Kit Black: Viajantes De Mundos escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 29
Um último movimento.


Notas iniciais do capítulo

Muahahhaa!
Estou de volta (ninguém lê isso aqui, mas tudo bem). Eis o penúltimo capítulo da história.
Se você chegou até aqui, eu o congratulo. Porque as reviravoltas foram muitas e eu demoro bastante pra atualizar. Também estou ciente que o começo dessa história está completamente em desacordo com o resto, mas ele será editado assim que o último capítulo for escrito.
Bom, se chegaste até aqui, agradeço pelo chance que me deu, e espero que esteja gostando dos capítulos finais desta trama.
Kisses, e boa leitura ♥



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A tentativa de manter-se distante de Haradja não havia dado muito certo para Kit. Chegou um momento inevitável em que a meia-irmã reencontrou-a e, como já era de se esperar, os golpes choveram pesados sobre a pequena garota.

—Te encontrei!

O aviso chegara junto de uma esfera de energia negra, que veio a estourar a centímetros do rosto de Kit. Da névoa de fumaça que se seguiu, surgiu o braço da imortal, pronto para agarrar a mais nova pelo rosto, mas esta esquivou-se no último instante.

—É o que parece…

—Já cansas-te de fugir? -Haradja apareceu por entre a fumaça que restava, abrindo as asas em toda a sua surpreendente envergadura. O couro que as cobria parecia tornar o ambiente em volta mais escuro do que já estava. Ela estava ainda mais intimidadora que o seu normal.

—Não dá para adiar para sempre. -Em resposta, a garota entrou em posição defensiva, rangendo os dentes, afiados devido a sua transformação. Logo bloqueava outro ataque de sua rival.

—De fato… é hora de terminar com esse espetáculo macabro. -Haradja quebrou o bloqueio, usando a outra mão para acertar o tronco desprotegido de Kit. A pancada fez com que a mais nova se afasta-se, contra-atacando com um movimento quase mecânico, conjurando uma adaga que cortou horizontalmente o busto da irmã. Instantaneamente, contudo, o ferimento começou a cicatrizar, logo sumindo por completo.

—Me pergunto se isso é mera estupidez… quantas vezes terei de dizer-lhe, garotinha imbecil… -ela ergueu sua mão para agarrar a que Kit mantinha presa a faca, cortando-se no processo, mas pouco se importando com aquilo. Puxou-a para mais perto, usando o braço livre para desferir-lhe um golpe violento na cabeça, com seu cotovelo, fazendo-a bater contra o chão. -Eu sou imortal!

—Sim, você é. -a garota conseguiu dizer, estremecendo sob o choque do golpe. -E deve ser por isso que você ficou assim, não foi? Por que você estava assustada, porque não queria passar o resto da existência vendo as pessoas morrerem, e então decidiu que ser boa já não adiantaria de coisa alguma.

Haradja ficou em silêncio por alguns segundos, logo praguejando e chutando a irmã violentamente contra a parede. -Cale-se.

—Eu achei estranho esse tempo todo o Olho, de Osíris ter tido força suficiente para libertar sua maldição… por mais forte que fosse, você poderia ter impedido, não poderia? Como nosso pai lutou contra o seu lado ruim…

—Cale-se! O que lhe disseram sobre ele?

—Eles me disseram… -Kit parou de falar, recobrando o fôlego e abraçando o local que acabara de ser chutado. Lembrou-se do pouco que Iris e Salem haviam lhe confidenciado… sobre Kairos, um dos poucos imortais que lutaram contra seu próprio criador, Ajax, quando este enlouqueceu. -… que ele é um herói.

—Um herói? Ha… devem ter imaginado isso realmente, com as mentes limitadas que tem. Mesmo que o fosse, não me interessa em nada.

—Não interessa? Se não interessa, você está destruindo nosso mundo pelo quê?

—Pelo quê, perguntas? Como eu já lhe disse uma vez, irás morrer sem ter uma confirmação vinda de minha boca. O que pretendo depois disso tudo, só diz respeito a mim.

Kit ergueu o corpo para tentar fugir, mas acabou recebendo outro golpe na canela, fazendo-a rolar pelo chão. Sentia a caixa com as pequenas pedras de Haradja pressionada contra seu corpo. -Irmã… eu lhe peço, não a conheci antes, e não tenho direito algum de implorar, mas… por favor, por favor, ao menos tente despertar.

—Poupe-me desse maldito sentimentalismo… queres me matar, não é? - Haradja agarrou Kit pelo pescoço, puxando-a mais para perto e deixando-as cara a cara. -Então me mate, sua bastarda!

“Que os deuses me perdoem por isso…” A garota pensou consigo mesma, exatamente no instante em que invocava correntes em pleno ar, parecendo ter saído de seu próprio corpo, começando a enlaçá-la, cortando-a com violência enquanto aumentavam de tamanho. A Lady Infernal tentava abrir as asas para fazê-las arrebentarem, mas não conseguia, e logo as correntes enganchavam-se nelas, causando dor em profusão.

—Ahhh! Maldita seja, pirralha desgraçada! O que fizeste?

Um acúmulo de energia sombria foi jogado em direção a Kit, e ela materializou um escudo para defender-se. Já ofegante, procurou pelas vestes a caixinha, enquanto respondia. -Você pode até ser imortal, mas não é imune a dor. Isso é ferro sagrado, tirado dos domínios de Hera, moldado pelo fogo de Fowkes, banhado nas lágrimas de Seres e temperado pelos ventos de Reidh.

