Uma Luz na Torre escrita por Silver Lady


Capítulo 4
Capítulo 4




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Ela estava estirada sobre os livros, sem fazer qualquer esforço para se levantar e fugir. Apenas chorava. Cuidadosamente, Jack veio em sua direção e inclinou-se sobre ela:

_Você está bem? _ indagou, preocupado _ Eu sinto muito, não queria assustá-la...

_Por favor, não me machuque. _ ela choramingou _ Sei que não deveria estar aqui, mas queria saber como você era.

_De que está falando? _ Jack indagou, pensando que aquela mulher era completamente biruta.

Ainda soluçando, ela se sentou sem olhar para ele, o rosto escondido por uma espessa cortina de cabelo ruivo. Olhando mais de perto, Jack percebia que ela não era humana, como havia pensado inicialmente. Sua pele era azul-claro, como a de um zumbi, com de cicatrizes... não, de costuras grosseiras espalhadas sobre os membros delicados. O mesmo tipo de costura mantinha juntas as peças de tecido irregular de diferentes cores e estampas que compunham seu vestido. Aquela garota era um patchwork ambulante. Provavelmente seu rosto deveria também ser composto de remendos, e Jack estava feliz de não poder vê-lo.

_Que é isso, não tenha medo. Não vou machucar você.

Ela não parecia acreditar.

_Me... desculpe tê-lo acordado. Eu não podia estar aqui, mas não pude evitar... _ repetiu.

_Mas não foi você que me acordou. Eu estava tendo um pesadelo.

Ela ergueu um pouco os ombros, como que considerando a frase.

_Então... não está zangado comigo? De verdade?

_Claro que não. Se eu fosse me zangar com todo mundo que quer me ver, seria melhor desistir de ser o Rei Abób... _ Jack parou. A jovem havia tirado o cabelo do rosto e olhava para ele.

Ela tinha costuras no rosto, sim. Uma cruzava discretamente o lado esquerdo de sua testa; a outra, mais visível, ia de um lado a outro do rosto, atravessando-lhe a boca, porém Jack mal as notou. Estava muito ocupado em contemplar os imensos olhos negros que o fitavam maravilhados, e as delicadas feições abaixo deles, as quais as cicatrizes não conseguiam desfigurar. Ela era linda, muito mais linda do que qualquer mulher que Jack já tinha visto, pelo menos entre mulheres da sua espécie (bruxas, fantasmas, zumbis, etc).

Sally, por sua vez, não conseguia tirar os olhos das imensas órbitas negras dele. A príncipio, órbitas não deveriam ser consideradas bonitas, mas aquelas eram tão expressivas e combinavam perfeitamente com o resto dele. Se ela o achara bonito dormindo, agora... Então retomou a compostura e desviou os olhos para o chão timidamente. Para disfarçar o embaraço, começou a pegar os livros para arrumá-los de volta numa pilha; porém,para sua surpresa, estes foram arrancados de suas mãos:

_Permita-me. _ Jack disse, e rapidamente dispôs os volumes numa pilha sólida e firme, diante de uma catatônica boneca de trapo.

_O-obrigada. _ Sally conseguiu dizer.

_De nada. _ ele se ergue e estendeu-lhe a mão. Sally olhou confusa a imensa mão esquelética, sem saber o que fazer com ela. Pacientemente, o Rei Abóbora agarrou a mão dela e ajudou-a a levantar, para sua inteira surpresa. Normalmente, se ela tropeçasse e derrubasse algo, levaria uma bronca e teria que limpar a bagunça _ e talvez mais alguma coisa, para aprender. Ninguém jamais se incomodaria em ajudá-la a levantar, quanto mais a reparar o que ela havia feito.

Ela se desequilibrou e caiu, porém Jack prontamente a segurou. Por um instante os dois se encontraram , depois se afastaram um do outro.

_D-desculpe. _ Sally corou ligeiramente.

_Ei, não precisa pedir desculpas por tudo. _ Jack disse sorrindo _ Está ferida? _ indagou, vendo que ela se abaixava para examinar as pernas.

