Kit Black: Viajantes De Mundos escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 30
O novo amanhecer aguarda aqueles que o merecem


Notas iniciais do capítulo

Último capítulo. Espero que lhe agrade. :3



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Demoraram exatamente dois meses desde o cerco à Sybelle, para que a cerimônia de coroação do novo imperador finalmente sucede-se. Durante esse tempo, os quatro deuses uniram esforços para reconstruir o que havia sido destruído por Haradja. Nicolas manteve-se no comando das decisões, como lhe competia por ser a segunda autoridade mais importante do Reino.

Algumas coisas foram salvas. Outras se perderam completamente. E ainda havia aquelas que nunca poderiam ser substituídas. A lista de responsabilidades era grande, e parecia não terminar nunca. Mas Diamond sobreviveria a catástrofe, afinal. Mesmo com ocasionais incidentes envolvendo demônios ou mercenários, o Reino parecia ter conquistado um estado de paz.

Agora boa parte dos habitantes se acumulava nas ruas da Capital, enquanto os mais nobres esperavam pacientemente no Salão do Trono, dentro do Palácio de Granito. Neste se reuniam cinco assentos, quatro pertencentes aos deuses, meramente simbólicos, já que estes mantinham-se normalmente em seus próprios reinos, e o central, dedicado ao Imperador de Diamond e temporariamente vazio.

Os quatro deuses já estavam reunidos nos seus próprios: Seres com seus modos absolutamente tranquilos e recatados, com as pernas cruzadas e o vestido simples e branco tampando boa parte das mesmas; Reidh despojado como era esperado dele, sentado de péssimo jeito e apoiando o queixo numa das mãos, cujo cotovelo estava fincado no braço do seu trono. Ele parecia francamente incomodado com o fato de não conseguir achar uma posição confortável para suas asas alvas.

Hera sentava-se diretamente a sua direita, atravessada no trono, de maneira que seus braços e cabeça ficavam jogados para um lado e as pernas para o oposto, pendendo no ar. Suas asas pareciam ficar menos doloridas naquela posição, e ocasionalmente ela jogava a cabeça ainda mais para trás, observando um Reidh entediado de cabeça para baixo, e estendia uma das mãos para arrancar-lhe uma pena qualquer de suas asas, recebendo um protesto irritado de volta.

Fowkes, com seu humor detestável característico, empoleirava-se no encosto do quarto trono, irradiando sua aura de calor, o que mantinha a maior parte dos convidados afastados. Inclusive seus próprios irmãos.

—Sabe, é nesses instantes que eu gostaria muito que você tivesse uma forma humana… -Reidh estapeou pela enésima vez a mão de Hera, voltando sua atenção para o deus do fogo. -Você tem noção do quanto está abafado aqui dentro?

—Se você tem problema com o calor, faça uma brisa ou algo que o valha. -A deusa da terra alegou do seu lado, arrancando uma de suas penas e fazendo o parceiro estremecer. -E também, não lembro de tê-lo visto fazer nada de realmente relevante nos últimos dias, além de fazer o papel de deus da fofoca…

—Pare com isso, maldição! E é deus dos rumores! E… e você está me chamando de inútil!?

Seres fechou os olhos momentaneamente, com um sorriso conformado nos lábios. Juntar todos eles num mesmo recinto era a receita certa para o desastre. Quando a situação pedia uma postura mais madura, seus irmãos até conseguiam mantê-la, mas normalmente Fowkes era um irado antissocial, Reidh um preguiçoso entediado e Hera uma implicante superanimada. E a deusa da água gostava das coisas daquele jeito.

Seus pensamentos voltaram mais uma vez para um quinto trono divino que deveria haver no local. O quinto deus que deveria estar na cerimônia de coroação, Ajax, a divindade das trevas, a muito fora aprisionado, fadado a descansar na escuridão cega e solitária a qual lhe cabia cuidar.

Ela afastou algumas lembranças que poderiam deixá-la nostálgica. Aquele dia era de celebração. Era para mostrar que Diamond estava firme e forte, e seus deuses dispostos a apoiar todos os cidadãos maculados pela passagem de Haradja. Era para colocar no trono um novo Imperador, bom e justo, como era o anterior.

Silenciosamente, seus olhos azuis focaram cada um naquela sala. Todos os membros do Palácio de Granito e da Guarda Imperial. Os integrantes da Equipe Black, vários aristocratas, três piratas a um canto afastado do salão, cuja ajuda fora essencial. Eles se reuniam no imenso salão principal, uma tensão palpável começando a crescer. A deusa bateu três vezes as palmas uma contra a outra, com lentidão, levantando-se de seu assento. Isso foi o suficiente para que a breve disputa entre os outros três cessasse, e eles se colocassem de pé imediatamente.

—Nós, os deuses de Diamond, damos as boas vindas a todos que aqui se encontram. É hora de iniciarmos a cerimônia para levar ao trono um novo imperador. Rezemos pela alma justa e bondosa de Erom, para que ela ocupe seu lugar de direito nas Terras Além da Morte.

Houve um minuto de silêncio respeitoso, antes que Hera inspirasse lentamente e tomasse a palavra. -Estamos cientes de que isso é apenas mais um passo para a recuperação do nosso Reino. Como todos devem saber, o Imperador é o pilar que liga o divino ao mundano, nosso representante direto sobre Diamond. Seu dever para com os habitantes e para conosco é sagrado.