—Maldita! Seja um milhão de vezes amaldiçoada, como conseguiu isso?

—Reidh entregou-me a dois dias atrás.

E era verdade. O deus-elfo lhe ofereceu o elemento, um trabalho conjunto dos quatro deuses e do próprio Aldeon, que ajudou recolhendo e prensando a maior parte do ferro possível. O que ela ganhara era uma bola pesada como chumbo, que não sabia ao certo como usar. Mas o deus alegara categoricamente que Kit conseguiria moldá-lo da forma que quisesse com magia. De maneira que ela espalhou-o principalmente em bolinhas menores de metal, que guardara amarradas em pequenos trapos, entre suas vestes.

Na primeira oportunidade, ela modificou a matéria novamente e forçou-os a tornarem-se correntes. Correntes que nem sua meia-irmã poderia quebrar. Mas apesar da dor que causavam, uma hora a mente diabólica de Haradja conseguiria pensar em algo para se libertar. Era preciso ativar as pedras.

Kit espalhou-as no chão, enquanto a irmã continuava a amaldiçoá-la e a blasfemar contra seus deuses. Ajeitou-as em um círculo ao redor da imortal, mantendo distância suficiente para que esta não as tirasse do lugar enquanto se debatia, e viu quando raios multicoloridos começaram a conectá-las. -Eu invoco o julgamento dos imortais, pelas suas próprias escolhas. Que as pedras que nasceram junto de ti se responsabilizem por deixá-la trancafiada até que seus pecados sejam expirados!

—Pecados? Pecados!? Não me faça rir, bastarda!

Foi mais rápido do que julgava ser possível. Num último movimento a imortal jogou-se para frente, com correntes e tudo, e agarrou Kit, prendendo-a com suas garras embaixo de si. Agora o ferro que não parava de mover-se e enrolar-se no corpo de Haradja feria a garota igualmente.

—Podes até tentar… mas sabe que jamais teria força para me enfrentar sozinha, pois é uma covarde, uma criança tolinha e com o coração maior que a cabeça. E é por ser incapaz de machucar os que lhe são próximos diretamente que perderá. Que campeã miserável se tornaste! As pedras não me puxarão enquanto estiver dentro do círculo, e não pretendo deixá-la viva para escapar outra vez… -Kit viu-a chacoalhar-se, desprendendo o outro braço e mirando as garras no meio de seu peito. -É o fim… foi a isso que seu glorioso destino a levou!

—Não! -ela só teve a noção de ter ouvido-se gritar, e seu instinto protetor foi mais forte que qualquer ordem da cabeça ou do coração. Materializou uma arma de fogo roubando parte do ferro contido nas correntes e disparou imediatamente, usando a própria magia como gatilho. E então viu o buraco que surgira exatamente na testa da meia-irmã, cujos olhos ficaram nublados e o corpo, mais que imediatamente, tornou-se rígido. Ela afastou-se, tirando-o de cima dela e respirando com sofreguidão.

Um tiro no cérebro.

Danos irreparáveis em um humano comum.

Danos causados a um imortal com fator de cura perfeito? Nenhum. Ainda assim, ela não poderia fazer nada com os miolos arrebentados. Precisava ter um cérebro funcionando para atacar a garota novamente. Kit sentiu uma profunda vertigem, o gosto de bile subindo até a língua. Respirou profundamente, porém, ao notar que os pedaços de cérebro que haviam voado do ferimento já começavam a seguir em direção a Lady Demoníaca.

A garota não exitou mais. Repetiu o encantamento, ainda que estivesse tremendo por dentro, e viu quando os raios conectaram-se pela segunda vez, correndo em direção ao corpo de Haradja e envolvendo-o em um globo de luz ofuscante. E, quando este esmoreceu, não havia nada mais que uma pedra, maior que as outras, descansando pacificamente no chão semidestruído.

Pareceu-lhe ouvir por uma última vez a voz de Light em sua mente.

“Fizeste bem, minha criança. Agora nós cuidaremos dela. Todas nós lhe desejamos boa sorte em suas jornadas futuras… e que, quando as coisas forem mais simples, possamos nos encontrar novamente.”

—Espero que sim… -Kit deixou escapar, assim como uma lágrima teimosa que não conseguiu conter. E, quando o silêncio desceu uma vez mais, pegou com cuidado a pedra, de aparência lisa e cinza, com runas estranhas percorrendo-a em toda a superfície, e ergueu-se, preparada para retornar a presença dos outros.

Com sua missão devidamente cumprida.

 

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De alguma forma os demônios e os outros capangas de Haradja pareceram notar que sua mestra havia sucumbido. O exército começou a dispersar-se, e os que ainda preocupavam-se em atacar estavam tão confusos que não eram desafio algum. Talvez o fato de terem notado a Deusa do Som, Cassandra, ser explodida em mil pedacinhos bem diante de seus olhos tivesse ajudado a instaurar o terror.

Para os assassinos e mercenários foi relativamente simples parar o assalto e regredir usando becos e sombras, até que estivessem longe o suficiente da capital para não serem notados. Mas os demônios, em sua maioria, eram de baixa procedência, suas mentes eram lentas e limitadas. De maneira que caiam como moscas nas mãos daqueles que haviam tentado sitiar.

