Floresta Negra escrita por Ana Luiza


Capítulo 2
Capítulo 2 - A busca




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Tiago me olhava como se eu tivesse acabado de fazer uma macumba na frente dele, tivesse feito uma tribal no rosto, estivesse usando uma tanga, fazendo malabarismo e falando japonês ao mesmo tempo.

- Você tem certeza que era ele? – Tiago perguntou.

Eu mordi minha pizza.

- Tenho certeza absoluta, mas não importa porque foi só um sonho. – Eu dei de ombros.

Eu tentei agir com naturalidade, mas eu não conseguia. Eu sabia que não tinha sido só um sonho, eu nunca tinha tido um sonho tão... Real como aquele. Eu ainda podia sentir o cheiro da floresta. E pior, toda vez que eu fechava os olhos, me lembrava de John me enforcando.

- Minha avó costumava dizer que os sonhos são mensagens ocultas – Disse Ana.

Ana era a tal amiga que Tiago estava acompanhando no dia da festa. Apesar de Tiago chama-la de amiga e apesar de eles serem amigos desde a quarta série, eles viviam se desentendendo. Ana se mostrou ser alguém um legal e eu estava feliz por ter conseguido amigos tão rápido.

- Mensagens ocultas? – Eu perguntei.

- É.

Tiago bufou.

- Eu não acredito em nenhuma dessas bobagens. Sonhos são apenas sonhos. Coisas que ficam na sua cabeça, coisas do seu cotidiano, sei lá.

Ana soltou um muxoxo.

- Tiago vive jogando esses jogos sobre vampiros, feiticeiros e zumbis... É uma pena que ele não acredite em nada disso. – Ela murmurou.

Eu dei um longo gole do meu refrigerante.

- Vampiros, feiticeiros, zumbis e até mesmo os lobisomens são muito legais, mas eles não existem. Nossa, em que mundo você vive?

Ana deu um tapinha nas costas de Tiago.

- Eu vivo em um mundo de possibilidades. Sabe o que é isso?

Tiago a ignorou.

- A questão é essa, Mel: Aquilo foi apenas um sonho, não se preocupe com isso. Foi um sonho macabro sim, mas isso não quer dizer que seu pai vai te matar. Não se preocupe.

***

Apesar de todas as palavras de conforto de Ana e Tiago, eu não conseguia parar de pensar naquele pesadelo enquanto ia para casa. Muito menos nas coisas que Ana e Tiago tinham falado sobre... Coisas sobrenaturais.

Eu sabia que tínhamos acabado de nos conhecer e que era muito cedo para falar tudo sobre a minha vida, mas eu sentia que eles eram pessoas confiáveis. E eu nunca podia descartar a possibilidade de um dia contar á eles quem eu realmente era.

- São vinte e cinco reais, moça. – O taxista murmurou, interrompendo o meu devaneio.

Eu notei que o táxi já estava parado á algum tempo, enquanto o taxista esperava eu entregar o dinheiro. Eu corei, entreguei o dinheiro e sai do táxi rapidamente.

- Olá senhorita Melanie, quer que eu avise que você chegou? – Zé, o porteiro, perguntou.

- Não precisa, obrigado.

Ele assentiu e abriu o portão para mim. Assim que ele abriu o portão, eu senti um arrepio. Eu não sabia se era a melhor hora para encontrar John. Eu ainda tinha aquele horrível sonho na mente.

- Para falar a verdade, eu vou ficar um tempo na praia.

Zé deu de ombros e abriu o portão de novo para eu sair.

O dia estava nublado e as únicas pessoas que estavam na praia, eram pessoas caminhando ou andando de bicicleta. Eu tirei meu all star e pisei na areia fria. Estendi meu casaco na areia e me deitei em cima dele, pouco me importando em me sujar.

Eu fechei os olhos e senti a brisa do mar. O som das ondas se quebrando me passava um sentimento de paz que eu não sentia á algum tempo.

Tentei me lembrar do sonho, do sonho inteiro, mas tudo o que eu lembrava era de John apertando a minha garganta e da falta de ar. Lembro-me de acordar e ainda sentir as dores, o que foi mais estranho. E a cada vez que eu lembrava mais real o sonho ficava.

Eu pensei que conversar com Tiago e Ana me deixaria menos perturbada, mas foi o contrário, agora eu me sentia culpada. Eu os conhecia á pouco tempo, mas parecia que nós nos conhecíamos á anos. Tiago e Ana haviam me contado tudo sobre a escola, sobre a vida deles, sobre a família deles... Eles não pareciam ter nenhuma reserva quanto á isso.

Enquanto eu, tudo o que eu tinha conseguido dizer foi que eu era órfã por muito tempo e só agora tinha sido adotada.