—Ele deverá permanecer no Palácio de Granito como o símbolo e potência que assumiu, até que a Morte o leve. De forma alguma deverá deixar este recinto, a menos que a situação seja urgente. -Reidh, que começara a falar em seguida, fez uma pausa momentânea para tentar se lembrar do resto. -Como o pilar de energia que sustenta nosso mundo, este é seu dever, assim como cuidar, respeitar e honrar toda raça e criatura que aqui se encontra e que tenha a vontade de viver em paz, dos humanos aos demônios.

“É sabido, também, que o Senhor do Palácio de Granito está logo abaixo na hierarquia, e que por conveniência, ele sempre é o candidato mais adequado para tomar o lugar do Imperador.” A voz poderosa de Fowkes ressoou na mente dos presentes, e os olhos voltaram-se imediatamente para Nicolas, um vulto calado e paciente, encostado aos pés do trono do Imperador. Ele pareceu estremecer ligeiramente, sinal de que o assunto deixava-o inquieto. Contudo, nada respondeu, mantendo-se parado.

—Nicolas… -Seres retomou a palavra, piscando lentamente seus olhos de um azul profundo enquanto fitava-o. -Por sua procedência, pelo sangue que corre em suas veias, por sua lealdade e pela confiança que transmite, és nosso candidato ideal para assumir o manto de Imperador.

O rapaz ficou em silêncio. Seus lábios mexeram-se brevemente, no que poderia ser uma careta de “nada a se fazer”, e ele forçou-se a se levantar. Ergueu seu olhar para observar os amigos reunidos entre a multidão que assistia e fechou os olhos, sorrindo com certa timidez. -Isso soará um tanto quanto prepotente, mas devo afirmar que não posso aceitar essas condições.

Ele conseguiu ouvir o burburinho que se seguiu e reabriu as pálpebras, verificando a reação dos deuses. Os quatro permaneciam em silêncio. Ele conseguia sentir o instinto feroz de Fowkes, a preocupação da parte de Reidh, a confusão em Hera e a compreensão de Seres. Ainda assim, sabia que o que pedia era inútil. -Eu não desejo esse posto. Não julgo ter opinião relevante nessa questão… apenas sei que sou incapaz de assumi-lo a contento. -ele esqueceu-se completamente de todas as pessoas que haviam ali, levando seu apelo apenas as divindades a sua frente.

—A muito tempo, decidi que lutaria a favor do Reino, quais batalhas fossem necessárias… ao fazer isso, acabei negligenciando a única família que eu tinha. Pode parecer egoísmo, mas quero poder recuperar esses dias perdidos. Atualmente, este é o foco do meu empenho, assim como reconstruir o que foi destruído por minha irmã. - ele estreitou os olhos nesse momento, o corpo tremendo ligeiramente ao mencionar Haradja. -Um imperador que se preze precisa ser estável e pensar sempre no melhor para o povo em geral. Não creio que posso fazer isso. Eu lamento.

—Não há mais ninguém, Nicolas. -Seres estava realmente triste ao dizer aquilo, como se lhe doesse profundamente. -Por favor, reconsidere…

—Se me ordenas que faça tal coisa, majestade, eu o farei. Mas não pode pedir-me para ficar feliz ou honrado por isso. -ele respondeu, sem querer ser subversivo. Era a mais pura sinceridade, carregada de respeito por aqueles deuses que amava, mas que não podia contentar.

Kit observava em silêncio toda aquela situação, sentindo-se cada vez mais ansiosa. Ela ouvia vagamente a conversa dos outros integrantes da equipe a sua volta, cochichando uns com os outros.

—Oh, deuses, ele realmente fez… -era a voz de Hiei, transmitindo principalmente choque.

—Ele pode negar isso… assim? -Cloe questionou, inquieta, para ninguém em particular.

—Teoricamente, não. Nunca ouvi nada sobre alguém ter recusado o cargo de Imperador antes. -Mitaray respondeu.

—Nicolas está brincando com fogo. -Crós alegou de seu lado. -A maior parte dos deuses pode ser bem paciente, mas Fowkes não está entre ela…

Iris permanecia calada ao seu lado, mordendo o próprio lábio inferior. Acabou se machucando de verdade com o comentário posterior do feiticeiro. -… do jeito que é instável, pode muito bem queimá-lo por desacato…

“Ele está fazendo isso por mim…” a jovem pensou, como se a ideia só viesse em sua mente naquele instante. “Por nós. Se… se ele morresse por algo assim, eu…”

Uma tremedeira perpassou por seu corpo, fazendo Kensuke, que mantinha sua mão direita segurando a dela, dar-lhe atenção. -Kit… você está bem?

—Espere um minuto, eu… tenho que ir até lá. -sem pensar muito no que estava fazendo, soltou-se da mão dele e dirigiu-se para mais perto dos tronos, passando por meio de várias criaturas de raças distintas, que ao reconhecerem a pequena chamada de “Salvadora de Diamond” logo lhe davam passagem. Quando conseguiu emergir da massa de pessoas, chamando temporariamente a atenção para si mesma, ergueu uma mão no ar e balançou-a. -Eu… eu posso falar?

Ela sentiu mais uma vez vários olhos encarando-a, inclusive os deuses e o próprio irmão. Engoliu em seco, o rubor subindo por seu rosto. Nunca gostara de ser o centro das atenções, fazia com que se sentisse deslocada no resto do mundo, como uma entidade suprema, que sabia não ser.