Em meio ao caos, enquanto Alberich ainda transpassava os inimigos com suas flechas e Nicolas se esforçava a fazê-los em pedaços, Iris mantinha vigília sobre a cabeça de Cassandra. Esta estava demorando para regenerar-se, o que era um tanto atípico, já que, por mais que tivessem feito estrago nela com a explosão, ainda era uma deusa.

—Parece-me que Cassie não está levando isso a sério mais…

—Algo importante aconteceu… -Alberich saltou finalmente ao chão, dando um descanso para os braços. -Os demônios mostram-se irrequietos.

—Creio que… minha irmãzinha tenha feito seu trabalho a contento. -Nicolas forçou-se a dizer, depois de cortar um ser das trevas ao meio. Ele ergueu os olhos na direção em que vira a última explosão de luz, a alguns minutos atrás, e suspirou. Se ia dizer mais alguma coisa, teve que deter-se ao ver um vulto familiar correndo em sua direção. Ainda que “correr” fosse um elogio, já que a pessoa em questão cambaleava bastante, e só não era atacada porque, quando qualquer demônio chegava mais perto, tomava um tiro que instantaneamente reduzia-o a pó. -K…

Ela praticamente se jogou nos braços dele, fazendo os dois caírem. Lágrimas escorriam em tanta quantidade do seu rosto que era difícil saber se ela estava vendo por onde andava. -Nick… ela… ela…

—O que ela fez com você? -Talvez ele estivesse errado, afinal de contas, porque ao ver o estado da irmã, parecia ser mais grave do que julgara. Havia grandes hematomas por boa parte do seu corpo, inclusive no pescoço e no rosto. Vendo que ela dera uma pequena recuada depois de cair sobre ele, era possível que alguma parte do seu abdome também estivesse ferida.

—Não… não é isso… Haradja está presa… -a jovem engoliu em seco, tentando recuperar a compostura. Como explicar que o que a deixara tão assustada era o que acontecera antes da meia-irmã ser selada? Talvez fosse melhor deixar certas explicações para mais tarde. Inspirou e expirou profundamente, acalmando-se aos poucos, e estendeu-lhe a nova pedra, surgida da união de todas as outras e atual prisão de Haradja. -Está… está tudo bem. Nós vencemos.

Nicolas desceu seu olhar sobre a pedra, mas em vez de pegá-la para si, segurou as mãos de Kit entre as suas. -Guarde-a, por hora. Você fez um bom trabalho, irmãzinha. -ergueu uma mão para afagar a cabeça dela. -Estou orgulhoso de você, sabia?

A resposta foi um sorriso breve e um ronronar baixo, como o de um gatinho recebendo um agrado. Mais uma vez ela teve vontade de chorar, sabe-se lá porque, mas refreou-a e ficou subitamente séria. -Como estão aqueles que foram para Vadolfer?

—Não temos ideia. Ficamos ocupados com as lutas do lado de fora, mas agora que os demônios estão recuando, talvez consigamos uma folga para ir até o Palácio de Granito e tentar entrar em contato.

—Bom, temos uma folga suficientemente grande para que os dois irmãos fiquem descansando em pleno campo de batalha. -Cortou Iris, aproximando-se deles, com a cabeça de Cassie segura por uma das mãos, enquanto a outra estava apoiada na cintura. -E então, já acabaram de fazer corpo mole?

—Olha só quem fala, é você quem está desfilando por ai com a cabeça de um dos generais inimigos de baixo do braço. -ele respondeu imediatamente, o que fez Kit revirar os olhos. Aqueles dois levavam o termo “linha tênue” a um novo nível.

—Nós não temos tempo para isso, com todo o respeito, Senhor… Senhorita… -Alberich alegou com sutileza, virando a cabeça em uma direção. Uma chama rolava por perto, chamuscando muitos demônios que tentavam fugir, sem sucesso algum. Kit reconheceu Draco, e levantou-se num salto, juntando força para voltar a correr até ele e balançando bem os braços para que o mesmo a visse e parasse de soltar labaredas. O dragão fechou a boca, sacudindo o corpanzil e abaixando a cabeça escamosa (que já tinha o tamanho da própria Kit) para que a jovem pudesse acariciá-la.

—Oh, Draco! Meu querido amigo, você não se feriu de alguma forma?

“Como se tal coisa fosse possível, querida amiga.” ele respondeu, com um tom orgulhoso típico dos de sua raça, mas havia um toque de gentileza mesmo assim, voltado àquela que o resgatara em Dragon, a tantos meses atrás.

—Onde estão Cloe e Sacha?

“Ambas estão com o Guarda-Real. Não se incomode com elas, estão seguras.” estreitou os olhos ofídicos, soprando fumaça de suas ventas. “Está ansiosa…”

Kit sabia que a última frase fora dita especialmente em sua cabeça. Ela acenou afirmativamente e suspirou jogando os cabelos para trás. -Preciso entrar em contato com aqueles que estão em Vadolfer. Acha que estão bem?

“Estão com os Caçadores, mas… não cabe a mim saber.” se ele pudesse, possivelmente daria de ombros. “Vá em frente e tente contatá-los. As garotas e aquele homem não estão tão longe, e será fácil para que eu e o elfo abramos passagem...”

—Obrigada, Draco.

Ele rosnou baixinho, como uma resposta amável, e voltou a inspirar, preparando um jato de fogo. Kit saiu do caminho, voltando a correr e agarrando Nicolas e Iris no processo.

