Death Note: Ressurreição escrita por Goldfield


Capítulo 23
Capítulo XXIII: Ressurreição




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Todas as nossas horas chegaram

Aqui mas agora elas se foram

As estações não temem o ceifador

Nem o vento, o sol ou a chuva… nós podemos ser como eles são

Vamos lá baby… não tema o ceifador

Baby segure minha mão… não tema o ceifador

Nós poderemos voar… não tema o ceifador

Baby eu sou seu homem...

 

La, la, la, la, la
La, la, la, la, la

 

O Dia dos Namorados terminou

Aqui mas agora eles se foram

Romeu e Julieta

Estão juntos na eternidade… Romeu e Julieta

40,000 homens e mulheres todos os dias… Como Romeu e Julieta

40,000 homens e mulheres todos os dias… Redefina felicidade

Outros 40,000 vindo todos os dias… Nós podemos ser como eles são

Vamos lá baby… não tema o ceifador

Baby segure minha mão… não tema o ceifador

Nós poderemos voar… não tema o ceifador

Baby eu sou seu homem...

 

La, la, la, la, la
La, la, la, la, la

 

- - - - - - - -

 

Capítulo XXIII

 

“Ressurreição”

 

Todos na catedral prenderam a respiração, contemplando o rosto da mulher que se apresentara como “R”. Praticamente ninguém ali a conhecia, os contornos orientais de seu rosto pálido nunca tendo sido vislumbrados pela grande maioria... A exceção era composta por pouquíssimas pessoas, entre as quais o capitão Touta Matsuda. Ele nunca a vira pessoalmente, apenas através de fotografias, anos antes, porém tinha certeza de ser ela. Memorizara aquela face triste, desesperançosa, aqueles olhos sofridos e desconfiados que, contrariando sua aparência, pertenciam a alguém de uma astúcia digna de uma ave de rapina. O que descobrira durante sua investigação pessoal no Japão era agora confirmado: aquela pessoa voltara dos mortos. Ou, bem mais provável: nunca viera a morrer.

O vento proveniente do lado de fora, atravessando as portas recém-abertas, levantou de leve os longos cabelos negros da personagem, agora soltos. Ainda atônitos e imóveis, aqueles presentes na igreja, incluindo Justine, perguntavam-se sobre aquela figura que acabara de se revelar. Uma mente tão fria e calculista quanto Kira? Um fantasma misterioso do passado, buscando algum tipo de vingança? Ou simplesmente uma mulher dotada de senso de justiça tão forte que ultrapassava as leis e as normas éticas existentes?

As respostas viriam a partir daquele momento.

Ainda um tanto incrédulo, Matsuda, de pé junto a um dos pilares da nave central, usando seu capacete e apontando sua arma para a suspeita, acabou balbuciando o nome daquela pessoa que, até dias antes, jamais imaginara encontrar, muito menos como verdadeira identidade de “R”:

–         N-Naomi Misora!

 

Já Clare, que, por trás de seu semblante inexpressivo e seu corpo rígido abraçando o Death Note lutava incessantemente contra o nervosismo que ameaçava dominá-la, via, por meio do Olho de Shinigami, um outro nome acima da cabeça da japonesa...

 

Naomi Adams

 

Será que a tal “R”, grande líder das investigações e que conseguira armar uma suposta derradeira armadilha para Justine, ao final cometera mesmo descuido tão grande? Ela tinha noção de que revelava seu verdadeiro nome a Kira, sendo que esta ainda se encontrava com o caderno da morte em seu poder? Seria aquela nipônica na verdade tão burra, após tantas demonstrações de sagacidade?

A órfã sorriu e, deliciando-se com cada uma das palavras que pronunciaria, disse:

–         Você realmente me parece ser alguém sem qualquer tipo de medo... Ainda mais por ter acabado de cometer suicídio!

–         Não é tão fácil me matar, Justine Clare – Naomi, ainda apontando a pistola para a francesa, respondeu de modo firme. – No passado já houve alguém que tentou me levar ao suicídio, e aqui estou eu. Tenho plena consciência de meus atos e pondero cuidadosamente minhas ações antes de executá-las, ao contrário de você, que nos últimos dias vem cometendo um erro atrás do outro...

–         O que você sabe sobre mim? – bradou a estudante numa semi-explosão de fúria, beirando o total descontrole emocional.

–         Sei o necessário para que pudesse armar esta emboscada, após vê-la passo a passo perder sua confiança e induzi-la a inúmeros descuidos. O ser humano, sob pressão, realmente é mais passível de erros e de revelar a verdadeira face de seu caráter, como você fez com aqueles fanáticos por Kira lá nos esgotos...

–         Eu vou te matar! – gritou Justine, cada vez mais histérica. – Eu vou te matar, sua maldita! Sua blasfema, inimiga da verdadeira justiça!

–         Ótimo, eu quero que você tente!

Dizendo isso, “R” se afastou dois ou três passos da suspeita, dando-lhe espaço. Em seguida ergueu o braço livre para o alto, mantendo o outro com a arma apontada, e exclamou:

–         Ninguém interfere! Deixem que ela nos mostre seu poder!

Justine hesitou durante vários segundos, trêmula, sentindo calafrios. Seu precário estado de nervos era agora nítido a todos, somando-se a seu aspecto exterior sujo e exausto. Encarou Naomi por um momento, os olhos da japonesa permanecendo irredutíveis, opressores, sem piscarem. A universitária não tinha muita opção: afastando o caderno de seu peito, abriu-o com uma mão e, com a outra, retirou a caneta-tinteiro de um dos bolsos. Apoiando o Death Note nas costas de um dos braços, folheou-o até uma página em branco e aproximou a ponta do instrumento do papel virgem... Até que o estrondo de um disparo ecoou por toda Notre-Dame.

