Death Note: Ressurreição escrita por Goldfield


Capítulo 22
Capítulo XXII: Luz




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Todas as nossas horas chegaram

Aqui mas agora elas se foram

As estações não temem o ceifador

Nem o vento, o sol ou a chuva… nós podemos ser como eles são

Vamos lá baby… não tema o ceifador

Baby segure minha mão… não tema o ceifador

Nós poderemos voar… não tema o ceifador

Baby eu sou seu homem...

 

La, la, la, la, la
La, la, la, la, la

 

O Dia dos Namorados terminou

Aqui mas agora eles se foram

Romeu e Julieta

Estão juntos na eternidade… Romeu e Julieta

40,000 homens e mulheres todos os dias… Como Romeu e Julieta

40,000 homens e mulheres todos os dias… Redefina felicidade

Outros 40,000 vindo todos os dias… Nós podemos ser como eles são

Vamos lá baby… não tema o ceifador

Baby segure minha mão… não tema o ceifador

Nós poderemos voar… não tema o ceifador

Baby eu sou seu homem...

 

La, la, la, la, la
La, la, la, la, la

 

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Capítulo XXII

 

“Luz”

 

Domingo, madrugada.

O silêncio agora predominava nas Catacumbas de Paris. Os tiros haviam cessado, assim como os gritos. Pelos túneis repletos de cadáveres de ocultistas, alguns ainda agonizantes, os detetives caminhavam desalentados, sem rumo, sem orientação. A suspeita desapareça, provavelmente através de alguma passagem secreta. Conduzida pela traidora do grupo, Eliza Krammer. Ainda que viessem a descobrir a localização da rota de fuga que as duas haviam usado, naquele momento Clare já devia se encontrar bem longe. Ela os despistara de forma perfeita.

Os investigadores se reuniram em torno do corpo de Ackerman, depois de uma inútil busca pelo subsolo. Nos braços de Boruanda, Izabela ainda chorava, e o sul-africano sentia-se profundamente arrependido por ter suspeitado dela. Talvez Krammer houvesse conduzido suas ações de modo que as suspeitas recaíssem justamente sobre a espanhola. De todo modo, ao menos agora eles sabiam quem era o “Judas”. Será que se houvessem tomado conhecimento disso antes, Günter poderia ter sido salvo? Não sabiam dizer. Afinal, todos eles esperavam mesmo que houvesse baixas na caçada a Kira.

Aquela certamente não seria a única...

Matsuda era o mais abalado pelo curso dos acontecimentos, apesar de, sob a máscara do capacete, não demonstrar. A ansiedade crescia a cada ação, a cada passo. Sabia que, apesar daquele revés, o caso se aproximava de seu término. E com ele, o encontro com o misterioso Shinigami. Um fantasma do passado que vinha perturbá-lo. Ainda que não fosse Raito... ele não se sentia totalmente preparado. E quando o momento chegasse, precisaria colocar a razão acima da emoção. Por “R”, por seus colegas, pela própria investigação.

Nisso, sucessivos “bips” foram ouvidos por todos. “R” os contatava através dos celulares. Um por um, os aparelhos foram atendidos por seus donos, e a voz robótica do líder do caso fez-se propagar:

–         A suspeita escapou.

–         Nós já sabemos! – Yahudain exclamou irritado.

–         E pelo que vejo já identificaram a traidora. Ela também está fugindo, na companhia de Clare. Todos os movimentos dela foram bastante precisos e pegaram vocês de surpresa.

–         Você sabia desde o início que era ela, não sabia? – explodiu Rivera, sentindo grande frieza nas palavras de “R”. – Por que não nos avisou? Ackerman estaria vivo!

–         É irrelevante o fato de eu saber disso de antemão ou não. O importante é que descobriram e, caso reencontrem Krammer, devem detê-la sem hesitação. Ela já causou contratempos demais ao nosso trabalho. E para piorar, pelo visto a suspeita fez a “troca” pelo Olho de Shinigami, podendo matar alguém apenas visualizando seu rosto. O perigo representado por ela aumentou.

–         Pode nos contar ao menos como Eliza fez para nos despistar quanto a ela ser a traidora? – inquiriu Souza. – Não me lembro de nenhum indício da parte dela que pudesse gerar qualquer desconfiança!

–         Foi muito simples, na verdade. Lembram-se do atentado no hotel? A intenção de Krammer foi que vocês chegassem à conclusão de que Izabela teria atirado em si própria e feito uso do argumento da pistola 9mm para incriminar Matsuda ou Hoshi. Na realidade, foi a própria Krammer quem disparou contra Rivera pelas costas, enquanto ela subia as escadas. Além de ser uma ótima atiradora, Eliza possui incríveis agilidade e furtividade, graças ao treinamento decorrente de sua passagem pela NSA e pela CIA. Assim, deixou correndo a cena do atentado e usou um elevador de serviço presente no hotel, utilizado somente por empregados, para subir de volta à suíte antes que Ackerman e Boruanda chegassem com Rivera ferida. Nenhum de vocês percebeu a saída ou a entrada dela no quarto por estarem distraídos com as investigações, focados nos notebooks. E ela também não causou nenhum ruído. O período dela fora da central durou pouquíssimos minutos e dificilmente seria notado por alguém tão absorto no caso, ainda mais à beira da exaustão. Depois de toda a cena na suíte, quando Matsuda inclusive agrediu Dennegan, Krammer aguardou que o clima voltasse ao normal para plantar uma pistola 9mm embaixo de um dos sofás do local. Esperava assim incriminar Rivera, pois ela ali se sentara pouco depois de ter recebido o tiro e assim seríamos levados a pensar que havia sido ela, na verdade, quem escondera a arma ali. A arma com a qual teria supostamente disparado contra si mesma.