Como eu poderia explicar quem eu realmente sou? O que eles pensariam de mim?

Que eu sou uma louca de pedra, com certeza.

Tudo começou quando eu tinha apenas nove anos. Até então a minha vida era completamente normal. Eu frequentava a escola, tinha alguns amigos, não era rica, mas eu já estava feliz com pouco e para completar, tinha pais incríveis.

Eu nunca conheci ninguém da minha família biológica além deles. Não tinha avôs, tios, primos, nada. Eu sempre achei estranho, mas nunca questionei muito. Eu era uma criança, aquela era a minha realidade. Porém, um dia tudo mudou.

Meus pais ficaram diferentes. Nós saíamos de casa para coisas estritamente necessárias, meus pais viviam cochichando pelos cantos, eles sempre viviam ocupados demais... Até que um dia encontrei minha mãe chorando.

- Mamãe, o que aconteceu? – Lembro-me de perguntar.

Ela simplesmente me abraçou e continuou chorando.

- Filha, lembre-se sempre de uma coisa: Eu e papai te amamos.

- Eu sei mamãe, você vive falando isso. – Eu dei uma risadinha.

- Querida, eu te amo mais que minha própria vida, nunca se esqueça disso. Você é o meu tesouro.

Lembro-me de limpar suas lágrimas e acariciar seu rosto.

- Eu também te amo, mamãe.

Mal sabia eu que aquele era nosso último contato. Meus pais saíram para ir ao supermercado e nunca mais voltaram. Na época eu não entendi muito bem o que havia acontecido, umas pessoas estranhas me buscaram, eu fiquei em várias casas na época até parar no orfanato.

Foi lá que eu notei que alguma coisa tinha acontecido comigo. No começo eu pensei que estava doente e de fato eu fiquei na enfermaria por um tempo, mas eu não estava doente. Comecei a notar que eu podia fazer coisas que ninguém mais podia fazer.

No começo, eu achei que era normal, lembro-me de ter contado para a freia Lúcia, o que foi uma péssima ideia. Tive que fazer vários exames e fui dada como uma criança traumatizada.

Ninguém me adotou desde então. Quem iria adotar uma criança “traumatizada”?

Eu era a esquisita do orfanato, mas ninguém realmente sabia o que estava acontecendo. Eu era uma criança anormal. Eu sou uma adolescente anormal.

Eu... Posso controlar os quatro elementos. Eu posso controlar a água, o fogo, a terra e até mesmo o ar. Eu não sei o limite dessas... Anormalidades. Tudo o que eu sabia sobre isso foram experiências que eu fiz sozinha. Não foi como se eu tivesse tomado algo e... Bum! Virei uma anormal.

Simplesmente... Aconteceu.

Eu não sabia o que tinha causado aquilo, muito menos como parar aquilo. Eu sabia disfarçar, evitar. Desde então ninguém sabia disso. E ninguém nunca saberia.

- Não é uma boa ideia dormir na praia, se quer um conselho.

Eu me levantei rapidamente, me lembrando de que estava deitada na praia. Tyler estava me encarando, com um sorvete de casquinha na mão. Ele sorriu para mim. Não era um sorriso simpático, era um sorriso... Provocativo. Um sorriso irritante que me causava arrepios.

Eu suspirei e me sentei novamente.

- Posso me sentar com você? – Ele perguntou.

- Eu sei que se eu falar que não, você vai sentar do mesmo jeito. – Eu dei de ombros.

Ele se sentou, mantendo uma distância cuidadosa de mim.

- E aí?

Eu franzi o cenho e olhei para ele. Ele continuava com aquele sorriso irritante no rosto, mas não olhava para mim.

- E aí? Você não me odeia demais para puxar assunto comigo?

Tyler olhou para mim.

- Eu não odeio você.

Eu ergui uma sobrancelha.

- Não?

Ele deu de ombros.

- Odiar é se importar, eu não me importo. – Ele lambeu o seu sorvete.

Eu respirei fundo e contei até dez. Eu fiz todo o esforço possível para não dar um soco nele.

- Quer um pouco? – Ele perguntou me mostrando o sorvete.

- Por que você não vai para a p...

- Ei! Olha a boca suja! Onde está o respeito? Eu ainda sou seu irmão mais velho.

Eu me levantei, irritada. Aquele infeliz tinha a capacidade de me irritar de uma maneira que ninguém mais no mundo tinha.

- Por que você veio aqui? Não vê que eu estava em paz até você chegar? – Eu gritei.

Ele se levantou também e ficou na minha frente. Eu pude notar a nossa grande diferença de altura.

- Eu vim aqui porque o porteiro disse que você estava dormindo na praia. Eu tive que olhar isso com os meus próprios olhos... – Ele riu.