—Ei, Gatinha-meio-a-meio, você não está… -Reidh ia dizendo, antes de receber uma cotovelada nas costelas de Hera e gemer de dor.

—Fique quieto para variar! Seres?

A deusa da água estreitou os olhos e suspirou, afirmando levemente com a cabeça. -Aproxime-se, Kit Black. Já que é graças a ti que estamos tendo esse momento hoje, não vejo porque não deve se manifestar.

Ela já estava tão nervosa que suas orelhas de gato subiam e desciam a cada minuto e a calda chicoteava de um lado para o outro. Na verdade, mal sabia quando havia se transformado, para começo de conversa. Tentou ignorar os olhares, principalmente do irmão, que parecia tão confuso quanto todos os outros, e andou mais alguns passos, aproximando-se dos tronos.

“O que eu vou dizer?”

As orelhas abaixaram de vez e engoliu saliva, entreabrindo os lábios uma vez, duas vezes, três vezes, sem dizer coisa alguma. Então, algo veio a sua cabeça e, com toda a seriedade que poderia usar, afirmou. -Nós somos como gatos.

Um silêncio constrangido percorreu o local, enquanto os mil pares de olhos passaram a vê-la com certa descrença. Reidh quebrou-o ao cair na gargalhada e dobrar o corpo para frente, passando os braços pelo estômago. -Ah… eu realmente adoro essa garota. -antes de ser acertado uma segunda vez por Hera. -Ei, pare de me bater!

“Essa criança não sabe do que está falando.” a voz de Fowkes ribombou com seu tom irado de sempre, prova que sua paciência estava esgotando-se. “Seres, como consegue levá-la a sério?”.

—Mas estou falando sério… -ela alegou, mantendo sua expressão concentrada. -Gatos são independentes. Eles não gostam de se sentir presos. Podem parecer criaturas egoístas, mas sempre acabam retornando para casa, por mais que escapem de nossos olhos. O que quero dizer é que… meu irmão… -e trocou um olhar com Nicolas. -É como um gato. Se o prenderem aqui, ele só poderá se sentir descontente. Eu desconheço a importância real do Imperador para Diamond, e não vou questioná-la de maneira nenhuma, mas… eu lhes peço, não tirem essa liberdade que ele acabou de conquistar.

Uma onda de vozes ameaçou subir e foi estancada por um gesto de Seres para a multidão que esperava. Ela virou a cabeça para o lado na esperança que seu olhar cala-se Fowkes e desceu-a novamente para fitar Kit. -Podes me responder algo, filha de Kairos?

Ao ouvir o nome do pai, Kit ficou tentada a recuar. Apesar de ter uma fama abrangente, Kairos não era muito mencionado nas conversas. Era como uma criatura lendária, que desapareceu a tempos e nunca mais teve-se notícias dela. -Eu… creio que sim.

—Por que vieste até nós?

Kit abaixou desta vez a calda também, fitando o piso. -Porque me foi pedido.

—Ou seja… era o que seu destino ditava, certo?

—Sim… e eu obedeci.

—E prendeste sua irmã, apesar de não querer realmente, pois era necessário, correto?

—Sim… -ela encolheu-se, abraçando o próprio corpo, mas depois reergueu a cabeça. -Mas… não foi apenas isso. -ela voltou a entreabrir os lábios e respirou profundamente, antes de continuar, esquecendo parcialmente de seus receios e dúvidas. -No começo, eu realmente não queria. Eu estava perdida, e não sabia o que fazer, como agir ou o que pensar. Eu estava morrendo de medo e, ainda assim… -ela desviou o olhar para trás, sem poder ver muito dos perfis dos amigos que fizera durante todo o tempo que batalhara. -Haviam pessoas amáveis para me incentivar. Eu passei a amá-las e a desejar cuidar delas como cuidaram de mim. Eu realmente… realmente comecei a amar esse mundo e, quando me dei conta disso, decidi que faria o possível para fazer todos que vivem aqui felizes.

“É um pouco inocente da sua parte querer proteger a felicidade de todos, sozinha…” A voz de Fowkes voltou a surgir.

Ela girou novamente a cabeça, focalizando Nicolas, e depois os deuses. -Mas eu não estou sozinha. E na verdade, o que quero dizer com isso é que não faria sentido eu tentar salvar todos e no fim meu próprio irmão continuar infeliz… isso seria apenas um milagre vazio.

—Um milagre vazio que se despedaça e desaparece. -entoou a deusa para si mesma. -Ainda assim, precisamos de um Imperador.

—Nesse caso. -ouviu-se uma voz familiar no meio da multidão, e uma pessoa abriu caminho, assim como Kit, para o altar dos tronos. -E se eu me oferecer para ficar no lugar de meu aprendiz um tanto quanto estúpido?

—Aldeon? -um coro de vozes questionou. A garota deu um passo para o lado para deixá-lo passar, ficando mais perto do irmão e tateando no ar para poder segurar a mão dele.

—Não se preocupe, vai dar tudo certo. -sossobrou para ele.

—De qualquer forma… obrigado por tentar, irmãzinha.

Ela apenas sorriu-lhe de canto, murmurando palavras otimistas. Voltou-se para a figura de Aldeon, que agora era o centro das atenções, com seus calorosos olhos azuis-gelo e o cabelo ruivo que começava a esbranquecer. Sua espada estava cuidadosamente embainhada, impossibilitando qualquer um de ver sua cor. O homem fez uma mesura contida em direção aos Deuses, pousando a mão na empunhadura da Dente de Dragão. -É claro… se isso for possível, Majestades.