 

Aaaaaaaahhhhhh!

 

O grito de Clare saiu carregado de intensas dor e surpresa. Junto a uma fileira de bancos da nave central, não muito longe da suspeita, um atirador de elite da Gendarmerie Nationale era visto de pé e adiantado em relação à posição dos colegas, as mãos tremendo enquanto continuava apontando seu rifle recém-utilizado para Justine. Esta, por sua vez, possuía agora uma grande mancha vermelha logo abaixo do ombro esquerdo, sangue jorrando em profusão enquanto tentava estancá-lo com os dedos da outra mão. O Death Note caíra no chão, assim como a caneta, que rolou pelo piso até colidir com os pés calçados de botas de “R”.

Naomi abaixou-se lentamente, apanhou a caneta com o braço livre e então voltou a cabeça para o oficial francês que disparara contra Clare. Ele mantinha a arma erguida, seu nervosismo aumentando, a ameaça de um novo ataque contra a suspeita, dessa vez letal, crescendo mais e mais. Sem alterar a expressão vazia em seu rosto, “R” moveu devagar a mão que empunhava a pistola 9mm, alterando seu alvo... O cano era apontado agora para o dito atirador que tentara impedir Justine de usar seu perigoso artefato.

–         Eu disse sem interferências! – sentenciou a japonesa com incrível frieza.

E, para espanto geral daqueles que se encontravam no templo, Naomi disparou quatro vezes contra o policial, executando-o.

A agitação decorrente foi inevitável. Gritos e murmúrios de desaprovação tomaram o recinto, e as miras laser de várias das armas dos oficiais deixaram Clare e passaram a pairar sobre a pele pálida de “R”. Nenhum deles, todavia, ousou atirar. Não tinham coragem, mesmo diante da imagem de um colega morto cumprindo seu dever. Pior ainda: protegendo a própria pessoa que o eliminara. Era revoltante, porém aquela mulher parecia tão soturna, coberta por algo como uma aura sobrenatural e assassina talvez pior até que a de Kira, que não conseguiram reagir. Teriam de continuar acompanhando sem ação o preocupante curso dos eventos.

–         Mas o que ela pensa estar fazendo? – indagou Rivera em voz baixa, inconformada.

–         Agindo conforme seu próprio código de conduta – respondeu Souza, ao lado da espanhola. – Foi assim que ela nos orientou até Kira...

Matsuda, imóvel, comprovava suas impressões anteriores... Naomi Misora não existia mais. Cedera seu lugar a uma criatura insensível totalmente dedicada à revanche.

Justine, por sua vez, chorava cabisbaixa, em estado de choque, mão direita ainda tentando conter o sangue liberado pelo ferimento a bala. Tremia como nunca, suas pernas ameaçando ceder sob tamanha carga de nervosismo. Nunca se vira tão próxima da morte, face a face com a mesma, apesar de ela até então ter lhe servido de instrumento para limpar o mundo. Ergueu lentamente a cabeça, olhos injetados de ódio quase selvagem. “R” continuava encarando-a, arma novamente apontada em sua direção.

A líder do caso tornou a se aproximar, estendendo a Clare a caneta-tinteiro enquanto inquiria:

–         Você acha que consegue escrever, mesmo ferida?

–         Sim, eu consigo... – a réplica de Justine veio num tom grosso, quase gutural, em meio a soluços.

–         Então, tente me matar!

A francesa arrancou a caneta da mão de Naomi, apanhou o caderno caído no chão e, voltando a apoiá-lo, desta vez com certa dificuldade devido à dor, abriu-o na mesma página em branco de antes. Mordendo os lábios, olhos fixos e pensamentos absortos em sua tarefa, Justine registrou rapidamente o nome de sua inimiga numa das primeiras linhas: Naomi Adams, suicídio.

Terminando, guardou a caneta num bolso, fechou o volume, tornando a abraçá-lo, e voltou a olhar para “R” como um cão raivoso. O sangue do ferimento abaixo de seu ombro manchou parte da capa do Death Note sem que ela notasse.

–         De acordo com as regras, basta agora aguardarmos quarenta segundos para que eu venha a falecer, correto? – quis confirmar Naomi, sempre fria.

–         Correto! – Justine respondeu com irônica firmeza.

–         Bem, aguardemos...

Todos dentro da catedral viram aquelas quatro dezenas de segundos como as mais longas de suas vidas. Um total silêncio predominou na igreja durante tal período, os sons da respiração e dos batimentos cardíacos dos presentes podendo ser facilmente identificáveis. As armas eram mantidas apontadas para seus alvos, fossem Justine ou “R”... As miras laser dançavam indecisas e tensas sobre seus membros, seus rostos que se encaravam... Clare ainda não conseguia compreender qual era o objetivo daquela mulher, o que ela queria mostrar obrigando-a a escrever o nome dela no Death Note, mas estava certa de que possuía alguma carta na manga que a impediria de morrer...

Elas tinham mais em comum do que poderia imaginar...

Passaram-se os quarenta segundos, e Naomi permanecia de pé, viva e atenta, arma em punho e olhos autoritários.

–         Como você fez isso? – Justine foi direto ao ponto, aumentando de novo o tom de voz.

Como resposta, a japonesa levou a mão livre às costas, retirando algo até então oculto embaixo de suas vestes. Puxando o artefato, segurou-o de frente para a francesa e todos os demais, para que pudessem justamente observá-lo com clareza: um caderno negro, fino, possuindo uma inscrição na cor branca em sua capa: “Death Note”. Sim, mais um caderno da morte, na posse de “R”. As surpresas pareciam não parar de surgir.

Sim, Kira e “R” eram mesmo extremamente parecidos.

