Uma Luz na Torre escrita por Silver Lady


Capítulo 5
Capítulo 5




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/280/chapter/5

_Então o Bicho-Papão quer morcegos que cantem e desenhem a sombra dele na Lua... Ele tem imaginação, admito. E você, Jack, imagino que vai querer de novo aquele protetor de fogo para o seu numerozinho de sempre, não é?

Jack fechou a cara à insinuação de que o Bicho-Papão tinha imaginação e ele não; porém acabou dando de ombros e suspirou:

_Sim. A dança do fogo é o número de que todos gostam mais, e se eu não fizer este ano ficarão desapontados.

_Sei. Mais alguma coisa? Talvez aquele monstro mecânico que você queria o ano passado?

Jack considerou a idéia. A tentação de fazer algo diferente era forte, mas desistiu, desanimado:

_Acho que não, obrigado. Sabe como é, o pessoal está acostumado a fazer o Halloween sempre do mesmo jeito; então, pra que tentar melhorar o que já é bom? _ era uma coisa que freqüentemente ouvia de seus súditos.

_Se você diz, Jack. _ o cientista deu de ombros. Isso era com Jack. Embora a possibilidade de fazer um monstro ou qualquer nova experiência fosse sempre excitante, o Halloween lhe era indiferente. Aceitar aquelas encomendas era a coisa que o doutor mais detestava; entretanto, não havia lugar melhor que Halloweentown para um cientista louco como ele, ainda mais um cientista morto-vivo, e ele pagava o preço.

_Muito bem. Vou fazer os morcegos pro Bicho-Papão se ele prometer botar um freio nos monstrinhos dele. Aqueles desgraçados me jogaram pedras a última vez em que me arrisquei a sair de casa. _ levou a mão ao seu crânio metálico _Ooh, a minha pobre cabeça ainda dói quando eu me lembro!

_Eu sei, e já avisei o senhor Papão de que, se isso acontecer de novo, ele e os garotos vão ter de procurar outro lugar pra morar. _Jack disse severamente _Bom, acho que isso é tudo... _ começou a juntar os planos para o Halloween, porém parou.

_Algum problema, Jack?

Jack hesitou. Não conseguira tirar Sally da cabeça desde que ela saíra da biblioteca. Estava curioso para saber mais sobre a estranha boneca de trapo, mas não sabia como fazer isso sem trair o seu segredo.

Pensando bem, o doutor sempre fora um tanto reservado sobre a sua mais recente criação. Mesmo no início do projeto, não deixara ninguém ver, e quando Jack ou o Prefeito lhe perguntavam a respeito, sempre achava um jeito de mudar de assunto. Jack só sabia que era uma garota e que se chamava Sally. Imaginara-a mais ou menos como uma versão feminina de Igor, o disforme assistente do doutor, talvez não tão horrível; porém jamais poderia imaginar que o doutor Finkelstein fosse capaz de fazer uma criatura tão bonita e delicada. Não admirava que se preocupasse tanto com ela, ainda mais se a garota tinha um problema.

Jamais ocorreria a Jack que o velho pudesse estar mentindo. Com certeza ele era desagradável, porém era decente e de confiança. Na mente de Jack, todos os seus súditos o amavam tanto que jamais pensariam em enganá-lo ou magoá-lo de alguma forma – exceto, é claro, o Bicho-Papão e seus capangas. Bom, o doutor também não morria de amores por ele. Jack sabia que o velhinho apenas o tolerava, mas a lealdade dele era inquestionável.

_Hã... não, nenhum problema. Eu só estava pensando em Sally... no que o senhor me falou sobre ela. Embora eu nunca a tenha visto, pela sua descrição ela me parece uma ótima garota.

_Sim. _ o velho concordou acidamente _Sally é uma verdadeira jóia - daquelas que se tranca num cofre e se joga a chave fora. _lançou um olhar duro para a porta do laboratório, como se Sally estivesse escondida lá, escutando.