- Eu não estava dormindo na praia! – Eu protestei.

-... Eu pensei que você estava relembrando os velhos tempos e...

Aquilo me irritou de tal maneira que eu não pensei duas vezes. Peguei o sorvete da sua mão e o joguei em sua blusa, causando uma enorme chama marrom. Ele rosnou.

- Essa era a minha melhor blusa, merda!

Eu tive que admitir que era uma bela blusa preta em gola V, que dava bastante envase aos seus músculos. Eu sorri.

- Órfãos não são mendigos, seu idiota ignorante.

- Eu sei disso idiota, eu só estava brincando.

- Idiota? Você me chamou de idiota?! Olha para você! Você um completo energúmeno! Você beijou aquela garota sem nem ao menos conhecê-la!

Tyler bufou.

- Eu só beijei, não transei com ela...

- Um beijo é uma troca de carinho, é algo especial...

- Rá! Você leu crepúsculo quantas vezes?

Eu pude notar que meus punhos estavam cerrados. Eu tinha que me controlar se não quisesse dar um soco na cara dele.

- Crepúsculo é uma história genial, seu idiota!

- Vampiros que brilham? Genial! – Ele gargalhou.

- Vampiros que tem sentimentos! Coisa que você nunca vai ter, não importa quanto tempo você viva, quantas pessoas você conheça... – Meu tom de voz foi diminuindo conforme eu terminava a frase.

Eu tinha feito uma acusação muito séria, eu sabia disso. Entretanto, Tyler não parecia magoado.

- Eu tenho sentimentos. – Ele disse, cruzando os braços.

- Ah, tem? Para quantas pessoas você já disse “Eu te amo”?

Ele ficou em silêncio.

- E você? Para quantas pessoas você já disse isso?

- Minha mãe, meu pai e para o Alfredo.

Ele mordeu o lábio e por algum motivo eu estremeci. Tinha que admitir que estava muito frio na praia.

- Um namorado? – Ele perguntou, intrigado.

Eu sorri.

- Não, um ratinho que eu achei no orfanato.

Ele ficou alguns segundos parado, apenas me encarando e pensando no que eu tinha acabado de dizer. Depois de algum tempo, ele começou a sorrir.

- Um rato?! Você tem noção do absurdo que você acabou de dizer?!

Eu corei.

- Ele era fofo.

- Você é tão absurda...

Eu notei que estava perdendo tempo. Não importava quanto tempo eu ficaria ali debatendo com ele, nós nunca chegaríamos á um acordo, nós nunca concordaríamos com coisa alguma. Nós não éramos iguais.

- Eu vou embora, está ficando frio.

Eu comecei a caminhar, mas quando eu notei que ele não estava me seguindo, me virei para encará-lo. Ele estava parado, com os braços cruzados me olhando também.

- Você não vem?

Ele balançou a cabeça negativamente.

- Acho que vou ficar por aqui... Já vai escurecer e algo me diz que a lua vai estar linda essa noite... – Ele deu de ombros.

Eu ergui uma sobrancelha.

- Então você gosta de fazer alguma coisa?

Ele me ignorou.

Eu olhei para os dois lados para atravessar a rua, nenhum carro a vista. A rua estava completamente deserta. Quando estava no meio do caminho, prestes á chegar á calçada, Tyler me chamou.

- Melanie!

Quando me virei para olhá-lo, eu vi um anjo. O mesmo anjo que eu tinha visto no meu sonho. Com aquele mesmo olhar de preocupação... Ele se importava comigo, então. Mas por que ele estaria preocupado?

- Tyler... – Eu sussurrei encantada.

- Melanie, atrave...

E então eu fui arremessada.

 ***

Pipe, pipe, pipe...

Aquele barulho era tudo o que eu conseguia ouvir em um borrão de coisas. Minha cabeça doía, eu não conseguia sentir minhas pernas. Eu podia ouvir algumas vozes, mas eram vozes distantes em um borrão de coisas.

- Mel? Mel querida, você pode me ouvir?

Eu tentei responder, mas estava cansada demais para isso. Eu sentia que tinha ficado inconsciente por tempo demais, mas ainda não fora o suficiente. Eu precisava dormir mais.

- Ela está um pouco sedada por causa dos remédios, Cláudia. Dê tempo á ela. – Eu ouvi uma voz masculina dizer.

Eu respirei fundo e tentei focalizar os meus olhos em uma coisa só. Aos poucos, minha visão e audição ficaram mais claras. Eu estava deitada em uma cama extremamente macia. Não havia luz entrando pela janela. A lâmpada estava acessa. Eu estava em um quarto grande e luxuoso... O meu quarto. Cláudia e John estavam levantados do lado da minha cama, me observando ansiosos.