—Vamos tentar encontrar os outros pelo computador, Draco vai nos dar cobertura.

—No fim das contas, ter trazido esse dragão contigo talvez tenha sido uma das suas melhores ideias, irmãzinha.

—Das poucas, eu diria. -Atalhou Iris, com um sorriso irônico que fez Kit corar.

—Perdoe-me, mas… você vai continuar carregando essa cabeça?

—Hum, tecnicamente é a melhor foma que temos de lidar com ela. Cassie é imortal, não pode morrer… aliás, ela é uma deusa de outra dimensão, então me parece duplamente impossível vencê-la de qualquer outro jeito.

—Mas… não acha meio repugnante? -Kit fez uma careta, voltando a materializar sua pistola para estourar a cabeça de um demônio que decidira vir em sua direção.

—Apenas ignore os fetiches estranhos dela, Kit… -atalhou Nicolas, suspirando e recebendo um olhar letal da semi-fada em resposta. Eles apressaram o passo, desviando de edifícios em ruínas e corpos jogados pelo chão. A garota preferiu não olhar para eles. Sabia que sua maior parte era de aliados, já que os demônios viravam pó quando morriam, e haviam poucos inimigos de outras raças entre eles.

Algum tempo depois, os três conseguiram encontrar-se com os poucos subordinados que haviam ficado no Palácio de Granito para mantê-lo guarnecido caso ocorresse o pior. Nicolas afastou a maior parte dos que usavam o Computador Central e sentou-se em sua cadeira, começando a digitar freneticamente nos teclados. Em questão de segundos, vários programas começaram a rodar e um quadrado de vídeo surgiu na tela. O som de chiados era constante, e a imagem tremulava desagradavelmente, tornando difícil de ver quem estava do outro lado. Uma voz tranquila e mansa, contudo, chegou até eles.

—Finalmente conseguimos contatá-los… -ela dizia, talvez para alguma outra pessoa ao seu lado. -Não, não… acho que não… -uma pausa, em que os chiados ficaram mais fortes e depois mais fracos, e então a imagem clareou, e o rosto de Mitaray surgiu na tela. -Oh! São…

—Mitaray! - os três deixaram escapar em uníssono, logo se entreolhando, antes de voltarem sua atenção para a tela. Foi Iris que reiniciou o diálogo: -Como está a situação por ai?

—Sob controle. Alguns de nós estão bem feridos, eu diria, porém estamos todos vivos. -Eles viram quando ele moveu sua cabeça para a direita e gritou alguma coisa. Depois encarou-os novamente. -E… o que está acontecendo desse lado?

Kit abriu um sorriso aliviado, tanto por saber que não havia perdido ninguém, tanto por conhecer a resposta que Nicolas daria naquele instante. Trazendo a irmã mais perto e segurando sua cabeça para mantê-la mais próxima da dele, o rapaz fechou os olhos, com uma clara expressão de alívio, antes de responder. -Os demônios estão recuando. O resto do exército inimigo também… vocês estão olhando para a nossa pequena Campeã e vencedora. Haradja foi selada com sucesso.

—Definitivamente e devidamente. -A irmã mais nova assentiu com a cabeça, sorrindo timidamente. O rapaz, do outro lado do vídeo, sorriu junto, de maneira carinhosa.

—Que boa garota… eu sabia que era capaz. Os outros ficarão orgulhosos de ti.

Ele parecia um pouco melancólico, porém, o que fez Kit fixar sua atenção no computador por bastante tempo, e torcer uma das mãos na outra. -Ei… Mitaray…

—Sim?

—Eu não sei o que houve por ai, mas… acho que… acho que as coisas vão começar finalmente a se ajeitar, então… -Ela mordeu o lábio inferior, inclinando a cabeça para a direita. -Então… se seu coração ainda estiver doendo, lembre-se que depois dos invernos vem as primaveras, e que nada de ruim pode durar. E que ainda estamos aqui para apoiá-lo.

Houve um momento de silêncio da parte dele, quando uma expressão rara de surpresa passou pelo seu rosto sempre tranquilo. E então ele fechou os olhos, assumindo sua personalidade habitual. -Obrigado, Kit. Irei me lembrar.

—Ora, parem com esse papo chato e passem isso para cá! -Uma voz familiar exigiu, enquanto virava violentamente o comunicador do outro lado para focalizá-la, tirando completamente o outro rapaz da linha de visão. Lyla apareceu, com toda a sua energia motivacional. -Ah, olá para todos vocês… seguinte, as coisas ainda estão um pouco confusas por aqui, então daqui a pouco ligaremos de volta. Aguardem um pouco mais, tudo bem?

 

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Antes que qualquer um deles pudesse responder, a fada noturna já havia cortado a comunicação com um simples apertar de botão. Ela girou no banco em que estava sentada e encarou Mitaray por alguns instantes. Ele engolia em seco, sofrendo de um breve estremecimento. Estranhamente, seus olhos encheram-se de lágrimas, mas ele as conteve com muito custo. -Essa pureza…

—Não deve demorar muito para que ela a perca. -A fada alegou, com simplicidade, cruzando os braços. -Embora eu não goste de pensar nisso… aquela garota é especial, mas… essa inocência ainda vai machucá-la bastante.

—És também uma jovem garota, Lyla. Falando algo assim, faz parecer que…

—Todos temos que provar um lado amargo do mundo algum dia, mais cedo ou mais tarde. -ela estalou a língua e bateu a palma das mãos. -Quem melhor para saber disso do que você e seu parceiro, afinal? Aliás, ele deve estar voltando.