_Mas de que adianta possuir uma jóia valiosa se o senhor mantém seu brilho longe dos olhos do mundo?

_O que quer dizer?

_Eu estava pensando que, embora a sua preocupação com Sally seja muito louvável, não deve ser bom para a saúde dela ficar trancada em casa o tempo todo.

O doutor não gostava do rumo que aquela conversa estava tomando.

_E o que quer que eu faça? Que a arraste pra fora do quarto? Não gosto disso tanto quanto você, mas se ela não quer ver ninguém, não posso obrigá-la.

_Tem certeza que ela não quer ver ninguém? Nunca? Ela poderia ter mudado de idéia sem o senhor ficar sabendo.

O rosto do velho se endureceu.

_Eu moro com ela e você não. _disse teimosamente _ Sally é como uma filha pra mim: não temos segredos um para o outro. Se ela tivesse mostrado qualquer interesse pelo mundo lá fora, eu teria lhe dado todo o meu apoio.

Jack não pareceu convencido.

_Há coisas que os filhos escondem até dos próprios pais.

_Está me chamando de mentiroso? _ o Doutor quase gritou, seu rosto já ficando vermelho.

_Claro que não! _ o rei fez um gesto apaziguador com a mão _ É que, bem, o senhor mesmo já admitiu que ela tem medo do senhor. Estou apenas supondo que, se ela começou a se sentir curiosa sobre o mundo lá fora ela poderia estar com medo de lhe dizer. Com todo o respeito, doutor, nós sabemos que o senhor não é lá muito sociável.

_Nunca tive tempo para perder com visitas e festinhas. _ disse o velho secamente _ Meu laboratório é mais que suficiente para mim. _tarde demais ele percebeu que estava concordando com Jack, e estapeou-se mentalmente.

_É exatamente o que quero dizer! O senhor vê, ela pode achar que o senhor se zangaria com ela, e por isso continuaria fingindo que não quer sair nem ver ninguém: para agradá-lo. É uma questão de... psicologia. Sabe, tenho muitos livros de psicologia; eles são muito úteis para saber como funciona o medo e como assustar alguém. _ Jack concluiu rápido, aplaudindo-se mentalmente pela sua genialidade.

O velho lhe lançou um olhar cético. Há-há, se pudesse dizer àquele saco de ossos o que pensava de suas teorias! Jack não poderia estar mais enganado. Se aquela hipócrita fingida escondia alguma coisa, com certeza não era para evitar magoá-lo. Só conseguia pensar em si própria, mesmo quando fingia se importar com ele; ele não era cego. A única coisa verdadeira naquele palavreado todo é que Sally realmente o temia: ao menos ele tinha isso.

_E como a psicologia poderia nos ajudar? _ mofou.

_Humm... _ Jack tamborilou os dedos no queixo. Não havia pensado nisso. Ocorreu-lhe uma idéia: _ Bom, ela ainda não fez nenhuma contribuição para o Halloween: acho que seria uma esplêndida maneira de despertar a curiosidade dela, se a encarregássemos de fazer alguma coisa...

_Sally é um fracasso em tudo o que faz _ interrompeu o doutor _ Ela costura mal, não limpa direito a casa e sua comida é tão ruim que eu vivo passando fome.

_Pensei que tivesse dito que não conseguira ensinar nada a ela. _ Jack olhou-o desconfiado.

O doutor se inteiriçou na cadeira. Havia se traído de novo!

_Eu disse e sustento! _ berrou _ Sally é uma incapaz que não presta pra nada! Eu bem tentei, Deus sabe que tentei que ao menos ela pudesse ser útil; mas ela não é sequer capaz de distinguir um pedaço de queijo de um pote de pus. E é essa garota que você quer que ajude você com o Halloween?! Ela vai estragar a festa!