Uma nova onda de agitação ameaçou dominar mais uma vez o templo, no entanto Adams ergueu os braços para conter os ânimos e, assim que o silêncio retornou, Naomi salientou:

–         Como podem ver, eu também possuo um caderno sob meu poder!

Logo depois, abriu-o em determinada página, dobrando-o e exibindo-a a todos. Possuía nela algo escrito em inglês, letras relativamente grandes. Somente Justine pôde ler com clareza o que se tratava, estremecendo ao terminar a última palavra, mas “R” fez questão de transmitir o conteúdo do registro em voz alta para todos:

–         Naomi Adams. Morre de parada cardíaca numa tranqüila tarde ao lado do amado, vinte dias após o término do Caso Kira.

Depois de uma pausa, explicou, diante de uma Clare sem ar e de inúmeras mentes confusas:

–         Conforme diz outra regra de uso do caderno, caso o nome de uma pessoa seja escrito em mais de um deles, terá prioridade o caderno em que o nome for registrado primeiro. Eu programei minha própria morte ontem à noite, enquanto você fugia pelas catacumbas, Justine. Como escrevi primeiro, então seu caderno não possuirá efeito algum contra mim. No tocante aos dias, é sabido que uma morte só pode ser programada dentro de um período de no máximo vinte e três dias. Já que escrevi ontem, optei por usar vinte dias para deixar uma pequena margem de tolerância se você viesse a escapar deste cerco na catedral. No entanto, seria praticamente impossível que você continuasse fugindo de nós por mais de dois dias além deste.

Clare tornou a mergulhar em profunda histeria. Chorando, comprimia o Death Note contra o peito com tanta força que parecia desejar se fundir a ele. Baixou a cabeça, incapaz de continuar encarando aquela que lhe fora superior. “R”, por sua vez, seguiu falando:

–         Dentre as várias questões ainda não-esclarecidas, devem estar se indagando a respeito de como obtive um Death Note. A resposta está ao alcance de todos vocês, exceto Clare. Foi inserido, dentro dos ternos e uniformes de todos os membros da investigação e forças de apoio aqui presentes, um pequeno pedaço de papel dobrado. Vistoriem seus bolsos, compartimentos e mochilas, e logo o encontrarão dentro deles.

Após leve hesitação inicial, todos dentro da catedral cumpriram a instrução. De fato, inserido em algum ponto de suas vestes ou equipamento, havia uma pequena tira de papel ali plantada sem que jamais houvessem suspeitado. A astúcia de “R” era mesmo inquestionável. Com os papéis em mãos – os leigos no assunto se perguntando qual propósito teriam, enquanto os mais instruídos, como os investigadores da equipe internacional, já sabiam como seriam úteis – voltaram a olhar para a posição onde se encontrava Naomi, tendo então outra intensa surpresa.

De pé, ao lado da nipônica, havia uma criatura difícil de descrever. O corpo alto, arqueado e disforme trajava farrapos que um dia pareciam ter composto um terno, enquanto junto ao peito, como que incrustado em sua própria carne escura, existia algo como um distintivo dourado, remetendo ao utilizado por autoridades da lei. Os membros eram raquíticos, os pés inseridos em sapatos rasgados. Os cabelos eram negros, curtos, despenteados; a face resumia-se a um semblante amarelado com olhos pequenos, nariz inexistente e uma boca contendo dentes afiados. Completando o bizarro conjunto, um par de asas vermelhas emergia das costas do ser e se erguia para cima, quase dobrando sua altura.

Estupefação geral. Alguns policiais mais sensíveis desmaiaram ao contemplarem a figura. Até os mais corajosos recuaram alguns passos, incluindo Matsuda, o mais habituado ali à aparição de Shinigamis. Justine, em seu desespero e sem ver o ser disforme, não demonstrou qualquer reação, permanecendo como estava, braços apertando o Death Note contra si ainda mais, ignorando a dor do ferimento a bala. “R” por sua vez anunciou, como que proclamando sua vitória:

–         Aos que não o conhecem, lhes apresento meu noivo... Raye Penber!

Uma nova onda de esmagador silêncio tomou o interior da catedral.

 

Todos que testemunhavam a cadeia de acontecimentos tiveram de passar vários instantes assimilando as informações que surgiam em escalada. As revelações feitas ali beiravam e se confundiam com o surreal. A ausência de palavras e sons foi quebrada por uma indagação feita por um intrigado membro da força policial francesa:

–         Como seu noivo pode ser um monstro desses? Um deus da morte?

–         Interessante pergunta! – “R” sorriu de leve. – As regras do Death Note são claras: quem utilizar o caderno não poderá ir nem para o Céu e nem para o Inferno. Qualquer pessoa que escreva o nome de outra em suas páginas, seja por intenção ou mero acidente, estará fadada à punição eterna depois de sua morte, convertida no mesmo tipo de criatura ao qual esse artefato pertence. Ao longo da História, diversos humanos tiveram esse destino.

Efetuando nova breve pausa, Naomi indagou a seguir:

–         Alguém aqui poderia me dizer quais pessoas, durante a caçada ao antigo Kira, utilizaram o Death Note?

Em meio aos presentes, Hoshi adiantou-se e replicou em voz alta:

–         O estudante japonês Raito Yagami, a modelo Misa-Misa, Kyosuke Higuchi, Kiyomi Takada, Teru Mikami!

–         Correto, mas a lista de nomes está incompleta! – observou “R”. – Você cometeu um erro comum entre aqueles que investigam os usuários do caderno, esquecendo-se dos usuais e dos colaterais.

–         Usuais e colaterais? – repetiu Dennegan, sem compreender.