_Não, estou bem, obrigada. Só tenho algumas costuras soltas, mas posso arrumá-las mais tarde.

_Mas por que pensou que eu ia lhe fazer mal? _ Jack voltou ao assunto.

_Por que... _Sally não sabia como explicar; parecia uma coisa tão óbvia _ Porque o senhor é o Rei do Halloween, o Mestre do Horror, aquele que matou milhões de pessoas de medo.

_ Bem, não exatamente milhões. Só algumas centenas. _ Jack riu com falsa modéstia _ Mas você parece saber um bocado sobre mim, hã...qual é o seu nome?

_Sally...Vossa Majestade. _ ela inclinou-se respeitosamente.

Jack deu uma risadinha constrangida.

_Por favor, não me chame de Majestade: jamais gostei de cerimônias. Me chame de Jack, como todo mundo faz.

_Está bem... Jack. _ ela concordou, constrangida. Embora sempre o tivesse chamado de Jack em pensamento, fazê-lo pessoalmente soava-lhe inadequado, como se estivesse tomando excessiva liberdade.

Quantas noites sonhara com isso. Conhecer o Rei Abóbora e conversar com ele, contar-lhe sobre sua vida e saber sobre a vida dele. Tanta coisa para perguntar, tantas experiências para dividir um com o outro e agora mal conseguia pronunciar algumas palavras. O mestre tinha razão: ela não sabia como agir com as pessoas. Porém não era inteiramente sua culpa, sabia disso agora.

Jack continuava:

_Sally... belo nome..._ então pestanejou _ É claro! Você é Sally, a nova criaç... _ ia dizer "criação", mas parou a tempo. Aquela garota parecia tão sensível que ele não queria ofendê-la "Quer dizer... o Dr. Finkelstein, ele... você sabe... ele...você. _ fez uns gestos desajeitados, como se estivesse costurando.

_Sim, ele me fez. _ emendou com um sorriso. Este se desfez ao lembrar de sua recente descoberta sobre o amo, mas Jack não percebeu:

_Uau. Você devia estar mesmo louca para me ver, se isso a tirou do quarto. Estou lisonjeado.

_Como é que é? _ foi a vez de Sally piscar, estupefata.

_Não precisa ter vergonha _ Jack continuou alegremente _ O doutor me contou tudo. Ele estava tão triste! Vai ficar feliz quando souber que você está superando seus medos...

_Não!! _ Sally gritou em pânico. Jack fitou-a chocado. A boneca cobriu a boca com as mãos, envergonhada, e pensou em contar-lhe a verdade. Porém, no mesmo instante, percebeu que não poderia. Em parte, por causa de sua timidez natural, mas mais porque se importava com seu criador e mestre, a despeito do que ele lhe fazia. Por mais que Jack parecesse gentil, ela não o conhecia o suficiente para saber como reagiria se soubesse que um de seus homens mentia para ele. Talvez até o matasse... estremeceu ao pensar. E, mesmo se não se importasse mais com ele, Sally não queria ser responsável pela morte de ninguém.

_Desculpe. Não queria gritar. Mas por favor, não diga nada pra ele. Ele não vai gostar, acredite em mim.

Jack franziu a testa.

_Acho que você está exagerando. O doutor anda realmente preocupado com você, e...

_Por favor _ ela implorou, de mãos postas _ Eu...não posso explicar. Não diga pra ele que estive aqui.

Jack estava confuso. O doutor não estava brincando quando dissera que sua criação o temia. Por outro lado, talvez isso fosse culpa dele mesmo. Jack conhecia o velho bem o bastante para saber que ele poderia ser tudo, menos paciente ou carinhoso. Podia perfeitamente imagina-lo gritando e criticando a coitada até que ela, que já era naturalmente tímida, pegasse horror a tudo que a cercava, especialmente do homem que a fizera. Pobre coisinha.

_Está bem, acalme-se. _ falou, no mesmo tom que usaria para seu cachorrinho Zero ou para uma criança pequena _ Não vou contar a ele, eu prometo.

