Uma Luz na Torre escrita por Silver Lady


Capítulo 3
Capítulo 3




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/280/chapter/3

O coração de Sally batia com força enquanto ela subia a rampa que levava à biblioteca. Estava proibida de chegar perto daquele lugar desde aquele certo dia fatal, dois meses atrás; Sally ainda podia ouvir a voz do Dr. gritando que ela era burra demais para aprender qualquer coisa além de tarefas domésticas e que não lhe ensinaria mais nada. A lembrança ainda lhe doía. A boneca de trapo nunca conseguira entender o que tinha feito de errado: ela fora uma aluna dedicada, ávida de aprender mais e deixá-lo orgulhoso, mas isso parecia apenas irritá-lo.

Por sorte, a porta estava apenas encostada. Com muito cuidado, empurrou-a o suficiente para abrir uma fresta e espiar. Um cheiro de mofo e umidade atacou seu nariz (mesmo não tendo narinas), e teve que apertá-lo para evitar um espirro fatal. Espiou de novo. O lugar estava exatamente como se lembrava: o mesmo morcegão seco pendendo do teto, a mesma caveira amarelada e os velhos animais empalhados nas prateleiras e as mesmas pilhas empoeiradas de livros no chão aqui e ali. E, a poucos metros de distância, as mesmas cadeiras e mesa onde o mestre lhe dava aulas de matemática, geometria e outros assuntos. Era precisamente ali que os dois homens estavam. Sally arregalou os olhos.

De pé, ao lado de seu criador, estava o que parecia ser um imenso chicote preto com uma bola branca no topo. Sally nunca vira ninguém tão alto _ mesmo levando em conta que as únicas pessoas que via de perto eram Igor e o amo. O Rei Abóbora ergueu o braço para apontar alguma coisa, fazendo o queixo dela cair: os braços dele eram incrivelmente longos, quase tanto quanto as pernas. Olhando com mais atenção, ele já não se parecia tanto com um chicote, mas com uma imensa aranha com quatro pernas. Seis, se contasse os dois rabinhos que pendiam de seus fundilhos e abanavam ao menor golpe de ar.

Aquele era o Rei Abóbora? Sally fez bico, decepcionada. Ele era esquisito, sim, mas não parecia nada com as coisas horríveis que havia imaginado. Pensando melhor, lembrava agora de tê-lo visto de relance, uma vez ou duas, uma espécie de espantalho de preto atravessando a multidão. Bom, talvez não parecesse tão assustador de longe. Quem sabe mais de perto...

Mordeu o lábio, frustrada. Não havia jeito senão entrar na biblioteca, e a simples idéia lhe dava arrepios. Talvez fosse melhor desistir e voltar para o quarto antes que fosse apanhada. Já estava se arriscando o suficiente estando ali, do lado de fora.

Nesse momento, Jack perguntou alguma coisa ao doutor. Ao som de sua voz, uma lufada de coragem invadiu seu corpo: respirou fundo, abriu um pouco mais a porta e esgueirou-se.

Aquele devia ser seu dia de sorte, pois justo aquele momento o doutor depôs um imenso livro sobre a mesa e os dois se curvaram para olhar. Por isso nenhum deles percebeu a boneca entrar na ponta dos pés e esgueirar-se de estante em estante, até chegar à mais próxima deles. Sally apoiou as costas na estante e esperou até que as batidas de seu coração se normalizassem. Depois, cuidadosamente, esticou o pescoço pra fora e espiou.

Humm. Muuito melhor.

O Rei Abóbora continuava de costas para ela, por isso não podia ver-lhe o rosto, apenas a parte de trás de seu crânio, redondo e branco como a lua cheia. Ela notou que

sua roupa não era inteiramente negra: tinha finas riscar brancas, realçando o seu talhe esguio. As caudas, que pensara serem parte dele, na verdade eram do seu casaco.

Ele era bonitinho, combinando com a voz. Porém, de acordo com o que aprendera, o Rei Abóbora não deveria ser "bonitinho". Por que o mestre havia dito que o Rei era horroroso? Bom, talvez ele tivesse uma cara feia, Sally pensou com um sorriso amarelo; mas mesmo assim soava meio forçado. Ou quem sabe... talvez o amo tivesse vergonha de dizer a ela a verdade. Isso explicaria por que ele não queria que ela visse Jack. Ele construíra para ela a imagem de um esplêndido Rei Abóbora e agora estava com medo de ela se zangasse com ele ao descobrir a verdade. Devia ser isso.

Ainda assim, não podia evitar sentir-se um pouco chateada com idéia de que ele mentira para ela. Desde que Sally aprendera a falar ouvia repetidamente de que nunca deveria mentir; por isso, naturalmente esperava que o amo não mentisse também.