–         Mas sendo assim, as câmeras de vigilância do hotel não teriam flagrado os movimentos de Krammer? – indagou Mark. – Não é possível que ela tenha conseguido evitar todas!

–         Sim, elas de fato flagraram, mas Eliza também pensou nisso. Eu chequei a lista de funcionários do hotel. Na manhã seguinte ao atentado, um deles pediu demissão. Justamente o chefe da segurança, responsável pela visualização dos conteúdos filmados pelas câmeras de vigilância. Um outro membro do culto a Kira, assim como Krammer. Ele fez questão de ignorar o que as câmeras flagraram aquela noite e, pouco antes de se demitir, destruiu os arquivos sem que ninguém soubesse. Por sorte, o agente Adams instalou um dispositivo no sistema que permitiu fazer um backup das imagens em seu laptop. Foi assim que chegamos a Krammer, confirmando algumas suspeitas prévias.

–         Então você realmente já sabia... – suspirou Hoshi.

–         Isso não importa mais. Krammer e Clare estão em fuga. E eu creio saber para onde se dirigem...

–         Você vai contar a nós? – Boruanda exclamou num misto de raiva e esperança.

–         Sim. E quero traçar um plano. Ouçam com atenção.

Todos se calaram. A ação derradeira contra Kira parecia tomar forma.

 

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O líquido turvo e fétido, que antes chegava até seus calcanhares, já atingia a altura dos joelhos. Justine, guiada por sua aliada misteriosa, já atravessara diversos túneis de pedra, passarelas de metal, portas de ferro... Não conseguia traçar um caminho simples em meio a aquele labirinto que constituía os esgotos de Paris, ainda mais devido ao trajeto ser mostrado apenas em fragmentos pela luz errante da lanterna. Para onde estaria sendo levada? Provavelmente até um lugar seguro. Apesar de tudo, a órfã confiava em seus fiéis seguidores.

Atrás delas, Masuku continuava seguindo-as, batendo as asas de forma lenta poucos centímetros acima da substância suja, como se não quisesse que seu corpo inumano entrasse em contato com ela, apesar do limitado espaço que ali havia para voar. Ainda inexpressivo e calado, seria facilmente ignorado por Clare se o caderno em suas mãos não fizesse com que ela se lembrasse dele a praticamente todo momento. O artefato da morte remetia sempre a seu proprietário original, de qualquer modo.

Em meio àquela marcha fria e incerta, Justine resolveu tentar quebrar o gelo, apesar de já possuir tal informação graças ao Olho de Shinigami:

–         Qual é seu nome?

–         Como agente do FBI, eu sou conhecida como Eliza Krammer – a outra respondeu sem voltar a cabeça para a jovem. – Mas meu verdadeiro nome é Mary Westfield. Fiel seguidora de Kira!

–         E teve algum motivo em especial para aderir ao culto?

–         Meus pais foram assassinados por um maníaco há cerca de quinze anos. Eu busquei justiça pelos meios legais, tornando-me uma agente do governo, porém nunca consegui sentir que fazia algo para as coisas mudarem, para inocentes não serem mais vítimas de meliantes. Até que, há algum tempo, Kira eliminou o assassino de meus pais, que permanecera impune, e além dele vários outros psicopatas que escaparam à punição devido a leis falhas. A partir desse momento, passei a ver Kira como luz num mundo de trevas, o guia para uma sociedade perfeita, sem crimes nem criminosos. E por isso estou aqui, fazendo minha parte para que essa cruzada não seja interrompida.

Justine compreendia Mary muito bem... Bem mais do que ela jamais poderia imaginar... E, se antes a estudante via a mulher como uma versão mais velha de si mesma, agora tal impressão era mais forte do que nunca. Afinal, Clare também ingressara no curso de Direito buscando meios para fazer prevalecer a justiça devido a uma tragédia em sua vida. Mas, a seu ver, a oportunidade real para isso só viera mesmo com o Death Note.

Súbito, a caminhada cessou. Westfield deteve-se diante de uma parede na qual terminava o túnel, e nela existia uma escada de mão ascendente. Sem nada dizer, passou a agarrar as barras, subindo até o que parecia um duto fechado. Justine acompanhou-a, cansada, porém ainda determinada. Masuku também avançou. Mas ele há muito aparentava não fazer mais diferença.

Mary venceu o último degrau e, com um forte empurrão de um dos braços, impeliu a tampa metálica que fechava o duto para cima. O obstáculo tocou o chão do nível superior num baque, o caminho liberado. Lá em cima havia luzes; a lanterna não seria mais necessária. A guia desligou-a e, seguida de perto por sua protegida, ganhou o novo ambiente.