—Me sinto receoso com relação a isso. -Mitaray pôs-se de pé, clamando por controle, e girou nos calcanhares. Saiu da cabine do Diamante Negro com passos largos. -Foi uma ótima ideia trazer o posto de operações a bordo. Duvido que as casas de Vadolfer estejam em condições…

—Bem, nós fomos bem pagos para ajudá-los o máximo que fosse possível.

—É difícil acreditar que estão ajudando apenas pelo dinheiro.

—Não estamos… mas é apenas um segredinho, então não espalhe por ai. Edmond e Laurent nunca admitiriam tal coisa.

Edmond e Laurent haviam se prontificado na busca por sobreviventes, junto com sua tripulação. Kira, Kensuke e Crós foram levados para o porão do barco, onde havia sido montada uma simples enfermaria. Apesar da falta de sangue dos dois primeiros e do esgotamento mágico do feiticeiro, o susto inicial já havia passado, e sob a assistência dos piratas e dos Caçadores da Morte, os três não corriam risco algum de vida.

Os parcos sobreviventes que haviam conseguido safar-se das garras dos esqueletos vivos de Gaia também foram levados para lá, e Hiei mantivera-se acalmando-os e entretendo-os, assim como cuidando de seus ferimentos, até os Irmãos Sol e Lua voltarem para a embarcação sem trazer mais ninguém. E só então o Caçador pediu permissão para iniciar sua própria procura… completamente distinta da deles.

Mitaray achou por bem esperar mais um pouco, e junto a Lyra, tentou entrar em contato com a capital. Depois da curta conversa com Kit, Iris e Nicolas, decidiu por rumar novamente para a enfermaria antes de tentar encontrar novamente o parceiro… e o que este tanto buscava.

Ele desceu as escadas com lentidão, alongando o pescoço e os braços. Vários pares de olhos convergiram para si, antes que se dispusesse a falar: -Trago ótimas notícias da capital.

Os sobreviventes de Vadolfer, um pequeno grupo formado por um casal de jovens, uma senhora e três crianças na faixa dos seis aos dez anos, lançaram-lhe olhares esperançosos. Os piratas demonstravam a mais pura curiosidade. Kira, que mantinha-se ao lado do irmão e de Crós (este último dormindo profundamente), foi a única que abriu a boca para falar. -Diga logo, oras! Você quer nos matar do coração?

Mitaray sorriu, divertindo-se um pouco com a ansiedade da namorada. Kensuke também parecia cheio de expectativa, embora se mantivesse calado, talvez poupando suas energias mais um pouco.

—Todos os nossos conhecidos estão bem. E Kit selou Haradja com sucesso… e, bem… -o rapaz fitou o mago adormecido por alguns segundos, antes de continuar. -Creio não ter enxergado demais, tenho total certeza que Iris estava segurando a cabeça de Cassie quando entrei em contato.

Houve suspiros de alívio, gritos de animação e abraços apertados. O clima ali dentro pareceu mudar drasticamente. Kensuke tentava tirar a irmã de perto dele, já que com sua empolgação ela quase causara-lhe outra hemorragia. -Kira, controle-se! Espera… você disse cabeça?

—Oh, então alguém degolou ela? Que demais! Pensei que não se podia matar deuses, nem mesmo os menores. -A mulher continuava a tagarelar, pouco se importando com o ferimento do ombro que começava a sangrar novamente.

—Eu duvido que esteja morta… provavelmente devem ter… -ele pareceu lembrar que havia crianças no recinto e parou, antes de prosseguir. -ferido gravemente o resto do corpo. Provavelmente Iris está carregando a cabeça para evitar que Cassandra se reanime. Mas mantenham isso em segredo de Crós, por favor. Ele já passou por bastante coisa hoje. -caminhou até Kira, observando o curativo atentamente. -Não deverias ficar se mexendo tanto, querida, seus pontos abrirão…

—Ora, quem se importa com os pontos? Nós vencemos! Haha, isso merece uma comemoração. Tragam saquê!

—Não temos saquê, apenas rum. -Alegou por sua vez Laurent, enquanto coçava a bochecha com o dedo indicador.

—Serve! Vamos encher a cara!

—Ninguém vai encher a cara coisa alguma, vocês estão feridos e isso aqui não é uma taverna! -Edmond explodiu, tentando por ondem na bagunça. Mitaray meneou brevemente e segurou a mão de Kira, pronto para sair e levá-la junto. -Kensuke, se incomoda de me emprestar sua irmã por um instante?

—Tire-a daqui antes que ela cause um desastre. -Foi a resposta, claramente relacionada a probabilidade de Kira beber todo o estoque de rum.

O rapaz a puxou para fora com cuidado, ainda mantendo os olhos sobre o ferimento em seu ombro, e só quando chegaram novamente ao convés e reparou que estavam sozinhos, suspirou. Ele retirou o cachecol que usava em torno do pescoço e passou pelo dela, silenciosamente.

—Qual é o problema com você?

—Sabes o que Hiei está procurando…

—Sim… imagino o que seja.

—Eu deveria estar com ele, no entanto… existem prioridades. Ele nunca entendeu muito bem isso, tenho certeza, então… alguém de nós dois tem que ser o responsável.