–         Indivíduos que utilizaram o Death Note por um período reduzido de tempo, sem conhecerem seus efeitos ou apenas com o intuito de testá-lo. Mello e seus capangas encaixam-se nesse grupo, e são muito pouco lembrados. Além, é claro, de meu noivo Raye Penber.

–         Pode nos explicar melhor? – pediu Boruanda.

–         Certamente. Durante o primeiro Caso Kira, o “L” original enviou um grupo de agentes do FBI em segredo ao Japão para que investigasse as famílias de membros da polícia japonesa em busca de Kira, inclusive a família Yagami. No tocante a esta, o responsável foi justamente meu noivo, Raye Penber. Ludibriado por Raito, Raye acabou levado a uma armadilha no metrô de Tóquio em que foi induzido a delatar os nomes de todos os seus companheiros de investigação, escrevendo-os numa folha de papel. O que não sabia era que na verdade ele mesmo os executara, pois a folha pertencia ao Death Note, fornecida estrategicamente por Raito. Logo após concluir a tarefa, meu noivo caiu morto encarando o rosto sórdido de seu assassino, sem poder fazer nada para detê-lo... em sua forma humana.

–         Então Raye Penber tornou-se um Shinigami por ter escrito numa página do Death Note os nomes de seus colegas, sem saber realmente do que se tratava? – desejou confirmar Yahudain.

–         Exato. E aposto que se Yagami soubesse nessa época que os usuários humanos do caderno se tornam deuses da morte, com certeza não teria permitido que Raye escrevesse diretamente numa página do mesmo... Ele voltou, e está do nosso lado!

Os olhos que examinavam a figura do Shinigami que ali estava ganhavam agora um brilho que remetia a dó e admiração. Era triste pensar que um investigador em pleno exercício do dever fora enganado e morto por Kira, acabando condenado a se tornar um deus da morte sem que pudesse ter feito nada para impedir. Mas como Naomi dissera, ele ao menos estava do lado deles. E, apesar das ações questionáveis e destrutivas por parte da mulher, eles confiavam nela.

–         Naomi, se me permite perguntar... – falou Matsuda, sobressaindo-se entre os demais. – Até onde sei, você também foi alvo de Kira, e todos pensavam que estivesse morta, apesar de seu corpo nunca ter sido encontrado. Como sobreviveu?

–         Esse é um esclarecimento que eu havia reservado para o final, por se referir mais a mim mesma do que ao caso em si, porém como tocou no assunto, responderei... – “R” não perdia sua postura de triunfo. – Pouco tempo após Raye ter sido assassinado, eu, uma ex-agente do FBI desesperada por respostas relativas à morte do homem com quem estava prestes a me casar, raciocinei em cima dos acontecimentos e concluí que Kira podia matar por outros meios além de parada cardíaca. Ansiosa, resolvi comunicar minha hipótese à polícia japonesa, que cuidava das investigações. Foi aí que encontrei Raito Yagami. Ele me deteve antes que eu pudesse contatar a equipe envolvida no caso e, tirando vantagem do fato de ser filho de um dos investigadores, arrancou o máximo de informações que conseguiu de mim. Até que, tendo conhecimento do nome que julgou ser o meu verdadeiro, “Naomi Misora”, escreveu-o num fragmento do Death Note. Logo depois, quando o tempo para minha morte expirou, ele revelou, olhando nos meus olhos, ser Kira. Nesse momento, utilizei minha perspicácia desenvolvida durante anos como detetive e notei, num milésimo de segundo, que havia algo muito errado acontecendo. Para ter se revelado assim, Raito só poderia já ter, ou ao menos acreditado ter, feito algo para provocar minha morte inevitável. Pensando de modo ainda mais rápido, e incerta se acabaria morrendo mesmo ou não, vi que a melhor opção seria disfarçar. Virando-me de costas para o psicopata, pus-me a andar devagar, sem olhar para trás, como que hipnotizada. Ignorei as provocações de Yagami, que possuíam o claro objetivo de me testar. Quando ele se deu conta que seu esquema funcionara, calou-se, certo de que eu caminhava para minha morte. Lutando contra minha própria vontade, contra o ímpeto de retornar e aniquilar aquele verme de imediato, segui andando com a face voltada para frente, por metros, quiçá quilômetros... De meus olhos brotaram lágrimas gélidas, desesperadas, pois temia muito por minha vida e desejava imensamente tirar Kira de circulação. Jurei naquele momento fazer tudo para vingar meu amado Raye e superar aquela humilhação. Minha revanche seria implacável, fosse contra o próprio Raito, seus aliados ou qualquer pessoa disposta a assumir seu legado desumano.

Naomi parou por um segundo e então prosseguiu, alternando sua visão para a histérica Justine:

–         Logo depois, julgando não ser estrategicamente viável mostrar a Yagami que eu sobrevivera, parti dada como morta para o exílio, auxiliando o primeiro “L” secretamente com o caso. Depois da morte deste, resolvi cortar também esse contato, temendo inclusive que eu o houvesse exposto de alguma maneira, e por isso não tornei a contatar a equipe de investigações. Anos depois, soube que um dos herdeiros de “L” conseguira desmascarar Kira e detê-lo. Com isso concluí meu processo de isolamento em relação ao mundo... até algumas semanas atrás.

–         Naomi é minha irmã por parte de pai – disse Ernest, manifestando-se após vários minutos calado. – Ele teve uma amante no Japão durante um caso para a Interpol, algum tempo depois de eu nascer, e desse relacionamento ela surgiu. Meu pai nunca assumiu a criança, mas a mãe fez questão de registrá-la com o sobrenome “Adams”. No Japão, entretanto, Naomi recebeu o sobrenome “Misora” devido à sua mãe ter se casado com um conterrâneo anos depois, e os documentos da menina desde então passaram a conter essa denominação. O nome de nascimento e registro de minha irmã é, no entanto, Naomi Adams.