Logo que concluiu a subida, Justine pôde observar também o local: paredes cinzentas de concreto, alguns antigos pôsteres desbotados nelas pendurados. Retratavam gravuras de soldados alemães em uniformes antigos, representações de Adolf Hitler. Numa dada posição estava pendurada uma velha bandeira nazista, a cor vermelha escurecida contendo em seu centro o círculo branco com a suástica estampada. Aqui e ali se via caixas de munição, montes de suprimentos, armas enferrujadas... Num canto existia uma porta de madeira, tosca, levando a um destino desconhecido. E, pelo recinto, tendo se ajoelhado assim que Clare adentrou-o, havia cinco ou seis indivíduos de capa e capuz, semblantes exaustos, alguns ferimentos visíveis. Os ocultistas sobreviventes, entre os quais aquele que muito lembrava um franciscano. À saudação deles logo se uniu Westfield, prostrando-se de forma bastante respeitosa diante daquela que incorporava a salvação do mundo.

–         Nossa Senhora Kira, conseguimos retirar vossa divina pessoa do ambiente hostil! – afirmou o líder, erguendo-se.

–         Eu agradeço pelo esforço de vocês, meus fiéis devotos! – respondeu Justine.

–         Fomos impelidos a uma retirada estratégica devido à temporária superioridade de nossos inimigos, no entanto logo poderemos contra-atacar e venceremos! – bradou um outro fanático.

Clare possuía sérias dúvidas quanto a isso. O que ela testemunhara nas catacumbas fora um verdadeiro massacre dos ocultistas. Para permanecer livre e viva, teria de continuar fugindo de seus algozes. E ficar presa àqueles religiosos, no final das contas, não iria ajudá-la...

Mas isso era assunto para depois. Justine mal conseguia se manter de pé. Precisava dormir para recuperar as energias, ou logo sucumbiria de vez. Sentou-se junto a uma parede, encostou nela o tronco e, ouvindo preces insanas e baixas de seus discípulos, fechou os olhos.

 

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Nos céus de Paris, o helicóptero negro e discreto continuava voando.

Adams continuava junto aos controles, empenhando sua função por horas. O cansaço o atingia, porém não podia nem sequer pensar em pousar. Não agora que estavam tão próximos da conclusão do caso.

Em meio à escuridão do firmamento e às luzes da cidade, a aeronave se situando entre ambos, Ernest a pilotava já quase maquinalmente, sem pensar em cima de seus movimentos, mal sentindo seus membros mais... Distraído, fitou as estrelas e relembrou seu passado, seus acertos e erros, as grandes tribulações pelas quais sua vida já passara... e, sem mais nem menos, foi trazido de volta à realidade ao olhar de relance para um dos assentos atrás de si. Nele acomodada, a mulher mascarada, usando uma caneta, escrevia em algo aberto sobre seu colo, um volume. Capa negra, fino...

–         Chegou o momento de você fazer isso, afinal... – murmurou Ernest, retornando sua atenção para o painel.

–         Você sabe que é preciso! – rebateu ela, fria, erguendo a cabeça por um momento.

–         Sim, mas também é inevitável eu sentir uma pontada em meu coração ao refletir a respeito. Sabe bem disso.

–         Sim, eu sei...

Ela seguiu escrevendo, ele seguiu pilotando. E nada mais disseram.

 

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Uma intensa luz.

Foi o que Justine Clare viu ao abrir os olhos, e a intensidade do clarão fez com que os fechasse novamente, por reflexo. Além de ter sua visão afetada pelo fenômeno, seu tato também foi ativado com a forte ventania que, partindo não se sabe de onde, soprou em sua direção. Num dado instante sentiu que seria levada pela violenta corrente de ar, porém esta parou de súbito, sem qualquer sinal prévio. A estudante estremeceu, mãos formigando. E, um pouco mais segura, tentou abrir os olhos mais uma vez.

A claridade alva persistia, porém mais fraca. Já era viável enxergar. De pé, apesar de não sentir o chão, Justine viu-se num cenário composto por nuvens cuja cor variava entre o branco e o azul. Havia muitas delas, e os pés da jovem pareciam se encontrar sobre uma delas. Imaginando estar a uma grande altura na atmosfera, todavia, preferiu permanecer imóvel. Poderia acabar caindo.

Apertando os olhos, tentou distinguir a origem da luz... e então viu.

As silhuetas, claramente humanas, representavam um homem e uma mulher. Vestes simples, monocromáticas, rostos por algum motivo ofuscados, o que impossibilitava serem vistos com clareza. Quem seriam?

Clare estreitou os olhos ainda mais, percebendo que o casal se encontrava de mãos dadas... e ela ouviu:

–         Justine...

Voz feminina, um chamado longínquo, mas que fez o coração da órfã disparar. Ela ainda era muito pequena quando tudo acontecera, era improvável que se lembrasse com clareza, mas ela guardara em sua mente o timbre daquela fala, o tom... Sim, era simplesmente inconfundível. Foi com lágrimas brotando nos olhos que Justine identificou o chamado de sua mãe. Só podia ser ela.

–         Justine! – ela repetiu, agora mais alto.

Não contendo o choro, mais de felicidade do que tristeza, a moça estendeu um dos braços na direção dos pais, querendo alcançá-los e ao mesmo tempo temendo despencar daquele estranho céu. Esticou o corpo, focou a visão no par de faces enevoadas... Soluçou. E, quando se sentiu confiante para dar um passo à frente... caiu.