Os quatro Deuses entreolharam-se em silêncio. Pesando a proposta mentalmente, como num debate particular, mantiveram esse clima de conclave por algum tempo, antes de Fowkes sacudir vigorosamente suas asas, prova de que estava cansado de discutir ou simplesmente pouco se importava com a decisão dos outros. “Que assim seja, então.”

—Nos aceitaremos Aldeon como Imperador, por todo o seu valor e seu trabalho inconstante. -Seres fechou os olhos límpidos por um segundo, enquanto seu corpo voltava a girar em direção àqueles que esperavam. -Com uma condição.

Reidh manteve-se calado, coçando levemente a bochecha, com certo desagrado que só aparecia quando as coisas não saiam do jeito que queria. Ainda assim, parecia tão despreocupado que a notícia que viria não deveria ser assim tão ruim. Vendo sua relutância – ou melhor dizendo, pura negação – em continuar o diálogo, Hera apressou-se em proclamar a condição requerida. -A partir do momento que Aldeon morrer, Nicolas tomará seu lugar, automaticamente. -Ela levou a mão a boca, rindo sutilmente. -Considerando o quão durão nosso Cavaleiro pode ser, creio que seja uma consideração justa.

Nicolas uniu as sobrancelhas por um tempo, sorrindo de canto e abaixando a cabeça em sinal de agradecimento. -É justo. -Sem levantar a cabeça, girou-a para que conseguisse vislumbrar Aldeon, ainda ao seu lado. -Mestre… tem certeza disso?

—Quando me viste fazer algo do qual não tivesse certeza? -Aldeon levantou uma sobrancelha, com seu habitual sorriso compreensivo nos lábios. -Agora, não me entenda mal… não é apenas por ti, é por mim mesmo também. Então não precisa ficar sentindo-se culpado no futuro.

—Temos um acordo? -Questionou Seres. Ela via com o canto dos olhos que Hera e Reidh já estavam com a mente completamente dispersa e mantê-los atentos por mais tempo era impossível.

Mestre e aprendiz trocaram um único olhar e depois a observaram, afirmando com a cabeça. -Sim, temos.

—Nesse caso… -a Deusa emprumou-se, e Nicolas soltou momentaneamente a mão de Kit, fazendo um sinal sutil para que ela se afastasse, afinal a solenidade continuaria, e todos deveriam retornar a seus lugares. A garota sorriu mais uma vez para ele, dando meia volta e embrenhando-se em meio a multidão outra vez para que conseguisse chegar aonde os amigos estavam.

Um misto de aprovação e descrença apareceram naqueles olhares quando conseguiu se por no meio deles novamente. Sentiu Kensuke enlaçá-la com os braços, enquanto bagunçava seus cabelos com a ponta dos dedos de sua mão direita. -Putz… mas você não consegue falar coisa com coisa nem quando a situação é crítica.

—Mas funcionou, é isso que importa. -Ela fez uma careta, cruzando os braços, fixando sua atenção nos deuses. Nicolas voltara para sua posição à direita do trono central, juntando as mãos em frente ao corpo e abaixando respeitosamente a cabeça. Aldeon adiantou-se, e os quatro deuses colocaram-se de frente para ele, estendendo suas mãos em direção a sua cabeça. Fowkes precisou estender, logicamente, sua asa, o que fez uma onda de calor passar pelo local.

—Eu lhe inspiro paciência, para que seu reinado seja livre de desentendimentos e seja límpido como a água pura. -Seres iniciou o ritual, e da ponta de seus dedos surgiu um filamento azulado, que assentou-se sobre os cabelos dele, como a marcação para uma coroa.

—Eu lhe inspiro dedicação, para que seu reinado nunca se torne frio e estéril como um solo desprezado. - Hera murmurou, e o mesmo aconteceu. Agora o fio era amarelado, e transformou-se na base dourada do acessório, reluzindo mansamente sob as luzes do salão.

—Eu lhe inspiro a confiança, para que seu reinado não pereça por mentes duvidosas e seja forte como o vento de inverno. -Dos dedos de Reidh saiu um fio que mais parecia brisa, moldando cristais transparentes nas pontas da coroa.

—Eu lhe inspiro a perseverança, para que seu reinado não caia mesmo se for abatido por todos os males, assim como o fogo no coração do mundo nunca se apaga. -Uma lufada de ar quente perpassou a sala inteira, e uma pedra vermelha, maior que as outras, encrustou-se no meio da Joia Real. Logo abaixo desta, porém, um espaço permaneceu vazio, como se faltasse ainda uma benção. Independente disso, a Deusa da Água ergueu novamente sua voz: -É com prazer que nós, Deuses, apresentamos o novo Imperador de Diamond. Que seu reinado seja longo e próspero. Que a esperança nunca nos abandone.

—Eu darei esperanças àqueles que não a tem. Até o fim o mundo, e quando ele se despedaçar… eu protegerei a felicidade de cada criatura que aqui viver, e se tudo falhar, darei minha vida de bom grado pela perpetuação de Diamond. -Disse o novo Imperador, então, virando-se para o povo que observava-o em silêncio. Bateu com força o punho no próprio peito. -Vocês estarão comigo?

Houve silêncio por um tempo, e de alguma forma, dezenas de punhos bateram no peito ao mesmo tempo, produzindo um só som. -Até o fim!