–         O erro de Raito... – Matsuda murmurou.

–         Mas há algo que ainda não compreendo! – surgindo de trás de um pilar, o inspetor Junot mostrou estar ali também. – Em que circunstâncias Raye Penber retornou a este mundo como Shinigami e lhe forneceu esse caderno? Aliás, quem é o Shinigami que muniu Justine Clare igualmente com um Death Note?

–         É aí que entramos na parte central da solução deste caso! – exclamou “R”.

Logo depois, Naomi aproximou-se de novo de Clare. Esta havia sido temporariamente esquecida por todos devido às explicações da japonesa, mas seu estado pouco mudara: não mais de pé, e sim encolhida com as pernas dobradas, Death Note comprimido junto ao abdômen e cabeça reta observando sem piscar uma direção arbitrária, a francesa personificava sem falhas o ápice do desespero. Com a aproximação de “R”, a suspeita ergueu os olhos arregalados e ouviu-a dizer, enquanto estendia o caderno da morte que possuía em sua direção:

–         Toque-o. Você vai querer ouvir o que vem a seguir, e as revelações não mais sairão de minha boca.

Após três segundos de inação, Justine ergueu um braço rapidamente para tatear a capa do volume e, fazendo-o, contraiu-o de imediato, como alguém ousando colocar a mão dentro da boca de uma fera. Com tal gesto, o Shinigami Raye Penber tornou-se visível e audível à estudante e, tornando a se afastar, Naomi anunciou:

–         Meus caros, saberão agora como Raito Yagami almejou se tornar deus de dois mundos!

 

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Death Note – Como usar:

 

- Uma das formas de matar um Shinigami é fazê-lo salvar intencionalmente a vida de um humano. Ao fazer isso, sua expectativa de vida será transferida ao humano salvo e o Shinigami morrerá.

 

- Se o nome de uma mesma pessoa for escrito em dois ou mais Death Notes, a prioridade será dada àquele em que foi escrito primeiro, independentemente da data estipulada para a morte.

 

- Uma causa de morte descrita no caderno só pode se estender por um período de até vinte e três dias.

 

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Em seguida, cortando o breve e pesado silêncio que ameaçou mais uma vez predominar na catedral, Raye Penber, em sua forma de Shinigami, tomou a palavra. Sua voz, apesar de grossa e cavernosa, conservava ainda, em seu timbre, um quê de humana. Os ouvintes mal respiravam, atenção totalmente focada na explanação do ser alado:

–         Como já é sabido por todos vocês, e muito repetido, humanos que escrevem no Death Note se transformam em Shinigamis depois de morrerem, sendo destinados a habitar a dimensão à qual esses seres pertencem, um limbo desértico e corrupto conhecido como Mundo Shinigami. Desse plano, os deuses da morte conseguem observar tudo que acontece na Terra e podem, quando quiserem, descer até aqui, interferindo ou não nos assuntos humanos. Quando essa interferência ocorre, um humano geralmente obtém acesso ao Death Note e, após sua morte, engrossa as fileiras dos Shinigamis no mundo destes. Foi assim que, ao longo dos séculos, essas criaturas aumentaram em número. Ocorreu que, nos últimos anos, devido ao grande número de pessoas que escreveram no caderno durante o Caso Kira, uma quantidade enorme de novos Shinigamis surgiu de uma só vez, algo sem precedentes na história do Death Note e seus usuários. Entre eles, os já citados Raito Yagami, Misa Amane, seus aliados, alguns inimigos... e eu.

O “eu” de Raye soou um tanto quanto soturno, fazendo vários dos presentes estremecerem, seus ossos gelarem. Ignorando tal impressão, continuou:

–         Ao tomar conhecimento de sua nova condição, Raito procurou utilizá-la para seus próprios propósitos. Durante meses, vagou pelo Mundo Shinigami com seus asseclas, examinando cada aspecto da vida dos deuses da morte, todas as suas ações e o suposto motivo da existência destes. Encontrou tudo no mais profundo estado de decadência, com os Shinigamis no ápice da preguiça e da letargia, passando seus dias a jogar cartas ou debater tópicos inúteis. Refletindo sobre o fato de todos os Shinigamis, com exceção do Rei Shinigami existente desde o início dos tempos, terem um dia sido humanos que por algum motivo utilizaram um Death Note, Yagami chegou à conclusão de que a razão de ser de criaturas como nós é perpetuar a justiça no Mundo Humano, concedendo o caderno a homens e mulheres capazes de assumirem o papel de juiz. Ou seja, para ele, a função dos deuses da morte é prolongar indefinidamente a existência de “Kiras” neste mundo. E, frente ao estado em que o Mundo Shinigami se encontrava, Raito julgou ser necessário arrancar os Shinigamis à força de sua imobilidade e lembrá-los de qual era seu verdadeiro objetivo.

–         E o Rei Shinigami permitiu isso? – questionou Matsuda.

–         Ele não teve muita opção, pois foi destronado por Raito e seus aliados, agora Shinigamis, numa guerra civil que durou perto de três anos humanos. O violento conflito só terminou recentemente, com o Rei Shinigami sendo definitivamente morto por um meio que apenas Yagami e seus asseclas conhecem – o mesmo meio que Raito encontrou para conseguir assassinar Shinigamis em sua própria dimensão – e o novo grupo assumiu o comando. Teve início então uma era de terror no Mundo Shinigami. Extremamente autoritário, Raito se utiliza de sua posição e poder para aniquilar todos os deuses da morte que não concordem com seus distorcidos ideais. Poucos de nós, incluindo eu, conseguimos escapar aos expurgos. Minha presença no Mundo Humano não carece totalmente do caráter de refugiado. Mas meu real intento, aqui, é outro...