Precipitou-se junto com suas lágrimas. Não conseguira alcançá-los, jamais os teria novamente. Devido a um erro seu. Perdeu rapidamente os pais de vista, a queda rumo ao desconhecido parecendo interminável. Seu pranto tornou-se mais angustiante, não havendo indício nem sequer do chão metros abaixo para aliviar o sofrimento que a assolava. Conforme despencava, a inesquecível frase ecoava em sua mente, implacável, inefável, inegável...

 

O humano que usar este caderno não poderá ir nem para o Céu e nem para o Inferno...

 

O humano que usar este caderno não poderá ir nem para o Céu e nem para o Inferno.

 

O humano que usar este caderno não poderá ir nem para o Céu e nem para o Inferno!

 

Justine despertou quase num salto, engasgada com as próprias lágrimas.

 

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As horas da madrugada avançavam.

Pelas ruas de Paris, os dois furgões negros voltavam a acelerar por caminhos distintos rumo a um novo destino. A diferença era que, agora, seus ocupantes haviam sido informados a respeito de qual era. Portando os capacetes e tentando manter a firmeza já abalada por tantos acontecimentos ao longo daquela noite, os policiais se preparavam para a ação final. Dessa vez, Kira não escaparia.

“R” havia traçado o plano de forma bastante meticulosa, dando a entender que de certa maneira já aguardava aquele desfecho há algum tempo. O maldito parecia mesmo pensar em tudo...

Matsuda, sentado quieto ao lado de Hoshi, sabia na verdade se tratar “dela”.

Descobrira isso durante sua investigação particular no Japão dias antes e desde então vinha apenas confirmando a identidade da líder das investigações, a informação sendo comprovada a cada novo passo da personagem. O que o assustava era que, considerando tudo já ocorrido, a pessoa em questão mudara muito... e não necessariamente para melhor...

Havia de se convir que o caso exigia ações drásticas e eles estavam lidando com um serial killer dotado de um poder sobrenatural, porém “R” nitidamente preferia os fins aos meios... E, em meio àquela caçada desenfreada a Kira, muito sangue desnecessário já fora derramado. Mesmo tendo participado do primeiro caso alguns anos antes e feito, naquelas circunstâncias, ações que tirariam um policial da corporação para sempre, as operações do time de investigadores em Paris ultrapassavam todos os limites. O dano colateral era alto, e parecia ter a tendência de só aumentar...

Daí a importância de tudo aquilo terminar o quanto antes. Seria melhor para todos. Matsuda não desejava mais ter de tomar atitudes que colocavam em questão seus princípios e convicções. Ao menos agora o caso realmente parecia se aproximar de seu término...

 

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Death Note – Como usar:

 

– A causa da morte e as circunstâncias da mesma podem ser escritas antes do nome. Sendo assim, todos os nomes escritos após a causa morrerão pela mesma, contanto que sejam escritos em um período de 40 segundos.

 

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Depois do susto, Justine enxugou o rosto e só então se deu conta de que acordara. Erguendo os olhos, deparou-se com as lâmpadas oscilantes do refúgio dos ocultistas e com um deles, o semelhante a um franciscano, fitando-a imóvel e sem piscar. Acima da cabeça semi-oculta pelo capuz, a estudante pôde ler o nome do indivíduo: Marco Silvestri, junto ao seu tempo de vida restante. Bem que Clare notara certo sotaque italiano na fala do homem. Colocando-se de pé, a jovem recompôs-se rapidamente do estado de desespero que o pesadelo lhe causara e ouviu o fanático perguntar, sem ter alterado a expressão observadora de seu rosto, que já incomodava Justine:

–         Está tudo bem, Nossa Senhora Kira? Percebi que algo perturbava vosso sereno sono.

–         Apenas um sonho ruim, meu caro... – ela suspirou em resposta. – Eu também sou humana.

–         Este bunker logo não nos servirá mais, precisamos continuar nos movendo o quanto antes!

–         Têm idéia de para onde pretendem ir?

–         Nós deixaremos Paris pelo subsolo – disse Westfield, que até então recarregava sua arma em silêncio junto a uma parede. – Após conseguirmos despistar de vez os policiais, a conduziremos até nosso templo principal.

–         Templo principal? – Clare ficava intrigada em relação a tais revelações.

–         Sim, a sede de nosso culto, na Itália – esclareceu Silvestri. – Lá vossa divina pessoa estará segura o suficiente para continuar efetuando seus julgamentos sem contratempos. Os melhores de nossos homens a protegerão dia e noite com suas vidas. O trono da justiça será eternamente de Nossa Senhora Kira, e o mundo finalmente terminará de ser limpo!

–         Não teremos problemas em chegar à Itália através dos Alpes, passando pela Suíça – explicou Mary. – Temos postos avançados pelo caminho e membros do culto infiltrados em diversas organizações e forças policiais. O trajeto será livre de imprevistos, e poderemos garantir vossa segurança, assim como a do caderno.

 

Caderno? Como assim?