E poderiam jurar que, naquele mesmo instante, os próprios deuses manifestavam a mesma oração. Se seus olhos pudessem desviar da figura radiante e impressionável do Imperador, poderiam ver três mãos e uma asa sobre a frente dos próprios corpos. E lábios que se moviam.

Uma paz indescritível desceu sobre todos os presentes, e em todo o Reino. Os seres que apoiavam o Imperador ficaram em silêncio respeitoso. Aqueles que estavam a sombra do mundo, esperando para atacarem, contudo, apenas murmuraram entre si palavras de desdém.

 

Em algum lugar, no limbo entre mundos, onde só prevalecia escuridão e silêncio, havia alguém que estava a muito tempo dormindo. Mesmo imerso em sua própria solidão, sentiu aquilo também. Aquela sensação, da origem de um novo pilar humano para sustentar Diamond, nunca chamava sua atenção, jamais havia despertado-o… não nos últimos milhares de anos, quando cansara do vazio e decidira vagar em sonhos para sobreviver ao tédio.

Não que realmente precisasse, afinal era imortal. Mas a ira cega o corroía com tanta força que achara melhor tomar uma providência.

Pela primeira vez em anos, Ajax, o Deus das Trevas, abriu seus olhos para observar o mais completo negro. Na verdade, o ato era inútil… não havia ninguém par vê-lo, e no fim ele não enxergaria nada, pois não existia coisa alguma para se ver. Ainda assim, sua mente se inquietara. Lembrara-se da traição de seus irmãos, do motivo de estar selado a tantas eras, vendo o tempo passar por capricho.

Assim como soube que havia um novo imperador em Diamond, também descobriu que estava mais próximo de ser libertado do que nunca. Instinto? Pressentimento? Não sabia dizer. O que sabia era que logo, logo estaria livre.

E alguém pagaria pelos anos que ficara preso no escuro, da pior forma que pudesse conceber…

 

Paralelamente, nos Campos da Morte, a própria deixara Aaron e companhia refletindo sobre os últimos acontecimentos, ainda em comunhão com Diamond, aparentemente, de forma que a sensação de bem-estar chegou até eles também.

Nos meses que se passaram muito foi aprendido por todos eles, e até mesmo Aaron, que jamais perdoara Nicolas por tê-los abandonado, acabara por perceber que tivera seus motivos para ter feito aquilo. Depois de mais algum tempo, a entidade poderia mandá-los para a reencarnação sem maiores preocupações.

A ideia de uma vida nova, começada do zero e sem memórias, não parecia incomodá-los. Pandora parecia contente com o fato de que poderia enxergar – mesmo que isso não tivesse sido confirmado – e Dayana deixara claro que não importava, desde que estivessem juntos.

Dave, com seu habitual bom humor e o corpo maior ainda, nem estava pensando sobre essas coisas, ao passo que sua esposa, Taylor, simplesmente dera de ombros e decidira deixar esse tipo de questão para mais tarde. E com “mais tarde”, quero dizer que definitivamente ela não pensaria nesse assunto.

Morte caminhou silenciosamente sobre os prados de um verde brilhante, e continuou caminhando apenas, na posição oposta de onde estaria a divisão de estradas para o Céu e para o Inferno. Seus olhos escuros, repletos de profunda sabedoria, talvez fossem os únicos que poderiam saber o que acontecera e o que estava por vir, minuciosamente.

Agora uma névoa fina beijava sua pele, como atraída diretamente para ela. Com o canto dos olhos, pôde ver árvores distorcidas e algo muito semelhante a uma mesa de xadrez. Não deu atenção àquilo, mas sim manteve-a à sua frente, onde se desdobrava um cenário completamente diferente do que deixara para trás. Era tecnológico demais, na verdade parecia unir tanto máquinas como magia.

Um aposento amplo repleto de cabos grossos, com inúmeras borboletas douradas bailando à volta de um tubo com o tamanho de um humano adulto. Ele estava cheio de alguma substância igualmente dourada, que não se poderia definir como líquida ou sólida.

Tudo: cabos, borboletas, alguns fios de emanações que subiam do chão de metal, conectavam-se ao tubo. Para Morte, estava tudo como deveria… até ela ver que o artefato começava a trincar. Aquilo a deixou curiosa, quase incomodada. As rachaduras, contudo, só aumentavam, e ela postou-se bem a frente do aparelho, estendendo a mão como se fosse segurar algo grande que seria jogado, a qualquer momento, em sua direção.

De fato, quando o material transparente que formava o tubo quebrou-se de vez, espalhando cacos para todos os lados e liberando a substância dourada, que subiu e desvaneceu-se em pleno ar, um corpo caiu para frente, sendo amparado pelos braços da entidade.

Seu dono, sem sombra de dúvida, havia sofrido bastante nas mãos de algum algoz. Havia cicatrizes horrorosas em suas costas, marcando a pele morena. Os cabelos escuros, da cor do chocolate, eram compridos até os ombros, e do jeito que caiam podiam esconder a ruína que era a parte direita de seu rosto. Na verdade, o lado direito de seu corpo havia sido parcialmente perdido. O braço e a perna que deveriam estar ali foram substituídos por próteses de material desconhecido, em tom escuro. Provavelmente, o olho daquele lado também fora perdido.