- O que aconteceu? – Minha voz saiu rouca e esganiçada.

- Você foi atropelada, querida. Mas graças a deus, você não teve nenhum ferimento muito grave.

- Atropelada?

Eu tentei me lembrar, mas minha cabeça doía demais. Eu tentei me sentar, mas John segurou os meus ombros. Tive que fazer um enorme esforço para não arrancar a agulha presa no meu braço, implantando sorro no meu sangue.

- Eu aconselho você á ficar deitada. Suas costelas não estão cem por cento.

Eu franzi o cenho.

- Eu fui ao hospital? – Eu perguntei.

Cláudia olhou para John rapidamente e murmurou.

- Eu vou pegar uma água para você, sua boca deve estar seca.

Ela saiu do quarto sem olhar para mim e eu notei que ela estava evitando me encarar. John se sentou na beirada da cama.

- Você ficou alguns dias no hospital, mas é normal que você não se lembre, você passou a maioria do tempo dormindo. Você teve alguns problemas na costela, mas nada grave. O motorista não estava indo muito rápido...

- Ele... Fugiu?

John assentiu, parecendo realmente abalado.

- Você recebeu alta, mas teve que ficar sedada por causa da dor... Agora está tudo bem.

Eu olhei em volta mais uma vez.

- A minha cabeça... Dói.

- Você consegue enxergar bem? Há alguma coisa doendo além da cabeça?

Eu balancei a cabeça negativamente.

- Ótimo. – Ele se levantou.

Depois de um tempo, John foi embora e Cláudia voltou, com uma sopa e não um copo de água. Enquanto bebia a sopa, me sentia instantaneamente melhor.

- Seus amigos vieram te visitar. – Ela sorriu.

Eu limpei a boca.

- Que bom! Eles são realmente ótimas pessoas...

Eu molhei um pedaço de pão na sopa e comi, me sentindo esfomeada.

- As suas aulas já começaram. Mas não se preocupe, eu já conversei com a diretora para falar sobre a sua situação...

Como eu iria estudar na mesma escola que Tiago e Ana, eu sabia que isso não seria um problema.

- Seus amigos disseram que farão anotações para você sobre as aulas...

Eu sorri e comi outro pedaço de pão.

- Como eu disse boas pessoas.

Cláudia ficou em silêncio, apenas me observando comer, o que foi um tanto constrangedor. Quando acabei de come a minha sopa – eu não estava satisfeita, mas não me senti a vontade para pedir mais – pensei em perguntar sobre alguma coisa. Porém, a única coisa que me veio á mente foi Tyler.

Eu não estava á muito tempo acordada, mas tempo o suficiente para receber a visita de John, Cláudia e até da cozinheira da família, mas não de Tyler. Eu não sabia se ele havia vindo me ver enquanto eu estava dormindo e isso não deveria importar. Mas sem a presença dele ali eu sentia... Que havia alguma coisa faltando.

Vaidade, talvez? Todo mundo deveria simplesmente se importar comigo agora? Tyler não se importava e eu já deveria saber disso. Não importa se os nossos sobrenomes fossem iguais. Para ele eu sempre seria uma estranha.

Mas saber disso não me impediu de perguntar:

- Então... Tyler... Veio aqui alguma vez?

Cláudia fez uma careta.

- Tyler anda um pouco ocupado então ele não teve tempo de vir aqui, mas eu tenho certeza que ele sente muito. Quero dizer, ele viu o acidente e deve estar bem abalado...

Eu respirei fundo. Estava cansada de Cláudia tentar criar um laço entre nós dois que não existia.

- Cláudia, não precisa. Eu entendo que ele não queira vir aqui e que ele não se importe. Tudo bem, sério. Eu já entendi que ele não é a pessoa mais simpática do mundo e que não quer a minha presença aqui...

- Isso não é verdade – Cláudia me interrompeu – Tyler é só um pouco frio. Ele esconde o que sente, mas eu sei que ele está feliz de ter uma irmã;

- Hum... Sei...

- O Tyler é só uma criança. E digamos que ele não está acostumado em dividir as atenções.

Eu revirei os olhos. Era uma boa teoria.

 ***

O peso dos livros estava quase me matando, mas eu estava feliz de poder fazer alguma coisa útil. Estava cansada de ficar naquela casa, sendo servida o tempo inteiro, por isso, quando eu finalmente pude ir para a escola, fui com um enorme sorriso no rosto.

Tinha pegado todas as minhas anotações e estava de volta de novo, fazendo algo que me de estressava completamente... Estudar.

Porém, nem tudo era perfeito. As pessoas acabaram descobrindo que eu era, bem, irmã de Tyler e agora era esse o meu novo nome. “E aí irmã do Tyler?” ou “Irmã do Tyler, você pode me passar as anotações da aula de literatura?”