 

Foi então que Justine concluiu que sim, aqueles religiosos sabiam sim sobre o caderno. Levando em conta que a equipe de investigações realmente tinha conhecimento dele e seu funcionamento devido ao caso anterior, e tendo Westfield se infiltrado nela, ela provavelmente obtivera a informação por intermédio de seus colegas ou superiores, repassando-a ao culto a Kira. Agora Clare não poderia mais manter o mistério a respeito da forma como executava criminosos, caso isso entrasse em discussão. Um trunfo a menos contra aquelas pessoas das quais desejava se ver livre.

 

Droga!

 

–         Nós a protegeremos durante a fuga da cidade, Nossa Senhora Kira! – manifestou-se um outro fanático ali presente.

–         É o mínimo que podemos fazer para manifestar nossa gratidão por vossos divinos julgamentos! – emendou Mary.

A situação se complicava. Com aqueles ocultistas em seu pé, Justine teria de conseguir uma brecha para tentar efetuar uma ação que os despistasse... Ainda que a mesma fosse usar o próprio Death Note contra eles. Possibilidade que ela considerava mais a cada segundo.

Semi-imerso na penumbra, Masuku sorria.

 

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Algo mais voava pelo céu da madrugada além do helicóptero negro de “R”...

Sobre os telhados de Paris, uma criatura invisível aos seres terrenos batia suas asas contra a brisa fria. Seus olhos de brilho avermelhado vistoriavam as ruas, avenidas e becos de modo minucioso, acompanhando qualquer mínima agitação que encontrassem. Num dado momento, a figura interrompeu seu vôo e fixou a visão numa determinada via, através da qual acelerava um furgão preto. Sacudiu então a cabeça e disse, mais para si do que para qualquer outro alguém:

–         O último ato está em andamento... e muito em breve as cortinas se fecharão!

Continuou, então, singrando os ares acima da cidade.

 

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Justine havia tornado a baixar a cabeça, sentada junto à parede do bunker. Os ocultistas caminhavam para lá e para cá, cuidando das defesas do pequeno esconderijo e planejando seus próximos passos. A francesa esfregou com os dedos os olhos ainda irritados devido às lágrimas. Algo mudara em sua mente, porém. Ela possuía um estratagema, composto em poucos minutos de inação. O esquema continha sim seus riscos, que incluíam a jovem ser rechaçada por aqueles fanáticos que poderiam acabar se voltando contra ela, mas precisava tentar. Presa junto a religiosos impetuosos num local inóspito nos esgotos de Paris, suas opções eram certamente limitadas.

–         Vocês querem ver? – Clare indagou de súbito, erguendo a cabeça.

Os demais presentes trocaram olhares confusos enquanto Silvestri replicava:

–         E o que desejaríamos ver, Nossa Senhora Kira?

–         O deus da morte que me concedeu este caderno e que desde então me acompanha. O ser responsável por eu ter me tornado Kira.

Alguns dos fanáticos emitiram um “Oh!” de espanto, pegos de surpresa pela afirmação, enquanto outros demonstraram quase total naturalidade, como Westfield. Esta cruzou os braços e falou, erguendo as sobrancelhas:

–         O Shinigami, correto?

–         Sim – confirmou Justine. – Ele está aqui neste momento, porém somente eu posso percebê-lo. No entanto, se tocarem o caderno da morte, também conseguirão vê-lo e ouvi-lo.

–         O anjo vingador! – exclamou Silvestri de repente, tomado por um frenesi fervoroso. – Um dos seres superiores que regem as eternas leis da vida e da morte! Izrail, Israfil! Identificado com Anúbis, Caronte! Uma criatura de natureza suprema cujo senso de justiça permitiu que ele concedesse seu poder de julgamento a um humano escolhido! E dessa forma este mundo será purificado!

–         Vocês querem vê-lo ou não? – insistiu Clare.

Os religiosos tornaram a se entreolhar, um certo temor bastante visível em algumas de suas expressões faciais. Acima destas, Justine conseguia ler com clareza os nomes de todos. Franceses, italianos, um possível inglês... Tão fácil...

A órfã estendeu o Death Note na direção dos ocultistas com uma das mãos, e o manteve nessa posição por alguns instantes.

A resposta do grupo veio quando Silvestri deu um passo à frente e, esticando um braço um pouco trêmulo de ansiedade, fez com que seus dedos tocassem a capa do artefato. Em seguida recuou devagar, e todos os demais membros do culto repetiram o gesto, incluindo Mary.

Ao término da cena que ganhou todo um clima ritualístico, os humanos dentro do bunker ouviram uma risada seca vinda de suas costas...

E, virando-se para trás, depararam-se com a soturna figura de Masuku, de pé, asas arqueadas, encarando-os com ar de superioridade.

Não houve gritos ou qualquer outra manifestação de terror. Encarando a entidade inumana com extrema naturalidade, e também respeito, os religiosos permaneceram fitando sua aparência disforme durante cerca de mais dez segundos... até que, a partir de Silvestri, todos se colocaram de joelhos diante dela, curvando-se num gesto de profunda reverência, cabeças encostadas ao chão. Em voz baixa, passaram a tagarelar rezas estranhas em alguma língua morta, talvez latim. Totalmente alheios ao que ocorria ao seu redor a partir de então. Justine encontrara sua oportunidade...

