quatervos: Em italiano, encruzilhada, decisão crítca ou ponto da virada na vida de alguém

Nicolle começou a olhar preocupada para minha mão. Eu segurava a unha e evitar que mais pessoas vessem a carne viva ali. Cheguei à sala e enfaixei meu dedo para esconder o machucado e tirar aquela cara de pena na cara da ruiva.
– Está tudo bem? – Ele perguntou.
– Não se preocupa, Nic, eu lido com isso há cinco anos. – Falei sentando e tentando prestar atenção na aula. Mas eu havia mentido, ter arrancado a unha é algo que nunca havia feito e todas as vezes que inconvenientemente ela caía e eu ia direto para a enfermaria para colocá-la no lugar.
Algumas pessoas perdem a unha chutando uma pedra, dói e muito, mas a unha se reconstitui. Por alguma questão química que meus conhecimentos de ensino médio não permitem explicar, eu havia perdido aquela unha para sempre e nunca cicatrizaria completamente. Pelo meu entender eu adquiri alguma substância que inativou as minhas células naquele local quando em meu transe de fúria inexplicável tentei agarrar coração de Spyer.
Sendo assim, toda a vez que eu perdia a unha, por algum motivo, a dor era insuportável. E naquele dia estava duplicada. Para colar a minha unha eles usavam uma mistura de colas e ao arrancar a unha eu havia também arrancado outra camada de pele. Enquanto o professor falava eu sentia meu sangue fluindo bem devagar e manchando o meu curativo. Tentei respirar fundo e esquecer a dor, eu sabia que tinha que pagar pelo que havia feito a Spyer e aquilo era o mínimo.
O mundo começou a rodar devagar e o cinza, meu querido companheiro, voltou. Enquanto a aula passava eu ouvia vozes ao meu redor, um sussurro para que escutasse o que ele havia aprontado naquele dia. Eu via seu sorriso maroto, mesmo quando não era culpado ele exibia um sorriso que o culpava. Seus olhos negros me suplicavam para que encarasse. Tão pequeno e tão diferente. Aquele era meu amigo há anos. Aquele que eu amei, aquele que eu matei. Eu merecia tê-lo como meu fantasma real.
– Karly! – Uma voz ressoou em minha cabeça, fazendo-a pulsar.
– Desculpe. – Tirei meus olhos perdidos no vazio e puxei a minha mão para debaixo da cadeira. Foi meu erro, ao mover bruscamente a mão, a dor se alastrou por todo meu corpo, me fazendo contorcer na cadeira e uma ânsia tomar minha consciência.
Cinza, como sempre o cinza, a visão perdeu toda a cor. Eu não via mais nada da realidade, apesar de ouvi-los. Eu apenas via Spyer na minha frente, mas já não era o pequeno moreno, era o jogador de futebol popular, o garoto me chamava de fraca como da última vez. E eu era humanamente fraca, meus olhos se fechavam para dor e ele me lembrava de que cada movimento meu era prova de seus argumentos.
– Eu posso carregá-la até lá, professor. – Ouvi uma voz falar muito perto de mim e não era o sussurro de minhas alucinações. – Vou ficar com ela, se puder.
Alguém tocou em meu rosto, tentando fazer com que despertasse do meu pequeno transe, mas sem sucesso. Depois senti alguém envolvendo meu corpo com seus braços e me carregando como uma criança. Naquele estado de impotência Spyer ria ainda mais de mim, ele acompanhava meu salvador dizendo que aquela cena era o resumo de tudo que era, uma criança sem ação, um nada.
Tentei retomar minha consciência, mas gerava ainda mais dor e eu me contorcia entre os braços quentes e uma voz suave me pedia para acalma, ou ele não seria capaz de me carregar. Eu tentei entender como diabos uma unha tinha feito tanto estrago em mim, mas não era uma unha qualquer. De qualquer forma, as outras poucas vezes que ela havia soltado eu só sentirá uma dor, digamos comum, para quando você deixa sua unha em carne viva, o que sentia naquele momento era a pior das sensações possíveis.
O meu herói sussurrava no meu ouvido tentando me acalmar, pedindo para que eu não me debatesse ou iríamos os dois para o chão, mas naquele estado de impotência quando a dor vinha eu me curvava a ela, submissa a uma dor sobre-humana que não podia ser causada apenas por uma misera e pequena unha perdida há anos. E a voz de Spyer continuava a me criticar, me humilhar, me denegrir, me devorar...
– Por que essa maldita enfermaria é tão longe? – Disse o meu anjo da guarda, ele andava mais rápido do que eu achava que alguém poderia segurando uma garota como eu. Eu senti muita dó do garoto, ele havia esquecido que a enfermaria era do outro lado do colégio? Uns bons metros de distância para carregar uma pessoa acima do peso, como eu.