Sally suspirou aliviada. Percebeu, no entanto, a súbita mudança no tom de voz de Jack, e sentiu-se um pouco humilhada. É claro que ele acreditava piamente no que o mestre lhe dissera, que ela era uma pobre coitada com medo do mundo, praticamente uma retardada. E, pior, tudo o que dissera e fizera até agora só reforçara essa impressão. Aquilo foi demais para Sally e de repente ela percebeu que não queria ficar ali nem mais um minuto.

_Preciso ir embora. Ele vai voltar logo.

_É incrível que ele não tenha chegado ainda, com todo o barulho que fizemos. _ observou Jack.

_Impossível. _ ela sorriu ligeiramente _ Este aqui foi o seu primeiro laboratório: as paredes são... como é a palavra?

_À prova de som?

_Isso. Ele me disse uma vez que poderia abrir a barriga de um gato vivo aqui e ninguém iria ouvir. _ os dois fizeram uma careta de horror.

_Então você deu sorte. _ Jack sorriu para ela, e Sally retribuiu o sorriso. Eles riram, como crianças travessas, depois se calaram, constrangidos. Jack ficou sem saber o que dizer e Sally ficou olhando as mãos.

_Está bem. _ ele disse finalmente _ Se você precisa mesmo ir... Não quero que se meta em encrenca por minha causa.

Sally começou a se retirar, aliviada, e ele acrescentou:

_Se o doutor pegar você, não diga pra ele que eu estava dormindo, tá bem?

_Hum... tá bem. _ Sally repetiu, meio confusa. Era esquisito que até o poderoso Rei Abóbora tivesse medo da gritaria de seu amo. Quis saber por quê, mas era demasiado tímida para perguntar algo que parecia pessoal.

Justo naquela hora, a banda de Halloweentown começou a tocar, lá fora, perto do laboratório. Alguns monstros que passavam pararam para cantar, junto com os músicos, a canção que era praticamente seu hino nacional:

"Isto é Halloween... isto é Halloween..."

Tanto o esqueleto quanto a boneca de trapo pararam para ouvir, cada um reagindo de um modo diferente. Jack revirou suas órbitas e reprimiu um suspiro. Não que detestasse a música, mas estava enjoado dela. Era cantada todos os anos, não somente nas festas mas também durante o trabalho, pelas ruas. Nunca ocorria a ninguém cantar alguma coisa diferente, e, mesmo se lhes ocorresse, por que o fariam? Aquela era sua canção favorita e nunca se cansavam dela. Jack começava a suspeitar que havia alguma coisa errada com ele. Sally, ao contrário, bebia a melodia com imensa avidez. Como desejava um dia poder cantar aquela música junto com o povo lá fora! Não era justo que só ela não pudesse se divertir, pensou, enquanto deixava a biblioteca.

A chave estava na fechadura, exatamente como a deixara, ao sair do quarto, para o caso de seu criador aparecer antes da hora. Estava se perguntando se deveria aproveitar para tentar fugir da casa ou se era mais prudente voltar para o quarto quando ouviu a cadeira de rodas vindo pelo corredor. Em pânico pela segunda vez naquela noite, voou para dentro do quarto: foi necessário todo o seu auto-controle para fechar a porta devagar e em silêncio, em vez de batê-la. Com o coração na boca e as costas apoiadas na porta, ouviu a cadeira chegando.

O doutor Finkelstein passou pela porta do quarto de Sally sem um único olhar. De repente, parou e voltou-se. Ficou olhando para a porta por um minuto que pareceu anos para a boneca. Então, como se tomasse alguma decisão, aproximou-se e estendeu a mão para a maçaneta.

_Doutor! _ Jack chamou lá de cima _ Já terminei minha pesquisa. Podemos olhar aqueles planos agora, se o senhor quiser.

O cientista tornou a se virar e subiu a rampa, na direção da biblioteca. Sally soltou a respiração. Fora por pouco.

_Então, Jack, _ ela o ouviu dizer _ achou o que procurava?

_Não exatamente. _ a voz de Jack respondeu, meio constrangida.

_Achei que não. Eu lhe disse que nada funcionaria melhor que Erva Moura Letal. _ havia um toque de vitória na voz do velho enquanto subiam até o laboratório.

Continua


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