Ela permanecera com o caderno em mãos. Sem hesitar, usou uma para abri-lo, apoiando-o em cima de seu braço, e com a outra apanhou sua caneta-tinteiro. Memorizara os nomes de todos os ocultistas. Para facilitar seu trabalho, primeiro descreveu a causa da morte: suicídio. Letras gravadas com força, tamanho era seu ódio. Não, aqueles malditos não padeceriam de simples infarto!

Determinada, Clare passou a registrar os nomes das vítimas logo após a descrição do óbito... Giovanni Bosco, Marco Silvestri, Damien Depaul, William Hastings... Um a um, cada integrante daquela sórdida religião era condenado...

A prece inidentificável continuava, intensificando-se... O incômodo som que causava remetia à loucura. E Masuku, observando o que acontecia, continha-se para não gargalhar. Justine Clare vivia surpreendendo-o...

Mais nomes foram escritos nas fatais páginas do Death Note, as vítimas ainda desconhecendo o atroz destino que encontrariam dentro de poucos segundos... Até que, sem mais nem menos, a serial killer ouviu o ruído de uma arma sendo engatilhada junto à sua cabeça, e com isso interrompeu sua tarefa.

Faltara apenas um nome a ser registrado no caderno: Mary Westfield. E era justamente ela quem agora ameaçava a estudante francesa com uma pistola, o cano quase colado à sua têmpora direita.

–         O que pensa estar fazendo? – inquiriu a estadunidense, compreendendo a situação.

–         Acha mesmo que preciso de vocês? – Justine usou de uma sinceridade amarga. – Não passam de meros insetos incômodos adorando um ser superior! E esse ser superior resolveu agora pisar em todos vocês!

–         Pois saiba que, se você não sabe reconhecer aqueles que a tornaram deus... nós então podemos aniquilar esse deus!

A traidora da equipe de “R” estava prestes a agir, quando um tiro não-proveniente de sua arma ecoou pelo recinto...

As duas mulheres voltaram os olhos para a origem do forte barulho, observando Giovanni Bosco tombar com seu revólver numa das mãos e um buraco liberando sangue em sua testa. Os outros religiosos interromperam sua adoração ao Shinigami e ergueram-se do solo, fitando Justine com olhares de incredulidade e tristeza que duraram pouquíssimos segundos...

Marco Silvestri, o infame franciscano, enfiou o cano da espingarda que portava dentro de sua própria boca e disparou, sua cabeça explodindo numa massa de sangue e matéria cinzenta que respingou em tudo ao redor, incluindo Clare. Damien Depaul efetuou uma rajada de Uzi contra o próprio peito, sua capa ganhando uma intensa listra vermelha causada pelas balas. William Hastings atirou contra a própria nuca. Em meio a curtos intervalos de tempo, quase imperceptíveis, os fanáticos foram caindo mortos, se auto-aniquilando diante das duas loiras.

Até que, dentre eles, restou apenas Mary.

–         Satisfeita com o resultado de sua matança? – Westfield tinha lágrimas nos olhos.

–         Certamente – Justine conservava a frieza, sem sequer olhar para a outra. – Você traiu seus parceiros de investigação, não? Bom, agora sabe como eles devem ter se sentido ao descobrirem...

–         Eu vou matar você! – a agente do FBI gritou quase histérica, mãos tremendo enquanto segurava a arma.

A tensão cresceu, as duas mulheres suando frio. Clare conseguia ocultar bem seu temor, pois realmente não sabia como sair daquela situação. Considerando que o fim era inevitável, pensou em ao menos tentar reagir, principiando a escrever o nome de Westfield no Death Note... Até que a voz de Masuku, manifestando-se inesperadamente, fez-se ouvir:

–         Este foi meu último favor feito a você, Justine Clare...

O som a seguir, bastante familiar, correspondia ao de um caderno sendo fechado... E não era o da estudante...

Antes que Mary pudesse reagir, uma fortíssima fisgada em seu peito fez com que viesse por terra, soltando a arma. Seus olhos deixaram escapar uma lágrima. Cobriu o tórax com as mãos, contorcendo-se, debatendo-se, mordendo os lábios e, em meio a um gemido fraco, fechou os olhos e aquietou-se. Para sempre.

Manifestações claras de um ataque cardíaco.

Erguendo a cabeça em meio a um estremecimento, Justine olhou para Masuku...

Num estranho processo, o Shinigami desvanecia, simplesmente deixava de existir, seu corpo esfarelando-se e transformando-se num monte de poeira que crescia a seus pés. O deus da morte deu uma última olhada para Clare, abriu um sorriso e, sem perder o convicto brilho rubro em seu olhar, murmurou:

–         Eliminação...

Kira assentiu com a cabeça, a expressão de seu rosto demonstrando incrível respeito. Aquilo, para o Shinigami, já valia como gratidão. Perdeu as formas que lhe restavam, as asas dissolveram-se... E tudo que sobrou foi o amontoado de pó, numa só cor, numa só consistência...

O Death Note que até então segurava precipitou-se em cima do solo num baque. Perdera seu dono.

Justine optou por deixá-lo ali. Àquela altura dos acontecimentos, um pensamento anárquico fez com que lhe agradasse a idéia de algum outro indivíduo encontrar aquele caderno e utilizá-lo para interesse próprio: ela não se importava mais. Abraçando o Death Note que Masuku lhe concedera semanas antes, a jovem pôs-se a andar, dirigindo-se até a porta de madeira vista anteriormente. Tocou a maçaneta: encontrava-se destrancada. Antes de deixar o lugar, porém, fitou novamente os cadáveres dos fanáticos, imersos em poças de sangue. Sorriu. Ela jamais precisara mesmo daquele tipo de publicidade...