Devíamos estar próximos, pois ele começou a reduzir o passo. Tentava abrir meus olhos, mexer meus lábios, mas nenhum músculo do meu corpo correspondia. Estava imersa em um coma de profunda consciência. Um pesadelo. Presa no próprio corpo.
– O que aconteceu com a Tharde? – Ouvi outra voz. Uma doce e conhecida voz, uma música venenosa em meus ouvidos já calejados de ouvi-la. Era a voz de outro anjo. Um anjo negro, caído, que abriu mão de suas asas, ou lhe foram arrancadas a força, meu anjo da morte, um anjo criado e moldado para me matar, lenta e dolorosamente.
– Não sei ainda. – O anjo da guarda falou enquanto me passava desajeitadamente pela porta da enfermaria e me deitava em uma das camas. – Sabe onde está a enfermeira? – Ele passava a mão em meu rosto, em um misto de carinho e verificação de minha temperatura.
– Foi arrumar meu remédio. – O Anjo da Morte disse e aposto que dando um sorriso torto e encostando-se à parede próxima da minha cama, do meu corpo. Eu sentia sua presença, meu corpo queimava.
– Vamos ter que esperar então, Karly. – O herói falou e sentou do meu lado na cama, arrumando o travesseiro e colocando um cobertor.
– Você pode ir embora, novato. Eu cuido dela, conheço-a a mais tempo de que você e sei como cuidar dessas crises. – Enquanto falava a morte se aproximava de mim e tocava meus braços, fazendo uma trilha até meu rosto. – Já estivemos em papeis trocados, eu devo a ela.
– Desculpa, garoto, mas eu não te conheço e não deixarei a Karly sozinha nesse momento. – O anjo bom disse quase em um rosnado. – Você pode conhecê-la a vida toda, eu que trouxe ela até aqui e só saio com ela. E meu nome é Lucca Hortz.
– Aaron Spyer. – Foi tudo o que o outro respondeu.
Agora tudo fazia sentido, eu devia estar sonhando por causa da dor. Eram apenas ilusões muito bem feitas pela minha mente, mas já estava começando a me acostumar em ser vítima da realidade. Então eu só precisava esperar acordar daquele pesadelo tão real. Apenas esperar...
E a dor voltou cortando meu peito de uma forma tão intensa que parecia querer tirar meu coração do lugar, me encolhi toda e dei o primeiro sinal de consciência aqueles dois anjos ao meu lado, um grito de dor, que foi abafado por outra demonstração de dor ao meu lado.
– Droga, cara, o que houve? – Lucca tinha saído do meu lado e agora estava perto de Aaron. Pelo barulho, o último devia ter caído sobre a mesinha que fica do lado das camas.
– Nada sério. – Apesar de tentar demonstrar superioridade, ainda havia um ruído de dor em sua voz. Preocupada com meu ceifador tentei abrir os olhos, o esforço fazia cada pedaço do meu corpo queimar, mas já conseguia ver o mundo supostamente real.
Lucca tentava ajudar Spyer a se levantar, mas o moreno era muito teimoso e começou a se levantar sozinho, tentando, inutilmente, disfarçar qualquer vestígio de dor em seus movimentos. Devagar e decidido ele andou até sentar do meu lado na cama e como se eu fosse o melhor remédio do mundo ele parou de tremer.
– Eu disse que pode sair, já temos superlotação de enfermos na enfermaria hoje. – Aaron percebeu que meus olhos estavam abertos e deu um sorriso torto que fez meu coração disparar. – Eu tenho que ficar para receber meu remédio mesmo... É como se o destino quisesse colocar nós dois juntos de novo, minha Karly.
Esse pesadelo estava terrivelmente real. Olhei para o loiro ao meu lado que estava tentando saber o que fazer e suplicava para não me deixar sozinha. Juntei mais forças ainda e resistindo ao fogo que crescia com cada tentativa de movimento meu apertei a mão de Lucca. Não que eu confiasse no Hortz, mas qualquer pessoa no mundo era menos desagradável que Aaron Spyer, menos perigosa e menos doloroso a sua presença. Eu precisava de algum vestígio de sanidade e o cabelo loiro angelical de Lucca podia amenizar as coisas naquele momento.
– Consegui achar, Aaron. – Ouvi a voz da enfermeira, mas não queria ou conseguia tirar os olhos do Hortz. – Vejo que tenho outra paciente, o que aconteceu com a senhorita Tharde?