- Bem, você agora é popular... – Ana murmurou durante o nosso intervalo.

- Popular... As pessoas não estão interessadas em mim e sim em Tyler. – Eu resmunguei.

- Ele é bonito, simpático, inteligente...

- Não, ele não é isso tudo.

- Mel, bonito você não pode negar. Ele tem muitos amigos então provavelmente é simpático e eu passei pela sala dele durante a aula de espanhol e ele estava falando fluentemente. Eu até suspeitei que ele tivesse vindo da Espanha ou coisa assim.

Eu revirei os olhos e mordi minha maçã.

- E aí garota? – Tiago se sentou ao meu lado.

Ela estava todo enrolado com várias folhas na mão e tinha uma linha de suor na testa.

- O que aconteceu? – Eu perguntei.

Ele coçou a testa, envergonhado.

- Minha mochila rasgou.

Ana gargalhou.

- É claro, olha isso que você chama de mochila!

Tiago franziu o cenho, ofendido.

- Ela é muito boa! Era do meu avô e só rasgou agora!

É, um garoto que joga videogames e usa camisetas personalizadas gostava de antiguidades.

- Eu realmente não entendo por que você usa coisas do seu avô ás vezes...

Tiago deu de ombro.

- São coisas legais!

- Você estava usando uma ponchete outro dia... Você acha isso legal?

Tiago a ignorou.

- E você, Mel? Como você está?

Eu dei outra mordida na maça.

- Bem melhor...

- Eu levei um susto quando soube que você tinha sofrido um acidente. Graças á deus você está novinha em folha... Nem um braço quebrado!

- É, foi muita sorte. – Eu murmurei.

Ana olhou para os dois lados para se certificar de que ninguém estava ouvindo.

- Mel, eu tenho uma pergunta. Na verdade, eu tenho essa curiosidade desde o dia que você me contou a sua história...

- Pode falar.

- Quando você disse que foi para o orfanato, eu me lembro de você dizer que não tinha nenhum familiar para cuidar de você. Você não tem... Nenhum parente biológico vivo?

Aquela pergunta me pegou de surpresa. Eu não estava pronta para aquilo. Eu não esperava que ela fosse me perguntar aquilo e eu não tinha nenhuma resposta exata para aquela pergunta. Não fazia a mínima ideia do que tinha feito com que ela perguntasse algo daquela dimensão.

- Ana, eu...

- Mel, eu sei que essa pergunta foi um pouco evasiva... É que eu fui visita-la e eu acabei conhecendo os seus pais adotivos e então eu me lembrei de um livro que eu li...

- Eu, pelo o que eu sei, não tenho nenhum parente. Desde a época que os meus pais eram vivos, éramos só nós três.

- Mas... E o natal e essas datas comemorativas que você passa com a família?

- Não, como disse, éramos só nós três.

Ana respirou fundo.

- Eu estava me perguntando... Você sofreu esse acidente também e eu me lembrei... Não foi muito estranho? Pelo o que você me disse, eu senti que essa sua história está um pouco... Incompleta.

Com certeza ela estava se metendo onde não devia. E com certeza eu diria isso á ela se eu não concordasse com ela. Eu sempre quis saber alguma coisa sobre os meus pais. Para falar a verdade, eu não sei nada sobre eles. Onde eles nasceram, como eles se conheceram... Nada.

Eles nunca me contaram nada sobre a vida deles e eu, na época, nunca fui interessada em saber.

- Eu nunca, pesquisei nada sobre eles. – Eu sussurrei.

- Ana, cala essa boca. Se a Mel não pesquisou nada, foi porque ela não quis, ora. – Disse Tiago.

Eu pensei que Ana iria brigar com ele, mas ela apenas continuou a comer o seu lanche.

Apesar de não ter falado sobre isso pelo resto do dia, eu sabia que ela estava certa. E se eu tivesse algum parente vivo por aí? Eu precisava saber.

Algumas coisas na nossa vida simplesmente não podem ficar inacabadas.

 ***

- Eu não tenho nada para você, Melanie. – Disse a freira Lúcia.

Eu tinha tido a sorte de sair mais cedo da escola. Sem pensar duas vezes, eu corri para o primeiro lugar que eu pensei que poderia encontrar alguma coisa. O orfanato. Porém, Lúcia não me dizia nada! Eu estava á quase uma hora tentando convence-la e ela continuava resistente.

- Por favor!

Lúcia balançou a cabeça negativamente.

Ela sentada em sua cabeça no seu pequeno “escritório”, criava certo ar de autoridade. Ela sempre foi durona e eu sempre consegui vencê-la, porém desta vez, ela estava mais firme do que eu pensei.