 

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Justine caminhou por no mínimo uma hora e meia através dos túneis dos esgotos de Paris, a lanterna que trazia compondo seu único instrumento de orientação. Apesar dos caminhos tortuosos e repletos de bifurcações e encruzilhadas, a fugitiva guardava em sua mente pontos de referência ao longo do trajeto para evitar andar em círculos... Um duto com a grade quebrada, uma passagem mais estreita que as demais, uma pichação numa parede... Ainda que de forma precária, Clare conseguiu avançar numa direção relativamente reta por quase todo o tempo, procurando se afastar o máximo possível do antigo bunker nazista onde os ocultistas que a auxiliaram jaziam agora mortos.

Seus passos eram um tanto rápidos e cautelosos, mas seus pensamentos, no entanto, estavam bem mais tranqüilos. Via-se ao menos momentaneamente livre de perseguidores e, pela primeira vez em muitas horas, Justine chegava a pensar que talvez conseguisse sim escapar daquela situação. Deixando a cidade, poderia se esconder em algum lugar mais isolado e continuar agindo como Kira. A tribulação que vivera nos últimos dias fora intensa, no entanto via-se agora novamente capaz de superá-la. Precisariam fazer mais para detê-la... Bem mais.

Tal linha de raciocínio gerou um sorriso em seu rosto, nele permanecendo durante quase toda sua travessia solitária dos esgotos. E pensar que Masuku se sacrificara para protegê-la, ao final... Quem diria!

Continuou caminhando, sempre em frente, até chegar a um túnel sem saída. O caminho terminava numa escada de mão subindo por uma parede, a extremidade superior selada pela tampa de um bueiro. A mesma possuía pequenos orifícios circulares através dos quais penetravam fios de luz solar. Já era dia, e Justine por certo se encontrava pouco abaixo da superfície.

Obstinada, a órfã agarrou os degraus e subiu rapidamente. Chegando ao topo da escada, empurrou a tampa metálica redonda com o máximo de força que possuía – não muita, dado seu cansaço – e ainda assim conseguiu impeli-la para cima sem muita dificuldade. Desprendendo-se da borda do poço, o obstáculo rolou pelo solo ao redor durante alguns segundos, antes de virar e tombar sonoramente. Com o trajeto livre, Clare concluiu sua ascensão, debruçando-se sobre uma das beiradas da abertura e assim impulsionando seu corpo acima.

A estudante abaixou-se junto ao chão e ofegou por alguns instantes antes de erguer-se e observar os arredores. Encontrava-se numa praça, as árvores próximas e o gramado lhe parecendo bastante familiares. À sua direita, o rio Sena com suas majestosas pontes era claramente identificável. No entanto, Justine só teve mesmo certeza de onde estava quando olhou para frente, deparando-se com uma grande e inconfundível igreja de arquitetura gótica, torres retangulares, as ameaçadoras gárgulas em sua fachada lembrando Shinigamis, como se mais daqueles seres a espreitassem.

Ela se deslocara pelo subsolo até a Île de la Cite, e aquela era a Catedral de Notre-Dame.

Olhou de novo ao redor. Não havia pessoa sequer na praça, algo muito estranho para uma manhã ensolarada de domingo, ainda mais considerando aquele ser um dos pontos turísticos mais visitados de Paris. Intrigada com o fato, porém determinada, Justine avançou na direção do templo. O portal central se encontrava aberto, certamente para receber os fiéis da primeira missa do dia. A órfã imaginou que o local talvez lhe servisse de esconderijo por algumas horas, e seria ótimo se ela pudesse se misturar à multidão. Ia mesmo adentrá-lo.

Foi ao se aproximar da entrada que Clare se lembrou de aquele se tratar do conhecido “Portal do Julgamento”. Detendo-se por alguns segundos, coração pulsando forte, Justine observou as esculturas acima das portas representando pessoas mortas, divididas entre as merecedoras da salvação e as condenadas à danação eterna, separadas por São Miguel e por Lúcifer com a balança das almas. Ao centro e acima dos dois via-se Cristo, em posição de juiz. O poder de julgar... O poder de Kira. Seria aquilo um sinal?

Apesar de um tanto intimidada e com um mau pressentimento, Justine prosseguiu, abraçando o Death Note.

O interior da igreja se encontrava igualmente vazio. Caminhando devagar, seus passos ecoando pelo colossal espaço, Clare avançou através do corredor central, entre as fileiras de bancos, olhar perdido em meio ao alto teto composto por uma sucessão de abóbadas e as paredes de majestosas formas e composição. Abriu a boca de leve, sem perceber, efetuando cada passo com a cabeça erguida, pupilas quase hipnotizadas pelos vitrais detalhados e coloridos. Naquela catedral Napoleão Bonaparte fora sagrado imperador e Joana D’Arc tornada santa. Ambos salvadores da França. Justine Clare também se via como tal, mas ao mesmo tempo sua cruzada transcendia as fronteiras de seu país. Como Kira, ela se tornara salvadora do mundo. E, naquele momento de incerteza e soturnas esperanças, passou a ver Notre-Dame como uma construção digna da grandeza de seu poder...