–         Veio ajudar sua noiva, não? – exclamou um jovem policial francês.

–         Eu encontrei em Naomi uma aliada e alguém em quem posso confiar completamente, assim como fora durante minha existência humana. Porém, explicar-lhes-ei o motivo de minha descida. Após consolidar seu domínio no Mundo Shinigami e assegurar que sua visão das coisas predominaria durante as próximas gerações de deuses da morte, Raito voltou seus olhos mais uma vez para o Mundo Humano. Era preciso estabelecer um novo Kira aqui, para seguir eliminando criminosos. Aqueles que, de acordo com o ideal de Yagami, não mereciam viver. Ele já havia enviado alguns de seus agentes para cá com o intuito de procurarem alguém e, depois de três anos de busca, Teru Mikami, mais conhecido por sua alcunha de “Masuku”, encontrou a pessoa que julgou perfeita para suceder Raito: uma estudante francesa chamada Justine Clare.

Nesse momento, Clare encolheu-se ainda mais, como se abalada por um misto de medo e vergonha. Tremia, soluçava baixinho. Inabalável, Raye prosseguiu com seu relato:

–         Eu, ainda escondido no Mundo Shinigami e lutando contra o domínio opressor, descobri poucos dias antes que os agentes de Yagami continuavam sondando o Mundo Humano em busca de um novo Kira e que a procura parecia estar próxima do fim. No calor dos acontecimentos, agi de imediato: parti para o Mundo Humano, revelei-me a Naomi e, depois do choque inicial, expus-lhe a situação e debatemos sobre o que poderia ser feito. Com sorte, a essa altura, Masuku, ou Mikami, ainda não havia entregado o caderno a Justine. Portanto tínhamos algum tempo, mesmo sendo pouco. Nossa primeira atitude foi eliminar o fator surpresa com o qual Masuku e seus aliados contavam. Com Clare assassinando seus alvos via causas de morte variadas, as autoridades demorariam muito a suspeitar da existência de um novo Kira, isso se algum dia suspeitassem. Desse modo, colocamos de prontidão as forças policiais da Terra, antes que Masuku agisse: Naomi tomou posse de meu Death Note e, usando-o, aniquilou Tuomo Sanbashi, líder de uma rede internacional de pedofilia. Uma morte ambígua que serviu a seu propósito: colocar as autoridades em alerta e fazer com que já estivessem preparadas quando Justine começasse a agir.

A morte do odioso Sanbashi fora finalmente esclarecida: obra de Naomi e Raye para chamar a atenção dos investigadores. Uma jogada genial, e que realmente devia ter pego Masuku e seu bando desprevenidos. Matsuda sorriu, alegrando-se por agora tudo fazer sentido em sua mente. E, conforme suspeitou, mais esclarecimentos vieram em seguida por parte de Penber:

–         Naomi passou a mobilizar todas as forças que conseguiu. Contatou antigos aliados, conhecidos... Ernest Adams, habilidoso agente do FBI, descobriu que possuía uma meia-irmã japonesa que já tomara parte em sua mesma agência, e passou a auxiliá-la. Passamos a acompanhar o andamento do caso dia e noite, minuto a minuto. Porém, mesmo com nosso movimento inicial para dificultar o trabalho de Masuku e com nossa disposição para deter a nova Kira, esbarramos em outro obstáculo... O “L” atual, chamado Near.

–         Near, ou “L”, não demonstrava confiar em mim e Raye – continuou Naomi. – Nós também relutamos em agir em conjunto a ele por algum tempo, devido a eu saber que não era o “L” original, no qual tanto confiamos no passado, e também devido a Raito Yagami também ter assumido o posto de “L” em certa época. A verdade é que tal codinome, nos últimos anos, caiu em profunda descrença. Nossa comunicação com Near estava complicada e, usando o agente Adams como intermediário, eu e Raye decidimos nos revelar a ele aos poucos. No entanto, conforme o caso se complicou, Near decidiu tomar as rédeas sozinho e optou por não nos inserir nas investigações. Sem as informações obtidas através da equipe de investigadores que Near recrutara e os dados do primeiro Caso Kira, eu e meu noivo ficamos de mãos atadas...

De certa forma, todos ali presentes já aguardavam a atroz revelação de “R”, mas ela, de todo modo, veio a eles como um soco no estômago:

–         Não tivemos opção a não ser eliminar Near.

A estupefação foi geral. Os poucos fachos de laser que ainda pairavam sobre a desolada Justine foram transferidos imediatamente para Naomi. Boruanda e Souza gritavam inconformados; Rivera pôs-se a chorar, abaixando sua arma e sentando-se num banco. Dennegan cuspiu sobre o piso: sentia nojo, simplesmente nojo. Yahudain balançou negativamente a cabeça. Matsuda e Hoshi, todavia, eram os mais abalados. Aquilo era mesmo verdade? Como “R” fora capaz? Era mesmo tão cruel assim? Touta inclusive se sentia zonzo, aquilo era mais do que poderia suportar...

–         Foi o meio que encontramos para assumir diretamente o comando das investigações – continuou Naomi. – Adotei a alcunha de “R”, que remete, entre outras palavras na língua inglesa, a “revelação”, “ressurreição”, “revanche” e “retaliação”, sentimentos e características que me impulsionam, além de ser uma referência a “Raye”, meu noivo mártir na luta contra Kira, e uma homenagem ao “L” original: “Ryuzaki”.

–         Naomi, você perdeu totalmente a razão! – exclamou Matsuda. – Tornou-se uma assassina barata como Kira! Como foi capaz?

–         Nesta guerra, meus caros, vence quem é capaz de realizar mais sacrifícios – a resposta da japonesa foi altamente fria.