Jack franziu a testa. Talvez não fosse assim tão boa idéia incluir a garota no Halloween; ele mesmo havia duvidado da inteligência dela. Porém, as palavras cruéis do velho o deixaram indignado. Por mais lesa que a coitada fosse, ele não deveria falar assim. Aquilo que Jack suspeitara na biblioteca se confirmou: o doutor não tinha paciência nenhuma com Sally, e com certeza achava ruim tudo o que ela fazia. Talvez nunca sequer tivesse demonstrado carinho por ela. Aquilo podia acabar com a auto-estima de qualquer pessoa, especialmente de alguém sensível, como Sally parecia ser, e Jack decidiu insistir:

_Doutor, tente entender. Não importa que o trabalho dela seja ruim: o que importa é que ela vai se sentir bem fazendo alguma coisa importante. Ela vai ganhar confiança e começar a ver que o nosso mundo não é tão mau; talvez comece até querer ver outras pessoas e conversar com elas...

_Outras pessoas... você, por exemplo? _ o doutor indagou em tom venenoso.

_Sim, por que não? _ Jack disse inocentemente _ Eu poderia ajudar vocês dois a se entenderem melhor.

O doutor virou-lhe as costas:

_Olhe Jack, agradeço a sua preocupação, mas não há nada que possa fazer por nós. Agora, se não se importa, estou muito cansado. Foi uma noite longa e eu já não sou mais jovem. Você conhece o caminho da porta. _ dirigiu-se até a porta do laboratório e olhou para Jack, deixando claro que o assunto estava encerrado.

Jack não sabia o que dizer. Por isso, saiu do laboratório e desceu a rampa em silêncio, com o doutor seguindo-o de perto. O velho parou no fim da rampa e ficou olhando enquanto Jack se dirigia até a porta da rua. Jack abriu-a e botou um pé para fora, mas subitamente parou e se virou:

_Doutor?

_Sim?

_O senhor sabe que, de acordo as nossas mais antigas leis todo cidadão de Halloweentown tem o direito – e o dever – de contribuir de alguma forma para a nossa festa, não sabe?

_Por que está me dizendo isso, Jack?

_Por nada. Achei que deveria lembrá-lo. Até amanhã. _ e saiu.

Lá fora, Jack ficou parado olhando para o edifício de aço e chupando o dedo, um cacoete que ele tinha quando estava pensativo.

_Espero não ter causado problemas...

Sentia-se um pouco mal por aquelas últimas palavras. Praticamente ameaçara o velho. E para quê? Por que sentia que havia algo errado? É claro que havia algo errado! A garota era perturbada, ele mesmo vira isso. Por que mais estaria com tanto medo de que ele alguém pudesse lhe fazer mal sem motivo? Paranóia pura.

No entanto, lembrava-se do olhar ansioso de Sally antes dela sair, quando ouviram a banda tocar. Era um olhar que ele conhecia bem. Se ela tivesse tanto medo das coisas pertencentes ao mundo exterior, deveria ter reagido com terror em relação à musica, ou ao menos com repulsa. Em vez disso, parecia que queria cantar também.

E por que o doutor reagira daquela maneira? Se estava tão preocupado com sua criação, deveria estar ansioso por uma oportunidade de ajudá-la. Em vez disso, parecia ter medo de que Jack quisesse tirar Sally dele. Muito esquisitos, os dois.

_Não entendo essa gente. _ coçou o topo do crânio.

_Jack? _ chamou uma voz na escuridão.

O esqueleto estacou e olhou para o lado, piscando, como se tivesse sido acordado de repente.

_Prefeito? _ disse ele, reconhecendo a figurinha que se aproximava _ O que está fazendo na rua, a esta hora da noite?

_Eu ia lhe perguntar o mesmo. Estava terminando de checar as plantas para amanhã. Acho que me entusiasmei... _ o Prefeito deu um largo bocejo. Era um homenzinho gordo, com uma cabeça cônica que tinha dois rostos um de cada lado: um corado e alegre, o outro pálido e triste (ou zangado, ou qualquer outra emoção negativa), que trocavam de acordo com o que ele sentia no momento. Apesar do cansaço, mostrava o rosto alegre, como quase sempre acontecia quando lidava com papelada burocrática: era o que mais gostava de fazer.