Até que viu algo mais: um pequeno ponto de luz vermelha sobre seu braço direito, como se projetado sobre ele. Logo surgiu outro em seu braço esquerdo, mais um na perna, dois em seu abdômen, um dançando acima de seu peito...

Olhou em volta.

No alto, junto às janelas da igreja, camuflados em meio às sombras e posicionados minuciosamente perto das colunas, beirais e paredes, homens armados apontavam metralhadoras e rifles, dotados de mira laser, para a jovem francesa. Alguns trajavam uniforme tático e outros ternos, mas todos usavam capacete. Eram dezenas, todos atentos ao alvo, dedos prontos nos gatilhos. Policiais, investigadores... Seus perseguidores. Justine fora completamente cercada.

Ela parou de andar, permanecendo de pé na intersecção das naves da catedral, voltando a cabeça para frente, na direção do altar, como que paralisada... braços ainda comprimindo o caderno da morte contra seu peito.

 

Naquele momento, um helicóptero negro e silencioso aproximou-se da construção pelo lado de fora, contornando-a até a parte de trás, onde existia um bonito jardim de flores. Conduzindo a aeronave com cuidado, o piloto baixou a altitude, deixando-a a pouco mais de um metro acima do solo. Com isso, dois de seus ocupantes saltaram: um homem de sobretudo e óculos escuros, armado com uma pistola calibre 45, e uma figura misteriosa cujos contornos do corpo remetiam a uma mulher, a aparência, todavia, semi-oculta por um tecido que parecia cobrir toda sua pele. Firmes e preparados, o vento causado pelas hélices do transporte fazendo esvoaçar suas roupas e as mudas ao redor, os dois personagens puseram-se a andar.

A figura feminina, porém, logo parou por poucos segundos diante de uma bonita roseira. Fitava a planta de forma fixa, o indivíduo de óculos escuros a aguardando, até que resolveu apressá-la tocando de leve um de seus ombros. Voltando-se para ele, a suposta mulher assentiu com a cabeça, e retomaram seu caminho.

Atrás deles, o helicóptero tornou a erguer vôo.

 

Ainda imóvel, sem nem ao menos piscar, Justine ignorava o fato de surgirem mais e mais rastros de mira sobre seu corpo. Caso tentasse qualquer reação hostil, seria alvejada sem piedade. Nem sequer havia em sua mente a mínima possibilidade, porém, de soltar o Death Note. Ele era sua única arma e o único recurso que poderia utilizar naquele momento. Apesar da situação desesperadora, ainda acreditava que poderia escapar viva e sem abrir mão do poder e da posição de Kira.

Foi quando, num forte barulho, as portas da nave sul da igreja, correspondendo a uma de suas laterais, foram abertas num empurrão.

Imersos na luz solar que invadiu o corredor e ofuscou os olhos de Clare, os dois vultos adentrando a catedral possuíam a forma de sombras escuras, apenas suas silhuetas sendo perceptíveis. Conforme se aproximaram, entretanto, seus aspectos e detalhes vieram à tona. À frente vinha uma pessoa de aparência intrigante, trajes negros e corpo de características femininas, com rosto e pele cobertos por um tecido semitransparente que pouco revelava além do tom pálido de sua pele. Logo atrás, um homem forte, de sobretudo marrom, cabelo curto e óculos escuros, a acompanhava com uma arma em mãos. A dupla caminhou até Justine, que voltara sua face para ambos, sem todavia demonstrar intenção de atacá-los. A poucos metros da órfã, a mulher parou e disse, num estranho tom de voz:

–         Bonju, Justine Clare.

Em seguida, num movimento veloz e quase imprevisível, a misteriosa personagem sacou uma pistola 9mm retirada não se sabe de onde, e passou a apontá-la para a cabeça da estudante. O homem de óculos escuros, por sua vez, permaneceu com a arma abaixada.

Um momento de tenso silêncio se seguiu, ninguém na igreja proferindo qualquer palavra ou emitindo qualquer som. Apesar de não conseguir visualizar os olhos da pessoa mascarada com clareza, Justine os encarava com uma expressão facial remetendo a fúria. Já a recém-chegada moveu os músculos do rosto de forma a parecer que estava sorrindo, e emendou:

–         Eu sou “R”.

E, num outro gesto veloz e não-premeditado, a mulher usou sua mão livre para retirar a máscara que lhe cobria as feições...

 

- - - - - - - -

 

Hoje eu tive um sonho que ninguém podia ter

E joguei fora tudo que não me servia mais

Pensamentos aos quais não cederei duelam sempre dentro de mim

 

E se eu ainda estou na luta entre a verdade e o ideal

E meus pés estão atados às escolhas que já fiz

Meu impulso para agir ainda não morreu porque

Ainda tenho um coração forte que a mim concede o poder

 

Orgulho, ganância, medo, culpa, pretensão

Impedirei que cresçam dentro de mim

Não estou sozinha e digo que poderei assim

Tornar-me luz nas densas sombras

 

- - - - - - - -

 

Prévia:

 

...

 

...

 

Eu sou “R”

 

Próximo capítulo: Ressurreição


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