E, logo após dizer isso, “R” abriu de novo seu Death Note numa dada página, voltando-a na direção dos demais. Ocupando todo o espaço da folha, o nome e a condição do óbito se encontravam em letras grandes e legíveis:

 

Nate River, morre acidentalmente dentro de quarenta e oito horas.

 

–         Masuku induziu Justine a também eliminar Near, dizendo a ela ser um criminoso, e inclusive desenhou o rosto dele para que o assassinato fosse feito pelo caderno – complementou Raye. – No entanto, Naomi já havia escrito o nome de Near de antemão em seu Death Note e, conforme foi dito, o caderno em que o nome de uma mesma pessoa for registrado primeiro terá prioridade no efeito.

–         Assassinos... – murmurou Ricardo, inconformado.

–         Masuku, ou Teru Mikami, acompanhou sua protegida Justine até o fim, apesar de alguns momentos de descrença em suas ações – afirmou Naomi. – Não desejava falhar em sua missão, o que faria com que desapontasse seu “deus”, Raito Yagami. Já fracassara com ele uma vez, quando humano, e não queria que isso de modo algum se repetisse. Tanto que se sacrificou por Clare, salvando sua vida. Se um Shinigami elimina um humano para prolongar o tempo de vida de outro, isso leva imediatamente à sua própria destruição. E, quem diria, Mikami fez isso por Justine e por Raito...

–         Eu me pergunto qual dos dois pesou mais nessa decisão... – ironizou Raye, lançando um olhar cortante para a francesa abaixada diante de si.

–         Houve mais Shinigamis aliados de Yagami agindo com Masuku? – inquiriu Junot.

–         Sim... – “R” sorriu. – “Uma” Shinigami, mais precisamente. Atende pelo nome de “Nise”, mas sua verdadeira identidade é a de... Kiyomi Takada.

Naquele exato momento, inserida numa fresta entre o teto e uma das paredes da igreja, perto do espaço reservado ao coral, a dita Shinigami, invisível a todos exceto Justine, testemunhava o desenrolar dos fatos sem se manifestar. Ao ouvir seu nome, ou melhor, seu real nome, apenas fechou os olhos, imóvel, asas retraídas, considerando estar tudo perdido.

–         A antiga namorada de Raito Yagami salvou Justine quando ela caiu nas mãos dos seguidores de Kira, que desejavam oferecê-la em sacrifício, mas pouco depois se desiludiu com a garota e abandonou-a... – explicou Naomi. – Aliás, a passagem de Justine pelo esconderijo dos fanáticos foi de vital importância para nós, pois ela encheu o local de digitais... Levamos algum tempo para obter acesso ao arquivo de impressões digitais do governo francês e efetuar as devidas comparações; porém, quando conseguimos, os fatos se mostraram irrefutáveis: Clare esteve no local, eliminou os fanáticos com o Death Note e fugiu.

Do alto de sua posição de conhecedora e desbravadora dos fatos, a figura de “R” tornava-se cada vez mais imponente e incontestável. O medo em relação a si também crescia na mesma proporção, assim como a tensão dentro do templo. Todos temiam um iminente confronto entre os policiais e aqueles que se dispusessem a defender a investigadora – ainda que poucos. Com as armas da vasta maioria apontadas para Naomi, o silêncio voltou a se estabelecer, suor escorrendo por diversos rostos e dedos prontos nos inúmeros gatilhos...

A pressão parecia a ponto de estourar...

 

E explodiu. Mas não na forma de um tiroteio.

Justine de súbito se ergueu do solo, Death Note numa das mãos, e abriu os braços, soltando intenso grito. Extravasava todo o ódio e frustração até então contidos, o fato de ter sido enganada e manipulada durante todo aquele tempo, sem que tivesse acesso à completa verdade. Ninguém nada fez a não ser observar, e Naomi e Raye nem sequer alteraram a expressão em seus semblantes: aguardavam uma reação daquele tipo por parte da suspeita. O peso da fadiga se manifestava nela claramente.

Após o fim do berro, Clare, ofegante e arqueada, passou a bufar como um animal raivoso encurralado. Seus olhos bem abertos e ferinos foram lançados sobre Ernest, sobre Penber... e por fim sobre “R”. Pareciam desejosos de sangue, manifestando o ímpeto de Justine em saltar em cima de seus inimigos e fazê-los em pedaços, se pudesse. Mas não... não podia.

–         Quem vocês pensam que são? – bradou a órfã, esgotando a potência de sua garganta. – Quem pensam que são para desafiar assim a representante da justiça divina entre os homens?

–         Representante da justiça? – Naomi riu. – Você é apenas uma serial killer falha e enlouquecida, uma psicopata de última categoria que por pouco tempo acabou favorecida pelas circunstâncias! Tive de descer ao seu nível de assassina para conseguir prendê-la, porém não me arrependo. Terá o que merece, Justine Clare!

–         Não podem! – o tom de voz da universitária aumentou, altamente histérico. – Não podem fazer isso! Eu trago a liberdade e a paz à humanidade eliminando os agentes do mal! Não têm o direito de me impedir! VOCÊS TODOS IRÃO MORRER!

–         Não iremos, Justine. E o mundo, tão fragilizado por guerras, violência e intolerância, não tem a mínima necessidade da liberdade e da paz embebidas em sangue que você oferece! A justiça de Kira é uma falsa justiça. Um conceito torpe, mesquinho e cruel. Tanto que, para detê-la, a legítima justiça teve de arcar com a perda de inocentes para conseguir ser efetiva... entre os quais seu avô.