_Este é o meu melhor tomo sobre ervas, Jack _ disse o Dr. Finkelstein _ Se você não achar o que precisa aqui, não vai achar em nenhum outro lugar. Mas é claro que pode olhar por aqui à vontade.

_Obrigado, doutor.

_De nada. Agora, se não se importa, preciso voltar ao meu laboratório pra ver o que Igor está fazendo. Não gosto de deixá-lo sozinho muito tempo: da última vez, ele comeu meus fígados de reserva.

Jack concordou, distraído, e o velho se voltou na direção da porta. Sally rapidamente encolheu-se atrás de uma pilha de livros, antes que a cadeira de rodas passasse por sua estante.

_Falando em Igor, _ disse Jack _ esqueci de perguntar como vai a sua criação mais recente.

O coração de Sally deu um pulo. Jack estava falando dela!

_... Ela ainda se recusa a sair de casa? _ ele terminou.

Os olhos de Sally se arregalaram, chocados. Quê?

A cadeira de rodas silenciou, como se o Doutor houvesse parado de repente. Houve um pesado silêncio; Sally quase podia ver seu mestre hesitando, escolhendo cuidadosamente as palavras.

_Gostaria de dizer que não, Jack, _ ele disse finalmente _mas preciso ser honesto. Sally é uma garota muito estranha. Desde que a primeira vez em que abriu os olhos, ela se mostrou aterrorizada com tudo à sua volta. Até de mim, o homem que a fez, ela tem medo!

Continuou, parecendo deprimido:

_Você deveria tê-la visto há alguns meses atrás _ nem sair do quarto ela queria. Está um pouco melhor agora, mas não quer ouvir uma palavra sobre o que há lá fora. De qualquer jeito, não teria utilidade alguma para o Halloween; eu bem que tentei, mas Sally é incapaz de aprender o que quer que seja.

_Eu sinto muito.

_É preciso ter paciência, mas é duro. Não sei até quando vou poder agüentar.

Jack disse mais algumas palavras educadas de consolo e o doutor finalmente saiu, mas Sally não prestava mais atenção. Sentou-se com as costas apoiadas na estante, sentindo-se como se tivesse sido atingida por uma imensa rocha.

Não só ele mentira para ela, mas para Jack, também. Para o importante e respeitável Rei Abóbora. Havia- o feito pensar que ela tinha medo do mundo e que não sabia fazer nada! Estava muito bem que ele a chamasse de imprestável, mas dizer isso a outra pessoa... ele a fizera parecer mais burra do que Igor!

Mas por quê? Por que estava fazendo isso?

A resposta veio imediatamente, na forma daquela velha dúvida que ela sempre procurara ignorar: o mestre não queria que ela saísse. Dizia todas aquelas mentiras para mantê-la trancada em casa. Sally sacudiu a cabeça febrilmente. Não, não podia ser. Ele não poderia ser tão cruel... Ele fazia isso porque estava preocupado com a sua segurança... porque o mundo lá fora era perigoso... mas esses pensamentos não mais a convenciam. E se isso fosse outra mentira? E se o mundo não fosse perigoso, nem as pessoas fossem cruéis?

Mas isso queria dizer que tudo que ela aprendera estava errado!

Como ele pudera fazer uma coisa tão horrível com ela?

E, se não pudesse confiar em seu próprio criador, em quem mais confiaria?

Confusa e arrasada, Sally abraçou as pernas e apoiou a cabeça nela em posição fetal, desejando desaparecer daquele mundo.

Assim que Jack se achou sozinho (pelo menos foi o que ele pensou), suspirou aliviado e espreguiçou-se com um longo bocejo. Na verdade, o doutor tinha razão: tudo a informação que Jack precisava ele poderia ter encontrado em sua própria biblioteca, mas aquela pesquisa lhe dava um pretexto para descansar algumas horas no único lugar onde não poderia ser perturbado. Seus súditos não compreendiam que até o Rei Abóbora precisava relaxar de vez em quando: aonde quer que fosse sempre havia alguém lhe pedindo ajuda, bajulando-o ou _se fosse mulher _ dando em cima dele. O Prefeito era o pior de todos. Todas as manhãs o gordo político vinha até a casa de Jack e apertava várias vezes a campainha: se o relutante Rei não aparecesse imediatamente, ele já começava a ficar nervoso, pois a simples idéia de pensar sozinho já lhe causava pânico. Chegara ao ponto de procurar Jack no seu refúgio favorito, em cima da colina espiralada do cemitério. Reclamar apenas causava olhares magoados e lágrimas, que imediatamente enchiam Jack de remorso; ele era forçado a pedir desculpas e o ciclo recomeçava. O laboratório não era um lugar agradável nem o doutor muito hospitaleiro, mas ao menos ali ninguém viria atrás dele. Excetuando o próprio Jack, todos os cidadãos de Halloweentown evitavam o laboratório, de medo de terem partes de seus corpos usadas em alguma experiência. Mesmo o Prefeito só aparecera ali umas duas vezes em sua longa carreira, e só por obrigação; Jack duvidava que ele viesse hoje.