Um pouco confuso, o rapaz recém-desperto entreabriu o único olho bom e franziu as sobrancelhas. Não sentia dor alguma, e as suas últimas memórias diziam-lhe que aquilo estava errado. Então ergueu a cabeça para fitar quem o segurara e uma lágrima escorreu pelo lado esquerdo. -Mestra?

—Dormiu por um bom tempo, Ézio. -Morte o saudou, com um misto de tranquilidade e entusiasmo mal disfarçado. -Seja bem-vindo de volta à consciência.

—E Hiei… Mitaray? O que houve com…

—Poupe sua mente por um tempo. Logo lhe direi tudo o que deve saber. -Ela levantou-se, ajudando-o a fazer o mesmo. Não parecia ter problemas em andar com a perna postiça, nem em mexer o braço artificial. Ela retirou o manto que sempre utilizava por cima das vestes, revelando um vestido longo e de mangas compridas por baixo. Passou a capa pelas costas dele para proteger sua nudez e fez um sinal com a cabeça para a direção que viera. A névoa, mais uma vez, aproximou-se, como se viesse a seu chamado, envolvendo-os. -Alegre-se, meu querido caçador. É para um mundo em paz que irei devolvê-lo. Tenha paciência.

Ainda que ela própria tenha dito essas palavras, algo pareceu errado. Paz… Diamond era um Reino em paz agora, certo? Ou melhor, era mais fácil supor que estava em paz por enquanto. Afastou os receios da própria consciência para que não fizessem mal ao servo que guiava. Teria tempo de sobra para raciocinar sobre aquilo.

Por hora, relaxaria apenas um pouco imaginando essa tão proclamada paz. E a saborearia, até que precisasse planejar uma vez mais.

 

No Salão Principal do Palácio de Granito, o tom respeitoso foi aos poucos se extinguindo para dar lugar as festividades propriamente ditas. Os grandes portões foram abertos, e a multidão que se concentrava dentro do edifício foi aos poucos escoando para fora, reunindo-se com os que já estavam na praça do centro. Um grupo composto por híbridos havia subido num tipo de palco previamente preparado e agora começavam a tocar uma balada alegre, usando flautas, um alaúde e tambores.

Por último, os deuses e o Imperador pararam nos degraus do Palácio, absorvendo a cena de alegria contagiante. Fowkes, impaciente como de praxe, bateu as asas e despediu-se sem muita cortesia, retirando-se para algum de seus quentes refúgios, mais possivelmente para a cidade dos dragões, onde humanos não eram admitidos.

Seres, com a serenidade que lhe era própria, fez uma mesura respeitosa para os acompanhantes e despediu-se, desfazendo em uma miríade de gotas, visando retornar para a reconstrução da Cidade das Águas. A praça ainda era considerada limite do Palácio, então Aldeon também pôde descer as escadas e se embrenhar em meio aos súditos, com a ideia de se divertir pelo menos um pouco.

Reidh levou os braços para trás da cabeça, assobiando suavemente, erguendo um dos pés para descer os degraus e cair na folia, como era esperado dele. -Bom… se me dá licença, eu vou dançar.

—Você nem dança bem. -Hera fez uma careta de profundo desdém, batendo as asas para chegar ao chão antes dele. -É completamente desengonçado. Que patético, para um deus de seu calibre.

—E onde que está escrito que os deuses têm que saber dançar!? -ele cruzou os braços, em seguida sorrindo de maneira zombeteira. -Que tal uma competição amigável?

—Conte-me mais. -Hera demonstrou interesse, vendo-o aproximar-se e passar por ela.

—Nós dois dançamos, alguém de fora vai julgar e quem vencer pode fazer um pedido ao perdedor.

Em resposta, ela apenas riu. -Feito. Se eu vencer, você vai ser meu escravo por um dia inteiro.

—Se eu vencer, você vai parar com isso de “Deus da Fofoca” de uma vez por todas. -Reidh retrucou rapidamente, logo após percebendo seu erro e erguendo um dedo para protestar, mas a deusa já puxava-o pela mão, na direção em que os casais rodopiavam, numa pista de dança improvisada. -Ei… Ei!!! Que papo é esse de escravo? Hera, me larga, já viu para onde estamos indo? Nossas asas vão atrapalhar! Como vamos ter um bom desempenho desse jeito?

Kit apenas seguiu-os com o olhar, franzindo o cenho com a cena. -Eles são sempre assim?

—Sempre. -Alegaram todos os mais próximos, cuja origem era aquele Reino, em conjunto, arrastando propositalmente a primeira sílaba da palavra.

—Desde que esse mundo é mundo, imagino. -Crós complementou, erguendo uma sobrancelha. Seus olhos passavam rapidamente de um lado para o outro, enquanto tirava algumas mechas do cabelo longo de frente do rosto para observar os presentes melhor.

—Gente demais para você, Senhor Feiticeiro? -Iris apoiou-se em um de seus ombros.

—Eu compreenderia se você quisesse sair daqui correndo para um lugar mais confortável. -Nicolas deu alguns tapinhas sobre seu outro ombro.

—Estou ótimo. Já podem desencostar, os dois.

—O que, mas isso é uma festa, alegre-se!

—Você está muito sisudo, vamos, dê um sorriso!

Enquanto os dois agarravam-no pelas bochechas um de cada lado para forçá-lo a abrir um sorriso, o mago resmungava algo como “infantis” e desaparecia no ar, fazendo com que desequilibrassem e quase batessem um contra o outro. -Ai…

—Pra onde ele…

—Cretino, pra isso ele consegue se teletransportar direito, né? -Retrucou Iris, endireitando-se e jogando os cabelos para trás. -Bom, tanto faz. Você não vai convidar sua noiva para uma dança? -questionou, dessa vez encarando Nicolas.