—Se você dissesse que ele é o responsável, eu ficaria preocupada…

—Ele é confiável. Na maioria das vezes, ao menos. -Ele deu uma última volta no cachecol. -Kira… aquela pessoa que matou… estava atrás dele por muito tempo, não?

Ela uniu as sobrancelhas, perguntando-se onde ele queria chegar com aquela conversa. -Sim… desde muito tempo.

Ele entrelaçou os dedos no tecido e puxou-o para que ela chegasse mais perto, colando docemente os lábios contra os dela. Não se afastou, contudo, e acomodou-a facilmente em seus braços. -Ei… amor…

—O que foi? É sério, você está começando a me assustar…

—Não se sentes vazia… agora que percebe que o passado não pode ser mudado, mesmo com algo tão deturpado como vingança?

—Ahn… você é tão estúpido. -Kira começou a sentir as lágrimas queimarem em seu rosto. Ele tocara bem na ferida, naquele fato que nunca admitiria pra ninguém… que a morte de Driguem não lhe causara alívio algum. Que mesmo que suas próprias mãos tivessem descido a espada que partiu-o em dois, a dor da morte dos pais, a dor dos irmãos que precisaram viver separados, a dor da angustia e da espera, da impossibilidade de saber quando ele voltaria para terminar o trabalho… aquela dor não podia ser apagada. -Você é idiota. Completamente idiota! Que os diabos o carreguem, como pode… -começou a praguejar, tentando forçá-lo a largá-la. -Por que, com tudo o que você passou hoje, no estado em que está, você tem que ficar se preocupando comigo?

—Porque eu a amo. -Ele aprofundou o abraço, ignorando as investidas dela e levantando uma das mãos para puxar sua cabeça de encontro ao peito dele. -Porque uma certa mulher me disse que ajudaria a carregar meu fardo. E eu não suporto vê-la levar o dela sozinha.

Kira controlou sua tremedeira e as lágrimas que teimavam em cair e secou-as com os punhos, mordendo o lábio inferior com força, antes de falar. -Eu… acho que posso… dividi-lo, se for com você.

—Isso me deixa mais tranquilo.

—Você pode ir pro inferno com sua tranquilidade.

—Ha… ainda assim eu a amo, milady.

—Espero que seu amor seja a prova de fogo. -Kira estreitou os olhos, com ironia, e inclinou o corpo para dar-lhe outro beijo. -quando reabriu-os e focou sua atenção na costa, viu o vulto de Hiei que estava parado ali. Estava sujo e esfarrapado, sinal de que procurara por lugares que ela preferia ignorar. Ele acenou brevemente para que os dois viessem a terra. -Eu acho que ele encontrou…

Um suspiro mais pesado que o normal escapou dos lábios de seu parceiro, e ela entrelaçou seus dedos aos dele imediatamente. -Quer me acompanhar?

—Sim. Divisão de carga.

Ele assentiu com a cabeça. O casal desceu rapidamente ao encontro de Hiei, que tentava ajeitar-se para parecer menos acabado. Seus olhos estavam inchados, talvez de cansaço ou talvez por ter chorado um pouco. Ainda assim, ele abriu um sorriso convidativo ao ver os dois. -Eu encontrei… vai ser uma caminhada meio longa, mas não há como se perder. Espero que não se importe, Mitaray, mas eu… já o enterrei. Ainda assim, podemos fazer os tributos juntos.

—Sabes que eu não me importo. Logo os cães e os lobos devem descer das florestas… -Mitaray estreitou os olhos por algum tempo, pensativo, e colocou uma mão no ombro dele. -Importasse se Kira vier conosco?

—Não. Você muito bem que não. -colocou as mãos sujas dentro dos bolsos e fitou Kira. -Seu estado está realmente lastimável.

—Não vou aceitar esse comentário vindo de você.

Ele riu por alguns instantes, até sentir algo bater contra seu rosto. O trio ergueu os olhos praticamente ao mesmo tempo, vendo os flocos de neve que começavam a descer, com suavidade, dos céus.

—É normal que neve por aqui? -Perguntou Kira.

Mitaray meneou a cabeça, negando. -Não. Nunca nevou antes. Mas creio que…

—… essa neve seja um presente para todos nós. -Hiei completou, mantendo um sorriso na face, antes de passar o braço pelo ombro do amigo e recomeçar a caminhada para o local onde sepultara o corpo do mestre.

 

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Na capital, a neve também caía, com fartura, logo cobrindo os cadáveres com um lençol branco e gelado. Não sobrara nenhum inimigo mais no território, os últimos sumindo assim que os primeiros flocos começaram a cair. Draco, cujo frio não agradava em nada, retornou com sofreguidão à sua forma menor e enfiou-se em volta do pescoço de Kit, que já retornava para as ruas novamente, depois de ter sua comunicação com o outro grupo cortada. Ela subiu o capuz que costumava usar sobre a cabeça, deixando-o mais confortável.

—Um dragão de sua estirpe com medo do frio?

“Eu não temo o frio, só não considero-o meu amigo”.

—Claro, claro… -ela ficou em silêncio, olhando para a neve por alguns segundos, antes de ser acertada por duas jovens de sua idade e cair no chão. -Ai, ai, ai! Ei, eu estou com hematomas! Não venham me derrubando assim sem mais nem menos!

—Ora, pensei que soubesse que o gelo é bom para os hematomas. -atalhou Cloe, com um sorriso lupino, enquanto Sacha refutava do seu lado:

—Ninguém liga!