Suspirou de novo. Em momentos assim ele se sentia prisioneiro em seu próprio reino. Folheou algumas páginas distraidamente e bocejou de novo, sentindo as pálpebras pesarem.

Sally enxugou um olho e fungou sem se importar se fora ouvida ou não. Não queria mais ficar ali nem ver o Rei Abóbora; tudo o que queria agora era sumir para sempre daquele lugar, pulando da torre ou de qualquer outro jeito para nunca mais ver o mestre de novo. Arriscou uma espiada: Jack ainda estava lá, sentado de costas para ela, mas sua cabeça pendia para trás numa posição estranha. Sally assustou-se e recolheu-se de novo: ele devia tê-la ouvido!

Então ouviu um som inconfundível.

Um ronco.

Conhecia bem aquele som porque o amo sempre roncava quando dormia em cima da mesa de trabalho, muito embora seu ronco áspero fosse bem diferente do zumbido suave produzido por aquele delicado homem de preto. Um pouco surpresa, Sally aproveitou para deixar o esconderijo e andar em direção à porta.

A meio-caminho parou e virou-se para olhar o esqueleto adormecido. Só uma olhada... Não, não, já fizera o bastante. Nem deveria estar ali. Cerrando os dentes, obrigou-se a se virar na direção da porta; porém seus pés, como se tivessem vontade própria, levaram-na até Jack.

Timidamente e sentindo-se culpada, Sally inclinou-se sobre ele com o coração aos pulos, tapando a boca para não fazer barulho. Quase arquejou em surpresa: ele era lindo. Sally não sabia dizer o que o tornava tão atraente mas ele era muito bonito sem dúvida, e também não se parecia em nada com um esqueleto. Já vira muitas caveiras, em livros ou no laboratório, mas nada parecido com aquele rosto. Talvez o Mestre tivesse mentido de novo e ele não fosse esqueleto, apesar do nome*. Então viu uma das mãos dele, pendendo do lado da cadeira. Pegou-a e examinou-a. Sim, era uma mão de esqueleto, porém imensa! Suas mãozinhas caberiam folgadas nela, corou ao pensar, e cuidadosamente soltou a mão dele, tomando cuidado para não acordá-lo, depois voltou sua atenção para as roupas. Havia uma coisa esquisita presa em seu pescoço, que parecia um morcego, e Sally tocou-lhe de leve nas asas. Porém, o que a fascinava mesmo era a boca.

Embora não houvesse espelhos na casa, Sally sabia como era sua aparência, pelo seu reflexo nas superfícies polidas das panelas, ou ainda dos aparelhos do amo quando ele a consertava. Muitas vezes ele dissera que ela era tão feia que ninguém perderia tempo em olhá-la, e Sally acreditara. Seus olhos eram grandes demais, seu nariz e queixo minúsculos e o grande corte que atravessava sua boca indo de um lado a outro do rosto não ajudava em nada. Porém agora podia ver que o rosto de Jack não era muito diferente do dela. Ele também tinha um (quase) nariz e um queixo pequeno. Não dava para saber se seus olhos seriam tão grandes quanto os dela, mas tinha quase certeza. E a boca... Sally olhou fascinada para a longa linha de dentes que quase dividia aquele crânio ao meio e parecia também uma longa linha costurada. Tocou as costuras do próprio rosto e estendeu para tocar os dele...

Jack abriu os olhos.

_Uuuaaaaah! _ gritou, sentando-se de repente como que propelido por uma mola. Sally deu um gritinho e fugiu, mas em seu pânico não olhou para onde ia e esbarrou numa imensa pilha de livros. O barulho que fez ajudou Jack a terminar de acordar. De início, em sua mente ainda confusa, pensara que a visão de uma mulher berrando fosse parte do pesadelo que tivera; aqueles sons, no entanto, eram reais. Levantou-se e olhou para trás.

A mulher jazia atirada sobre os livros, sem fazer nenhum esforço para fugir. Estava chorando. Jack veio na sua direção e inclinou-se sobre ela.

_Você está bem? _ indagou, preocupado _ Eu sinto muito, não queria assustá-la...

_Por favor, não me machuque. _ ela choramingou _ Sei que não deveria estar aqui, mas queria saber como você era...

Continua

* Skellington _ trocadilho com skeleton (esqueleto) e Wellington, nome próprio. Na versão dublada do filme, Jack aparece como Jack Esqueleto, mas prefiro o nome original.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!