—Talvez, se minha noiva não fosse uma megera… -ele levou a mão fechada para a frente da boca, simulando uma tosse. Com o canto dos olhos viu a irmã fazer uma careta, mas preferiu ignorar. Assim como a enxurrada de xingamentos que vieram de Iris logo após suas palavras. Deu alguns passos para trás e segurou-a por ambos os ombros, fazendo com que virasse e andasse a sua frente, em direção àqueles que dançavam. -Vamos, vamos, não seja assim tão rabugenta.

—Você quer morrer agora ou depois?

Ele acenou brevemente para o grupo que deixava e continuou empurrando-a o mais delicadamente que conseguia. -Se você me matar vai incorrer na ira dos deuses, acho que isso não seria bom para ti.

—Pretensioso…

—Ora, eles finalmente reataram? -Hiei questionou, interessado, ao que Mitaray apenas deu de ombros.

—Não sei dizer. -seus olhos claros fixaram-se em Kit, que ainda fazia caretas. -Creio que eles estejam distantes o suficiente.

—Ahan. -ela afirmou com a cabeça, suspirando e deixando que o gato-preto que estava agarrado as suas costas subisse para seu ombro direito. -Você me deve uma aula decente sobre teletransporte, Salem.

—Meus ensinamentos são perfeitos, não me culpe pela sua dificuldade. -ronronou o gato, bocejando longamente, como só um felino sabe fazer.

—Não mesmo. -Um segundo coro de fez ouvir, o que fez Crós saltar diretamente para o chão, com visível mal humor.

—Bom… procurarei algo comestível. -sentou-se no chão, virando a cabeça para observar os sorrisos zombeteiros. - Que não sejam ratos. Ou peixes. Ou leite… isso não é da conta de vocês.

—Eu quero comer algo também, estou com fome. -Sacha protestou, agarrando-o para que ficasse em seus braços. -Pra onde fica a comida?

—Devem ter preparado algumas barracas por perto. -Cloe disse, usando a lógica, enquanto apontava para uma direção aleatória. -Vamos procurar por lá.

—Eu vou junto. -Hiei rapidamente se candidatou, unindo-se as duas. Mitaray abaixou o olhar para fitar Kira de esguelha, ao que ela rapidamente fechou a expressão.

—O que foi? Vamos logo… espero conseguir uma bebida também, algo bem forte. Talvez rum… aqui tem rum?

—Creio que sim, milady…

—Ótimo… então vai ser rum! -passou o braço pelo do namorado, pondo-se a andar para uma direção ainda mais aleatória do que a que Cloe indicara.

—Ela quer mesmo se embebedar a essa hora do dia? -Kit perguntou inocentemente a única pessoa que restara, Kensuke.

—Bem… é a Kira, eu não me surpreendo muito… -ele coçou a parte de trás da cabeça. Estreitou os olhos por um tempo, como se vigiasse algo em particular, mas então deu de ombros e ofereceu a mão para que ela a pegasse. -Que tal procurarmos algo banhado a chocolate?

—Isso sim é uma ideia que me agrada. -ela segurou sua mão, passando a andar ao seu lado, entrelaçando com cuidado os dedos nos dele. Os dois cruzaram a multidão. Os olhos da garota captaram muitos rostos conhecidos: Alberith com a esposa e uma criança, provavelmente a mesma que Hiei e Mitaray mencionaram no dia que entraram no Caminho da Ilusão. Mais ao longe, havia uma pequena discussão sobre qual dos deuses havia vencido o desafio de dança, e ao que parecia, Hera tinha sido a vencedora.

Os três piratas e a tripulação do Diamante Negro estavam espalhados por toda a praça, mas ela foi capaz de reconhecer os cabelos de um azul fechado e os óculos escuros de Edmond, assim como o porte obstinado de Laurent e as asas de mariposa de Lyra.

Aldeon costurava graciosamente pela pista improvisada, dançando com uma beldade desconhecida, cujos cabelos cor de fogo chamaram imediatamente a atenção de Kit. Mas por não conhecê-la de fato, passou os olhos adiante. Seu irmão e Iris bailavam com delicadeza, coisa que imaginara impossível, da forma com que viviam brigando. Achou ter visto, também, um certo feiticeiro que flertara com ela em Paris, mas logo perdera-o de vista… talvez fosse apenas imaginação.

Não fora capaz de ver os outros amigos, sinal de que deveriam seguir em direção contrária às lojas. Mesmo assim, distraída como estava, não foi capaz de comentar o fato em voz alta. Na verdade, quem quebrou o silêncio foi o rapaz ao seu lado. -E então, está satisfeita?

Ela ergueu os olhos para observá-lo, sem entender muito bem a razão da pergunta. -Se estou satisfeita?

—Sim… -Kensuke focou seus olhos a frente, para a multidão. -Você descobriu a verdade sobre seu passado, encontrou uma nova família, fez amizades, me fez ser seu namorado. -e com esse comentário ela riu por um instante. -E colocou um fim na tirania de Haradja.

—Hum… teve muitos altos e baixos nessa história mas… acho que sim, estou satisfeita.

—Ora, quando foi que ficou tão insaciável?