Diante de tal revelação, Justine empalideceu, os contornos de sua face e seus membros se retraindo lentamente, como num gesto de resignação. Seus olhos perderam a ira, sua boca se comprimiu. Os dedos de ambas as mãos fraquejaram, dormentes, soltando o Death Note, que veio ao chão... E, voltando a se encolher, face oculta entre os joelhos, Clare passou a chorar. Chorar copiosamente.

Seus soluços ecoaram por toda a catedral, sua dor tão grande que era quase palpável. Naomi e Raye mantiveram a frieza, enquanto o agente Adams, cabisbaixo e sério, caminhou até a suspeita. Ergueu-a do chão pelos ombros e, num veloz movimento, algemou-a. Com os pulsos agora presos, Justine simplesmente tornou a jogar-se sentada no piso e continuou em seu pranto, o semblante já totalmente molhado pelas abundantes lágrimas.

“R” avançou mais uma vez, abaixando-se para apanhar o caderno de Clare. Tendo-o na mão direita, ela ouviu então Souza falar, tendo se aproximado alguns passos e com a arma apontada em sua direção:

–         Você tem consciência de que, após ter confessado tantos crimes, não poderemos deixá-la ir embora assim, não é mesmo?

–         Sim, tenho total consciência disso – Naomi replicou, firme. – Por isso vim preparada!

Nisso, algo inesperado aconteceu entre as fileiras de investigadores e atiradores de elite distribuídos pela catedral: vários deles de súbito voltaram suas armas para os colegas que ameaçavam “R”. Inclusive o sisudo inspetor Junot, mascando um chiclete, apontou seu revólver para Ricardo, que se encontrava perto de si. Os policiais que miravam na direção de Naomi viram-se, assim, impedidos de efetuar qualquer disparo contra ela se quisessem se manter vivos. Ela realmente pensara em tudo.

–         Tenho homens extremamente fiéis a mim, eles jamais me trairiam – sorriu “R”. – Podem atirar contra mim, se desejarem. Mas, nesse caso, preparem-se para a carnificina que tomará o altar desta igreja.

Foi quando um dos oficiais de uniforme tático e capacete próximos a Matsuda, mais precisamente o que apontava sua submetralhadora H&K para o mesmo, retirou a máscara, deixando à mostra seu rosto... O coração de Touta acelerou logo que seus olhos reconheceram-no:

–         A-Aizawa?

Sim, de fato era ele. Cabelo raspado, mas o cavanhaque fora mantido. O mesmo olhar sério, a expressão carrancuda. O sotaque japonês familiar de um dos motoristas das vans, anteriormente, acabava de ser explicado.

–         Minha lealdade é para com Naomi, Matsuda – explicou Aizawa, sem abaixar a arma. – Falhei com ela uma vez, não falharei de novo!

–         C-como assim? – Touta via-se sem palavras.

–         Quando Raito abordou Naomi e tentou assassiná-la, anos atrás, eu passei pelos dois na rua, a caminho da central. Porém, distraído, nem os percebi e muito menos deduzi o que se passava. Ela teve uma sorte imensa de não ter revelado seu verdadeiro nome, ou estaria morta agora. Fui omisso. Não serei de novo!

–         Aizawa, você tem filhos! Como pode aprovar sem questionamentos as ações de “R”?

–         Foi tudo para prender Kira. Não me arrependo. E o fato de eu ter filhos apenas reforça minha visão. Quero que eles vivam num mundo em que assassinos como Kira não existam!

A opinião de Aizawa estava mesmo bem enraizada. Calando-se, Matsuda decidiu respeitar a postura do amigo. Logo depois as atenções se voltaram novamente para “R”, que disse:

–         Nós iremos sair daqui com a suspeita, e meus homens cobrirão minha retaguarda, até o helicóptero. Temos um acordo?

–         O que pretende fazer com Clare? – indagou Rivera.

–         Não a matarei. Ela terá a punição que merece.

Alguns dos presentes assentiram e abaixaram suas armas. Outros as mantiveram apontadas, porém tampouco atirariam. Andando até Justine, Naomi ergueu-a do piso puxando seus ombros para cima, não se importando com o ferimento que a garota possuía, e então passou a empurrá-la na direção das portas laterais abertas, as mesmas pelas quais entrara. Raye Penber, batendo suas asas, seguiu-a, e Adams, após um último olhar para os demais, também se virou de costas, acompanhando a irmã até o lado de fora da catedral.

Segundos depois da saída do grupo, alguns dos policiais dentro da Notre-Dame deixaram seus postos e, com as armas erguidas, passaram a segui-lo cautelosamente, entre eles Matsuda. Contornando o exterior da construção, rumaram até o jardim florido situado aos fundos. Mas, ao chegarem, depararam-se apenas com um helicóptero negro levantando vôo, um breve vislumbre da face chorosa de Justine Clare, num dos assentos, sendo possível.

Atônitos, os oficiais, no solo, observaram a trajetória ascendente da aeronave, que logo desapareceu no céu azul matinal de Paris.

 

- - - - - - - -

 

Hoje eu tive um sonho que ninguém podia ter

E joguei fora tudo que não me servia mais

Pensamentos aos quais não cederei duelam sempre dentro de mim

 

E se eu ainda estou na luta entre a verdade e o ideal

E meus pés estão atados às escolhas que já fiz

Meu impulso para agir ainda não morreu porque

Ainda tenho um coração forte que a mim concede o poder

 

Orgulho, ganância, medo, culpa, pretensão

Impedirei que cresçam dentro de mim

Não estou sozinha e digo que poderei assim

Tornar-me luz nas densas sombras

 

- - - - - - - -

 

Prévia:

 

As revelações passaram, e agora o marasmo parece voltar ao mundo... As folhas das árvores caem...

 

Velados, ocultos, os atores desta peça realizam suas últimas ações.

 

O verdadeiro desfecho bate à porta.

 

Próximo capítulo: Atos


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