- Melanie, isso eu não posso te contar. Tente me entender, faz parte do meu trabalho.

- Parte do seu trabalho? Você acha que Ele ficará feliz quando souber/ver a sua atitude.

Lúcia tirou os seus óculos meia lua e me encarou, mais zangada que nunca.

- Eu já disse que não! Se for só isso, você já pode se retirar. – Ela se levantou.

Eu me levantei também, tão zangada quanto ela.

- Você não tem pena de mim, Lucia? Eu cresci sem saber praticamente nada dos meus pais! Como você acha que eu me sinto?!

Lúcia suspirou, se dando por vencida.

- Mel, tudo o que eu sei sobre os seus pais é que eles sofreram um trágico acidente. Desde então eles vem tentando achar algum parente seu, mas tudo indica que não há ninguém...

- Como não? – Eu perguntei abalada.

Ela acariciou o meu rosto levemente.

- Querida, eu não sei. Eu realmente sinto muito. Eu não tenho nada aqui para ajuda-la...

Eu assenti.

- Tudo bem, Lúcia.

Ela me abraçou. Quando eu tentei me desvencilhar do seu toque, ela me abraçou com mais força.

- O importante é que você agora tem uma incrível família. É isso que importa...

Eu funguei.

- Eu sei, eu sei.

Eu me livrei do toque dela e ela me deixou ir. Eu sabia que ela não me diria nada e tinha que aceitar esse fato. Se eu quisesse descobrir alguma coisa, teria que descobrir sozinha.

- Eu vou embora, não quero mais incomodar... – Eu sussurrei.

Lúcia me deu um beijo na testa e segurou meu braço com força. Eu olhei para ela surpresa.

- Não vai embora, eu tenho algo para você...

Eu quase sorri. Em parte porque eu sabia que eu conseguiria amolecer o coração dela, porém, ela mentiu para mim e eu quase acreditei. Eu me sentei no pequeno sofá do escritório.

- Espere aqui. – Ela pediu.

Quando ela foi embora, eu relaxei no sofá. Quando vivia no orfanato, só vinha aqui quando fazia alguma besteira... Quase sempre. O pequeno escritório era constituído apenas por um sofá de dois lugares verde escuro, uma mesa com um computador do século passado, uma prateleira de livros e algumas cadeiras.

As paredes eram brancas e básicas. Havia quadros religiosos e crucifixos pendurados por todos os lugares. Eu podia sentir um forte cheiro de incenso e vela queimada no local. As freiras sempre diziam que aquele local tinha que estar sempre purificado e que qualquer pessoa com uma energia muito negativa, poderia contaminar o local com más energias. Por isso as velas.

Lembro-me também do grande carinho que as freiras sentiam por aquela enorme prateleira de livros. Por um tempo, eu achava que era uma falsa prateleira e que aquilo era na verdade um cofre.

Quando ouvi o som dos passos, cruzei as pernas e sentei direito no sofá. Lúcia entrou no escritório com uma pequena caixa amarela na mão. Quando ela viu a minha expressão de curiosidade, soltou um sorriso e se sentou ao meu lado.

- Essa caixa é sua.

Ela me entregou a caixa. Ela estava relativamente pesada e eu a segurei com todo o cuidado do mundo. Eu não sabia o que havia ali dentro, mas sabia que era algo valioso.

- Que caixa é essa? O que há aqui dentro?

- Abra e verá.

Eu abri a caixa na hora, sem conter a minha curiosidade. No primeiro momento, tudo o que vi foram algumas folhas envelhecidas. Porém, quando eu realmente vi o que havia ali dentro, eu soltei um gritinho esganiçado.

Eu fiz todo o esforço do mundo para impedir que aquelas malditas lágrimas caíssem, mas não pude evitar. Lúcia percebeu e tentou me abraçar, mas eu a afastei.

- Por que você não me mostrou isso antes? – Eu rangi os dentes.

- Eu... Eu não pude. Não era a hora, você era muito nova...

- Não era a hora?! – Eu perguntei, indignada.

Eu fechei a caixa e me levantei.

- Lúcia, você deveria ter me mostrado isso antes! Não era a sua decisão, isso era meu...

- Eu sei Mel, você tem toda a razão, mas...

- Você não ia me mostrar se eu não tivesse vindo aqui e insistido! Quando você pretendia me mostrar essa caixa?

Lúcia se levantou também. Ela parecia estar exausta.

- Eu estava prestes á te mostrar, mas não podia ir até a sua nova casa.

Eu respirei fundo tentando me controlar.

- Quer saber, eu acho que você tinha razão, é uma nova fase da minha vida e minha nova família é mesmo uma maravilha! É melhor eu ficar sem vir aqui por uns tempos...

- Mel, não! Em nome do Senhor, não tome uma decisão tão precipitada!