—Bom… a verdade é que temos de comemorar de alguma forma. -ela mexeu as orelhinhas de gato, sentando-se, Draco serpenteando por suas costas em busca de algum lugar que pudesse ficar aquecido sem que fosse esmagado pelas duas outras garotas. -Afinal, o motivo que nos fez fazer toda essa viagem, foi cumprido.

—Eu ficaria feliz se pudesse apenas tomar um banho quente, deitar e dormir… -Cloe sacudiu seus cabelos cacheados, onde os flocos começavam a se acumular. -Este tempo é nostálgico… me faz lembrar de casa.

—A mim também. -Sacha complementou, o rosto corado por causa da temperatura que começava a cair vertiginosamente. -No Japão fica assim, em determinada época do ano. Mas, se pensar bem… Kit nunca viu um dia de neve, não é? Lá em Petrópolis nunca nevou, pelo que me lembre…

A jovem havia perdido seus pensamentos naquela brancura a sua volta por bastante tempo, e logo assentiu com a cabeça. Um sorriso singelo cobriu sua face. -Mas é bom, afinal de contas. Eu realmente precisava de algo agradável para me lembrar… - ela ergueu seus dedos para capturar um floco. -Do porque fiz o que fiz.

Aquelas últimas cenas da luta com a irmã foram levadas como filetes de gelo derretido. Ela tinha certeza que fizera o que pudera. E tal certeza que a sustentaria nas noites em que aquela imagem voltasse para atormentá-la. Por agora, só lhe interessava o fato de que estavam todos bem… todos vivos. Suas amigas estavam com ela, e aquele gelo adorável que despencava do céu era estranhamente caloroso para seu coração. -A neve é… realmente algo muito bonito…

 

 

Um pouco mais afastados, Iris, Nicolas, Alberich e Aldeon se reuniam. O último ergueu as mãos para receber a cabeça de Cassandra da semi-fada e calculou que a neve já havia coberto o resto de seu corpo destruído. -Abra os olhos, Cassie. Eu sei que estás acordada. Já tiveste tempo o bastante para concertar seu belo cérebro.

Os outros três viram, sem muita surpresa, a deusa abrir seus olhos escuros. Ela piscou-os algumas vezes, fitando-os com tranquilidade, e então som começou a sair de seus lábios. Parecia murmurar apenas por magia ou talvez, telepatia, já que não tinha órgãos para facilitar a fala humana.

—Eis que chegamos a este fim, então.

—Você está arrependida, Cassandra? -questionou Nicolas, estreitando os olhos. Era uma visão desagradável observar aquela deusa, tão poderosa, que um dia fora aliada deles, naquele estado.

—Não… perdoem-me, porém não posso me arrepender do que foi feito, pois foi necessário. Contudo, eu me arrependo de ter perdido minha calma convosco. Foi estúpido e infantil de minha parte, e meu estado atual é fruto disso…

—Foi por isso que não se regenerou completamente ainda? -perguntou Iris. A cabeça piscou uma vez, como se fosse um aceno afirmativo.

—Sim. Eu lhes disse… que sacrifício era necessário. Esta batalha, terminou. Não há mais nada a ser feito, e devo pagar pelos crimes cometidos nesta dimensão, já que foi aqui que decidi viver.

—Você não vai dizer o motivo para ter feito tudo isso contra nós, que éramos seus companheiros, seus amigos? -questionou por sua vez Alberich. Ele não parecia gostar daquela conversa.

—O futuro. É o máximo que posso dizer, por agora. Eu ainda os amo, do meu próprio jeito… mas compreendo que, para vós, que sois mortais, não há perdão para uma traidora.

—Nós eramos amigos, Cassie. Seja lá o que tinha em mente, o que está por vir… espero ter valido a perca de nosso carinho. -Iris proferiu com um tom de tristeza, jogando os cabelos para trás.

—Eu espero que tenha, de fato… mas se valerá ou não, apenas o próprio futuro dirá. -ela voltou a fechar os olhos, e então calou-se completamente.

Nicolas balançou a cabeça, suspirando, e juntou as mãos em frente ao corpo. -Em nome do Imperador de Diamond, que já não vive entre nós, e do próximo que o substituirá, eu, Nicolas Black, o atual Senhor do Palácio de Granito, a julgo culpada de traição. Sua sentença é ser trancafiada nas masmorras, por toda eternidade, até que a culpa corroa sua alma.

—Que assim seja. -a cabeça murmurou, de maneira conformada. E não disse mais coisa alguma, mesmo depois de seu corpo ter sido, por fim, regenerado, e levado para as profundezas do Palácio, onde sua única companhia era uma janela e a luz do sol e da lua…

 

   

 

Aqueles que ficaram em Vadolfer demoraram mais um dia para serem movidos para a capital. Foi dado um lar para aos poucos que haviam sobrevivido… os piratas do Diamante Negro foram recompensados. Kensuke e Kit se reencontraram, como o esperado, trocando juras de amor eterno e garantindo que nunca mais se separariam de novo (o que não demoraria muito para acontecer, mas não é justo julgá-los pelo emprego que assumiram).

Mitaray e Hiei remendaram mais uma vez suas feridas na alma, e saíram em uma viagem no final daquela mesma noite. E ninguém questionou a decisão, todos já sabendo para onde eles iriam, e que voltariam quando pudessem – e nem demorou tanto assim, afinal a Morte é uma mestra atarefada.