– Ela não estava respondendo ao professor e quando percebeu que ele falava com ela e mexeu o braço caiu desmaiada. – Lucca explicou e depois pegou meu braço com muito cuidado e mostrou a ela. – E ela está sangrando muito.
Ela me examinou com os olhos rapidamente e voltou a Aaron e pegou a injeção com o remédio que ela pegara e injetou no braço do garoto.
– Sua dor vai passar logo, mas qualquer coisa pode ficar deitada ali. – Ela então voltou para minha mesa e delicadamente foi limpando a minha mão. Era uma dor inexplicável que sentia naquele momento. – E quanto a você, garoto, não tem aula para assistir?
Lucca olhou para mim e respirou fundo, ele queria me ajudar, mas não valia uma suspensão. Tinha que me lembrar de agradecê-lo depois. Ela tirou todo sangue de minha mão, estancou o sangue e abriu a gaveta pegando uma caixinha que tinha meu nome escrito nela.
– Faz tempos que você não apronta uma dessas, hein, Karly? – Abriu a caixa e lá estavam outras unhas postiças perfeitas feitas para mim. – Mas o que você arrumou para ter perdido tanto sangue, hein? – Ela pegou então a cola na caixinha, não faço ideia do que continha naquele frasco, só sabia que queimava quando se encostava à pele e que por algum motivo ele conseguia manter a unha unida à carne, parecendo uma unha normal, que nunca voltaria a ter. – Vou ligar para seu pai te buscar, vamos ter que colocar você no soro de novo.
Fechei os olhos novamente, sentindo tudo queimar, e adormeci. Já estava imersa em um mundo totalmente ilusório, sonhar para mim não fazia mais sentido, eram apenas fragmentos de memórias que queria esquecer, do passado que não queria me libertar, da dor. Apenas dor me restava.
Desde que Aaron e eu entramos no hospital mandaram para salas diferentes. Eu estava presa na maca, gritando mil desculpas para Aaron e a culpa crescia em mim e brotavam em forma de lágrimas em meus olhos. Não me consideravam uma aberração que pudesse causar algum dano grave na sociedade se não fosse trancafiada, então me deixaram presa em uma amarra que ninguém poderia me tirar. A minha própria amarra, a da culpa a de saber quem era e do que era capaz quando não estava totalmente sã.
Desde aquele dia eu fiz inúmeras tentativas legais e ilegais de entrar no quarto de Spyer, sem nenhum sucesso, mas eu consegui. Meses depois eu tentei um método muito arriscado de entrada de um hospital chique como o Madre Inês de Cípsela. Sim, tínhamos um hospital como nome de uma madre conhecida na região há muitos anos e que dizem que morreu acusada de bruxaria... Vai entender esse mundo, né?
Tinha dito a meu pai que dormiria na casa de Matt e avisei a Matt que chegaria tarde na casa dele para que ele me acobertasse por algumas horas. Ter um primo mais velho é a única benção que Deus me deu, e eu sabia aproveitar muito bem dela.
Também aproveitei meu tamanho diminuto para me esconder na escuridão da noite que cobria o hospital. Estava tudo fechando e eu estava agachada entre os arbustos esperando as pessoas saírem. E esperei até não ouvir mais nenhum barulho.
Era óbvio que tinham sensores de movimentos que gritariam ao sentirem minha presença, mas eu tinha que tentar, eu precisava vê-lo. Havia escada de emergência a duas janelas do quarto dele e tudo que precisava fazer era pular de uma a outra e entrar. Falar parece fácil, não? Agora fazer é outra coisa.
Devagar com passos de bailarina e sem fazer qualquer barulho eu cheguei até as escadas. Subi-las sem dar indícios de que havia alguém ali seria muito mais complicado, pois precisaria ir tão devagar quanto uma tartaruga para não balançar todo aquele trambolho enferrujado e gastei muitos minutos andando na ponta dos pés e a zero km/h naquela escada.
Chegando a já falada janela eu comecei a tremer de frio e talvez um pouco de medo. Estava alguns bons metros do chão e se a queda não me matasse eu não andaria por um bom tempo. Respirei fundo e lembrei-me de meu objetivo, eu precisava vê-lo. Não estava agindo por razão, mas era um impulso tão forte quanto aquele que me moveu para deixa-lo deitado na cama.
No parapeito da janela eu tive a pior ideia do mundo, olhar para baixo. Eu já sou uma desequilibrada nata, olhar para baixo me fez perder a confiança que podia chegar á outra janela. Segurei na grade daquela janela e deixei aquela força me mover, apenas fechei os olhos e com o tato cheguei no local que teria que pular. Abri os olhos e já não havia medo, eu estava a um passo de meu amado e nada me impediria de chegar em seu quarto. A distância entre as janelas era o maio salto que daria, mas parecia que não precisaria dar mais de um passo, estava fácil, palpável o meu objetivo final. Peguei impulso e parei na janela ao lado, que por alguma obra divina não tinha grades e a janela estava destrancada.