Eu não tinha notado que estava chorando tanto, muito menos que estava exagerando tanto.

- Adeus, Lúcia. Eu preciso ficar um tempo sozinha, se você não se importa.

- Mel, por favor...

- Há mais alguma coisa sobre mim que você sabe?

Ela hesitou por alguns minutos.

- Não.

- Ótimo.

Eu me virei e fui embora, sem a intenção de voltar tão cedo.

 ***

Eu me sentei na minha cama e abri a caixa outra vez. Era uma caixa média de porcelana e parecia estar bem cuidada, apesar do papel velho. Eu tirei tudo da caixa cuidadosamente. A primeira coisa que encontrei, foi uma foto. Mas não era uma simples foto, era uma foto da minha mãe, eu e meu pai. Aquele provavelmente era o nosso primeiro natal juntos. Meu pai vestia um casaco vermelho e minha mãe um sobretudo branco. Eu era apenas um bebê no colo do meu pai.

Minha mãe tinha um enorme sorriso no rosto, seus longos cabelos pretos estavam soltos e seus olhos estavam brilhando. Eu sorri ao vê-la tão feliz.

Meu pai fazia mais uma das suas caretas, enquanto me segurava. Eu podia ver em seus olhos que ele também estava muito feliz. Nós tínhamos mais coisas em comum do que eu tinha com a minha mãe. Seus cabelos também eram loiros como os meus e nosso nariz era exatamente o mesmo. Porém eu tinha os olhos da minha mãe...

Eu guardei a foto e peguei o papel. Era uma carta dos meus pais para mim.

- Oh!

Eu abri a carta rapidamente, enquanto tentava chorar silenciosamente.

Querida filha,

Nós sabemos o que você deve estar sentindo agora, e nós sentimos por não estar com você nesse momento. Em toda a minha vida, nem eu muito menos o seu pai sonhávamos em ter um filho. Para falar a verdade, nós esperamos muito para ter você.

Sempre pensando em ter uma casa primeiro, um trabalho primeiro... Mas você não quis esperar e entrou de repente em nossas vidas, como uma verdadeira avalanche.

Nós éramos novos demais, não tínhamos nenhuma experiência com filhos, eu tinha medo, não sabia o que realmente significava ser uma mãe, o que era todo esse amor que as pessoas tanto falam na televisão. Não obstante, quando eu olhei para o seu rostinho pela primeira vez, eu soube. Eu sabia que você era um presente de Deus.

E desde então você me proporcionou os melhores momentos da minha vida. E com certeza os melhores momentos da vida do seu pai.

Qualquer mínimo minuto com você era uma preciosidade, toda vez que você sorria, eu me sentia jovem de novo. E o seu pai que sempre foi um homem tão durão, babava só de olhar para você.

Porém, nós não aproveitamos o bastante. Eu não tive tempo de aproveitar sua infância, de conhecer os seus namorados, de declamar das suas roupas, de aprovar ou não o seu noivado.

Algo tão preciso para mim e para o seu pai, nos foi tirado tão cedo. Um amor tão puro, tão inocente, seria arrancado de nós assim? Aquilo não era justo!

Mas o meu amor e o amor do seu pai por você nunca será arrancado, aconteça o que acontecer, ele sempre estará VIVO dentro de mim.

E eu quero que você se lembre de que você não está sozinha. Eu e o seu pai, sempre estaremos com você, iluminando o seu caminho, lhe guiando nas horas mais difíceis.

Nós sempre estaremos com você, e nós sempre te amaremos.

Não importa o que aconteça...

Com amor,

Dos seus pais.

Palavras nunca poderiam descrever tudo o que eu senti quando li aquela carta. Meus pais haviam escrito uma carta para mim, a carta mais linda que eu já recebi. Eu nunca achei que algum dia teria alguma coisa como aquela carta.

Eu só queria um último minuto para dizer tudo o que eu sentia á eles, dizer que eu os amo e que nenhuma família iria substituí-los. Mas eu não podia mais. Eu nunca mais ouviria a voz deles, sentiria o cheiro, o abraço, a segurança que eu sentia quando eles estavam por perto.

- Eu amo vocês. – Eu abracei o pequeno pedaço de papel – não importa o que aconteça.

Eu fiquei ali, deitada chorando por horas. Sentindo tudo de novo, a dor da perda, os mesmos sentimentos que nunca pareciam passar, nunca iam embora. E com o passar dos anos, cresciam cada vez mais.

Eu chorei tudo o que tinha para chorar, sem me importar se alguém iria ouvir. Eu simplesmente queria botar tudo para fora, para de fingir que não sentia nada, parar de fingir que não pensava nos meus pais todo santo dia. Eu trocaria toda essa vida no Leblon para tê-los de volta. Meus verdadeiros pais.