_Eu fui ver o doutor. _ Jack disse. A cabeça do Prefeito girou mostrando o rosto infeliz, e ele se encolheu ligeiramente. Se Jack notou, não deu a mínima mostra:

_ Diga-me, você sabe alguma coisa sobre a Sally, a criação do doutor? Você a viu logo depois que ela ganhou vida, não foi?

_A garota? Ah, sim, claro. Eu nem sabia que ela tinha nome. Era uma coisa esquisita, tropeçando e cambaleando que nem um zumbi bêbado, e repetindo tudo o que a gente dizia. Brrr. Até tive pesadelos, depois.

_Bom, ela não repete mais o que a gente diz.

_Pode ser. _ o Prefeito não estava interessado _ Por que está me perguntando, Jack?

_Bom, é que tem alguma coisa estranha acontecendo entre ela e o doutor... _ Jack começou, perguntando-se até onde poderia contar. Mas não chegou a continuar, pois o Prefeito já tirando suas próprias conclusões sobre o que era a "coisa estranha":

_Você não está pensando que o doutor... está? _ sua face pálida corou _Ele pode ser desagradável, mas é um sujeito decente, caramba!

_Sei que é. _ Jack falou distraído, sem perceber o que Prefeito havia pensado _ É o que torna tudo tão esquisito.

_Jack, Jack. É natural que você pense esse tipo de coisas. Eu mesmo teria pensado em seu lugar, e com certeza muita gente aqui também pensa. Mas o doutor já é velho; é inválido e doente, e com certeza necessita de cuidados. Foi por isso que ele fez essa Molly ou sei lá como se chama: para ter uma enfermeira e uma companhia agradável _ hesitou na palavra "agradável", lembrando-se do balbuciar e dos olhos revirados de Sally quando a vira (ela ainda não tinha mente naquela época, lembrem-se) _ Tudo no maior respeito. Ele até me disse que, se tudo corresse bem, provavelmente casaria com ela.

Um raio caindo bem no crânio de Jack não teria produzido tanto efeito como aquela frase.

_C-CASAR COM ELA?! _ o queixo dele literalmente caiu. Carrancudo, apanhou-o do chão e colocou-o no lugar, depois olhou para o Prefeito, que tinha dados uns passos para trás, assustado _Você não pode estar falando sério! Sally é jovem demais, não tem sequer um ano de vida! Praticamente é filha dele!

_Hã... ela não é bem uma criança, se é que você me entende. E, biologicamente, não é filha dele. Seria perfeitamente legal. _ o gordo político disse, um tanto aborrecido e confuso com aquele escândalo. Por que Jack se preocupava tanto com o destino de uma garota por quem nunca dera mostras de interesse? Se ele ao menos se preocupasse assim com o Halloween... Ultimamente o Prefeito tinha problemas em manter Jack focado no trabalho. Não que seu amigo fosse preguiçoso, nada disso, mas ele não tinha mais o entusiasmo dos velhos tempos. Muitas vezes, a mente de Jack parecia estar longe, em algum outro lugar, e o Prefeito lutava para trazê-lo de volta.

O próprio Jack não sabia por que estava tão chocado. Aquela idéia de casamento explicava muitas coisas. Se o doutor via Sally como sua futura esposa (mesmo que fosse uma esposa platônica), fazia sentido que ele estivesse tão relutante em aceitar suas sugestões. Na verdade, o horror de Sally pelo mundo de fora deveria ser-lhe muito conveniente, já que ele obviamente receava perdê-la... Ele receava perdê-la... as órbitas de Jack se arregalaram. Como não percebera isso antes? O doutor havia se portado igualzinho a um homem ciumento. O que era absurdo, pois o Rei Abóbora não tomava as mulheres dos outros. Talvez os reis que o haviam antecedido fizessem isso, mas ele não. Ainda assim, não podia evitar uma sensação estranha, como se tivesse sido enganado, e desejou nunca ter se envolvido naquela situação.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Uma Luz na Torre" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.