Kira, ignorando os ferimentos, bebeu tudo o que lhe foi possível e mais um pouco, e sofreu as consequências da ressaca por, pelo menos, dois dias. Se perguntassem a ela, dificilmente diria que estava arrependida. Crós despertou de seu esgotamento dois dias mais tarde.

Ele ficou sabendo de todas as notícias de antemão.

A prisão de Cassandra, ainda que fosse algo dedutível, o impressionou bastante. E, naquela noite em especial, ele pediu permissão a Nicolas para ir vê-la. Sob a promessa de que não a libertaria sob nenhum pretexto. Claro que, ela não queria sair mesmo, de qualquer forma…

Ele encontrou-a resignada, pacífica e sentada no piso de mármore negro que revestia as celas. Apesar do divã que fora colocado para questão de acomodação, e da estante gigantesca de livros no fundo do pequeno quarto, as grossas e pesadas correntes anti-magia que usava demonstravam bem que aquela não era uma sala de estar, no fim das contas.

—Cassie…

—Ah… eu imaginava que não tardaria a vir.

Ela ergueu seus olhos escuros para ele, abrindo um sorriso um tanto quanto melancólico. -Isso é desagradável.

—Minha companhia a incomoda tanto, agora?

—Na verdade, sim. -Ela levantou-se, as correntes tilintando enquanto andava em direção as grades. Segurou as barras, observando-o bem de perto. Não me pareces muito bem…

—Devo isso a um dos seus queridos soldados, lady.

—Ah. Creio que tenha lidado bem com ele, mesmo assim. -estreitou minimamente os olhos, inclinando um pouco a cabeça, sem deixar de fitá-lo. -Isso é… muito frustrante.

—O fato de não ter conseguido me matar depois de tantas tentativas?

—O fato de ser a única criatura nessa terra que faz com que eu realmente me sinta culpada.

—Você não dirá o porquê? Nem a mim?

Ela negou com a cabeça, firmemente. -Não cabe a mim.

—Haradja já caiu.

—Haradja nunca foi a razão principal. Ela era apenas uma criança… uma criança confusa. Veja bem, Mestre Feiticeiro… eu apenas preparei o terreno para o que virá.

—E o que está vindo, afinal? -Crós insistiu, notando que a outra parecia repentinamente incomodada com algo. Ela desviou o olhar para o teto.

—Eu não posso dizer. -e depois repetiu, na sua habitual voz melodiosa. -Não cabe a mim. Não insista nessa questão. Mas, eu posso dizer apenas poucas coisas: que esta batalha foi necessária, e que o que está por vir é muito pior do que qualquer imortal louco… as engrenagens do destino já começaram a girar, e quanto antes precaverem-se, melhor.

Crós suspirou, levando a mão a testa para jogar seus cabelos para trás. As orelhas de gato mexeram-se incomodamente. -Você não ajuda em nada se falar por enigmas, sabe disso?

—Eu sei. Mas sobre ela eu não posso falar. É como uma maldita invocação mágica. -ela juntou as pontas dos dedos. -Procure Kairos.

—Kairos… o imortal? O pai de…

—Sim. Encontre Kairos, e ele poderá explicar mais do que a mim, que só conheço os planos superficiais.

—Mas ele está perdido, desaparecido desde quando Haradja perdeu a sanidade.

—É porque ele não se encontra em Diamond, no momento. Ele está fora. Está preparando-se, aguardando… ele não pode retornar, pois seria problemático. Para nós, quero dizer… não para ele, obviamente. -Suas mãos atravessaram as fendas entre as grades, e ela segurou os pulsos dele com insistência. -Se está tão temeroso, é a ele que precisa recorrer. Afirmo, contudo, que Kairos, só pode ser achado por quem ele deseja encontrar.

—Isso não me adianta de muita coisa, mais uma vez. Você está fazendo isso de propósito, está tentando me enganar? -o mago abriu um sorriso amargurado.

—A fase de enganos passou. Atualmente, eu não farei nada que cause mal a qualquer criatura que seja deste mundo. Inclusive e principalmente a ti. -agora ela subiu suas mãos, passando pelo braço e finalmente chegou a cabeça. Trouxe-o um pouco mais para perto, de maneira que ficasse próximo das grades, e pelo vão ela tocou com simplicidade a testa dele com a sua. Era óbvio que aquela grade não a seguraria se Cassandra deseja-se fugir.

—Essa é a hora que você para de enrolar e pede desculpas?

—Perdoe-me, Crós. Embora eu saiba que não possas fazer isso por hora.

—Não…. Infelizmente, eu realmente não posso.

—Eu já esperava essa resposta, de qualquer forma. -Soltou-o, retirando-se para as profundezas da cela novamente. -Ainda assim, eu sou imortal. Aprendi a ser paciente. Desejo que, em uma próxima vez que eu lhe pergunte, a resposta seja diferente.

—Quem sabe o que o destino pode reservar? -ele deu de ombros com suavidade, e puxou o próprio capuz para cobrir o rosto. -Até breve, Cassie.

—Até breve, Crós.

A última coisa que ele viu dela foi a silhueta pálida sentada no divã, os olhos escuros fitando-o com aquela intensidade habitual. E já sabia que o “até breve” de ambos duraria muito tempo para suceder-se.

 

E então, chegou o grande dia.

Aquele pelo qual todos estavam à espera:

A coroação do novo Imperador…


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