Quando eu senti que todas as minhas lágrimas haviam secado, eu me sentei novamente e coloquei tudo dentro da caixa novamente. E foi nesse momento que eu notei algo que não havia notado antes. Um colar de diamante em formato de coração. Eu me lembrava de ver a minha mãe com ele, quase sempre.

Eu sorri e coloquei o colar no pescoço, prometendo para mim mesma que nunca mais o tiraria.

Eu guardei a foto e li a carta mais uma vez, desta vez com mais calma, prestando mais atenção nas palavras. E então eu notei algo errado.

Pelas palavras da minha mãe e do meu pai, eles pareciam saber que iriam morrer. Como se eles já soubessem do acidente...

Ninguém vive uma vida esperando o dia da sua morte, muito menos fazendo cartas para a família, já se despedindo. Á não ser em casos de suicídio ou doenças graves. O que não era o caso dos meus pais.

- Alguma coisa nisso tudo está muito errada... – Eu sussurrei.

Eu me levantei rapidamente e corri até a escrivaninha. Peguei meu notebook e abri o Google. Pesquisei o nome dos meus pais e coloquei a data do acidente. Encontrei um site chamado casos misteriosos que parecia falar sobre o acidente dos meus pais. Respirei fundo e abri o site. No site continham todas as informações sobre o acidente. Eu comecei a tremer, sabendo que aquilo tudo era demais para mim.

Tentei não soltar um gritinho ou começar a chorar quando li os nomes completos e a idade dos meus pais no site. Então era mesmo sobre o acidente dos meus pais que eles estavam falando...

Eu respirei fundo e continuei analisando.

Havia uma foto de um carro queimado e no final do texto, eles informavam que nenhum corpo foi encontrado. Estranho...

Busquei por notícias relacionadas e logo encontrei o que eu queria.

“Bombeiros continuam em busca dos corpos...”.

Aquela noticia havia sido postada alguns meses após o acidente. Mesmos nomes e mesmas idades dos meus pais.

Eu imprimi todas as páginas que pude contendo informações sobre o acidente e peguei minha jaqueta.

 ***

- Isso é normal. – Disse Tiago, analisando a página que eu havia imprimido de novo.

- Eu sei, pessoas morrem todos os dias e nem sempre acham o corpo, mas nessa carta... Eles falam como se eles soubessem que alguma coisa fosse acontecer.

Tiago suspirou e tomou outro gole do seu café.

Nós estávamos em um pequeno restaurante perto de casa e eu não pensei duas vezes quando decidi ligar para Tiago e não para Ana. Eu sabia que Ana teria uma visão um tanto... Sinistra das coisas e as coisas já estavam sinistras o suficiente.

- Talvez eles estivessem doentes e o acidente somente... Acelerou das coisas.

Seus ombros estavam encolhidos, como se ele tivesse medo de que o seu comentário pudesse me magoar. Eu apenas balancei a cabeça.

- Eles não estavam doentes. É uma das poucas coisas que eu tenho certeza nessa história.

- Vamos então para a pergunta mais óbvia: teve enterro?

Eu franzi o cenho, tentando me lembrar dos mínimos detalhes.

- Eu me lembro vagamente sobre isso...Lembro-me que ninguém comentou nada comigo sobre isso. Talvez porque eu era muito nova e todo mundo tinha medo de tocar nesse assunto.

- Agente pode pesquisar isso, não se preocupe.

Eu segurei sua mão por cima da mesa e tentei sorrir.

- Muito obrigado, Tiago. Isso significa muito.

Ele corou.

- Ah, bobagem. Tô aqui pra isso.

Eu soltei sua mão rapidamente, quando notei um clima desconfortável no ar. Tiago tomou outro gole do seu café, enquanto me observava.

- Você ainda está aflita...

- É a carta, nada me tira da cabeça que ela sabia que alguma coisa iria acontecer – Eu sussurrei – Eu lembro que ela vivia chorando pelos cantos...

- Agente ainda tem uma possibilidade. – Disse Tiago, ficando tenso de repente.

Eu engoli em seco, com medo o que ele pudesse dizer.

- Qual?

Eu perguntei, só porque a minha curiosidade era grande demais para eu ficar calada.

- Um assassinato.


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Notas finais do capítulo

E então pessoal, o que acharam?
Deixem os seus comentários com a sua opinião. Vocês estão gostando? Devo continuar a fic?
Preciso saber a opinião de vocês, para que eu possa melhorar cada dia mais :)
Obrigado por lerem, vocês não incríveis!
Obs: Se gostou, espalhe pros amigos, pra família, pro cachorro, pro vizinho...Deixem comentários, favoritem! hahaha s2