Terminei de abrir a janela e entrei no quarto. Aaron estava sozinho, deitado com fios saindo de seu corpo e maquinas o monitorando. Seu coração batia estável e foi um alivio para mim. Aproximei-me dele e passei a mão em seus cabelos.
– Por que você tinha que ter falado comigo daquele jeito, Aaron? – Passei minha mão em seu pescoço, que antes me dera vontade de torcer agora queria afagar e beijar. – Eu não queria fazer nenhum mal a você, imagina se eu soubesse que tinha toda essa força, eu nunca teria aproximado de você. – As lágrimas surgiram em meu rosto quando passava a mão nas cicatrizes e ia falando com ele, aproximando da maior ferida que eu já fiz em alguém. – Eu queria poder te tirar daqui, eu trocaria de lugar com você, eu te daria minha força. Oh, Aaron, como eu queria que as Cípselas realizassem desejos, mas passamos nossa infância pedindo nossas mães de volta e nunca fomos atendidos... E se existe um Deus, ou vários, nenhum quis me ouvir, nenhum foi capaz de acudir a besta que criou. É isso que sou, Aaron, um monstro, uma pessoa desumana que nunca deveria ter entrado em sua vida.
Não sou tola de vir te perdi perdão, como poderia? Por alguns centímetros eu não te matei, por alguns segundos eu não tirei a vida daquilo que mais importava para mim. Eu queria que você soubesse que sempre estive em seus jogos por que mesmo não sendo mais sua amiga eu queria acompanhá-lo de longe, como um famoso que eu conheci antes da fama, o meu herói sem poderes, nunca quis te magoar ou te importunar. Não queria ser um estorvo em sua vida, como sou na de todas as pessoas e sei disso. Sei que nada do que disse é mentira, talvez tenha excedido na intensidade, mas eu sou mesmo uma garotinha ainda, uma menina que se sente órfã, carente. Mas eu tinha você. E nada mais era preciso ao seu lado, Spyer. Sei que quando acordar, e eu prometo que vai, você não vai querer olhar nos meus olhos, provavelmente sua avó vai te tirar da cidade. – Eu havia me sentado ao lado dele e conversava baixinho, mexendo em seus cabelos como fazia antes de toda confusão. – Seus avós fizeram uma petição para me expulsar da cidade, nem sabia que isso existia... Mas a prefeitura achou uma afronta e um absurdo tentar tirar uma criança dos braços de seu pai, uma criança que sofre de sérios distúrbios psicológicos. Sua avó fez o maior alvoroço, ela chegou a me segurar pelos braços no dia que fui visita-la e pedir desculpas e me jogou no chão da rua, me chamou de coisas horríveis, mandou que eu nunca mais chegasse perto dela e conseguiu uma ordem judicial para que eu não chegue perto dela e nem de você, mas não pude respeitar a última parte. Não sei como, Spyer, mas eu vou te tirar dessa, deve haver no mundo uma cura e eu vou achá-la, nem que tenha que lutar com unhas e dentes por você. Essa é a minha única obrigação na vida. Quando você acordar, quando estiver andando, falando e sentindo tudo de novo eu sumirei de sua vida, não saberá de minha vida e será como se fosse um pesadelo ruim. Eu serei exorcizada de sua vida, para todo o sempre.
Quando terminei de falar as lágrimas rolavam em meu rosto, era meu adeus, um definitivo, um que queria cumprir. Beijei a testa dele e pedi mais uma vez esperando que algum ser sobrenatural atendesse a minha súplica, mas monstros não têm deuses que olham por ele. Monstros são apenas monstros e suas vidas são miseráveis e sem cor. Somos seres que não merecem um dia de sol.
Quando cheguei perto da janela ouvi um movimento na porta, parece que o vigia havia ouvido vozes no quarto do garoto em coma e veio descobrir do que se tratava. Olhei para o parapeito da outra janela, a maçaneta abrindo e o chão a metros de mim, tomei a atitude mais insana e pulei. Cai sem um só ruído, como um felino e comecei a correr. Não olhava onde estava ou quem estava por perto, passei por obstáculos que eram meros borrões e cheguei ao portão ainda fechado. Ou esperava e era obrigada a pagar pena por invasão de propriedade e descumprimento de ordem judicial ou pulava o muro. A adrenalina me fez escolher o outro sem pensar. Pulei o muro, caindo do outro lado, como um felino, e correndo na escuridão de Cípsela.


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