—Eu não sei, deve ter sido com o tempo. -Kit abriu um sorriso breve. -Ainda assim, estou feliz que todos estão bem e felizes. -logo após, porém, sua expressão tornou-se séria. -Mas… algo parece não estar em ordem.

—Algo?

—Não exatamente “algo”. Ou sim… é como sentir que existe uma coisa onde não deveria existir.

Ele franziu o senho ainda mais. -Como um fantasma?

—Mais ou menos. É um tanto caótico. Acho que Morte saberia o que é, ou talvez não.

—Você escolheu um momento estranho para lembrar de sua amiga do outro lado. -ele confessou.

—Me desculpe. -ela, por sua vez, realmente estava arrependida. -Isso é passado. Agora, só me interessa saber da vida.

Pareceu-lhe ouvir uma voz rouca e arrastada, como um eco numa caverna, contando inexoravelmente pelas fissuras do multiverso. Balançou a cabeça firmemente para se desfazer daquela impressão e segurou com mais força a mão dele. -Sim. Definitivamente, tudo vai dar certo.

Ken apenas sorriu-lhe de canto, passando a mão livre sobre seus cabelos. -Mesmo que dê tudo errado, eu estarei com você.

—Isso me deixa mais tranquila. -Kit sorriu também, encostando a cabeça no ombro dele, finalmente localizando uma das lojas, onde a maior parte dos amigos estava reunida. -Eu amo você.

—Eu também amo você. -ele desceu a cabeça para lhe dar um beijo na bochecha. -Parece que cedo ou tarde terei de ter uma longa conversa com o Nicolas e sua mãe…

—Minha mãe… -Kit visualizou a imagem de Leah em sua mente. Sua verdadeira mãe a muito havia falecido, e de seu pai ninguém tinha notícias. Independente disso, Leah sempre seria a figura maternal que viria em sua cabeça, todas as vezes.

 

Kit, Sacha e Cloe haviam retornado ao Mundo Real uns dias depois da batalha em que Haradja fora capturada. Das três, a única que mostrou preferência para manter-se naquele mundo fora a ruiva, para a qual não havia nada que a prendesse definitivamente em Diamond. Ela retornaria a sua vida normal e, esporadicamente, visitaria aquele outro mundo para encontrar os amigos e lembrar-se da boa e velha magia.

Já Cloe, que discutira com o pai tantas vezes por causa de sua decisão, alegara categoricamente que se ele não aceitasse por bem sua partida, ela iria por mal. Para ela, as coisas que podia estudar, compreender e aprender em Diamond superavam bastante àquelas do Mundo Real. No fim das contas, James cedeu ao bom senso da filha (que todos sabiam ser grande, independente de parecer insano às vezes) e liberou-a. Ficou decidido que ela iria visitá-lo pelo menos uma vez por mês, até que conseguissem estabilizar a comunicação extradimensional.

A própria Kit parecia em dúvida. Ao contrário dos gêmeos, Kira e Kensuke, ela tinha uma vida naquele mundo, tinha uma família – mesmo que fosse de apenas uma pessoa – tinha toda uma estrada traçada. Não era-lhe tão fácil decidir, embora Diamond sempre fosse seu lar em coração. Por fim, ela ouviu o dever e resolveu partir. Nunca imaginara, contudo, que a despedida de Leah seria tão dolorosa. Acabou prometendo que a visitaria sempre que fosse possível, e mesmo que implorasse para a mulher ir embora com elas, esta negou.

—A muito eu amei Diamond, a muito foi minha casa… hoje, não mais. Eu me acostumei ao normal e à vida comum. Às pessoas que vivem aqui. Mas isso não é para você, minha pequena, nunca foi… a magia corre em seu sangue. Você tem a alma de uma heroína, e aqui ela apenas apodreceria e morreria. Não… volte para casa… você tem muitos a sua espera por lá. E não se esqueça de mandar minhas saudações a Nicolas…

 

Por um instante, ao lembrar disso, Kit teve vontade de chorar. Mas aquilo também já era passado. Piscou os olhos, voltando a encarar Kensuke, ao seu lado. Uniu as sobrancelhas, em uma grande, gigantesca dúvida. -O que você quer com a minha mãe? E com Nicolas…?

A resposta dele foi colocar o dedo indicador sobre os próprios lábios. -É um segredo.

—Ora… não tem isso de segredo entre a gente, me conte!

—Eu não vou.

—Isso não tem a menor graça, você sabe que sou curiosa. Vamos, me conte.

—Mais tarde você vai saber. -riu de forma conspirativa, fazendo com que ela continuasse a andar. -Vamos encontrar seu chocolate. Falamos sobre isso depois… quando eu estiver com aquilo em mãos.

Ela fez uma careta de desagrado para aquele comentário, que logo desapareceu quando ambos encontraram-se com os outros. Fitou mais uma vez o céu, como naquele dia de neve, esperando ver algo que só ela saberia… e desceu o olhar novamente, deixando momentaneamente todos os seus problemas e preocupações de lado.

A garota que um dia morrera, que sofrera e sangrara junto daquele mundo que acabara de conhecer, agora estava mais viva do que nunca. Fosse o que fosse que o destino lhe reservasse, ela enfrentaria de frente. Como a guardiã que jurara ser, e como a heroína que haveria de se tornar.

 

Fim… por enquanto


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Notas finais do capítulo

Bem... desde já agradeço todos os que me acompanharam até aqui, fico feliz que tenham me aguentado até o fim.
Essa história em breve será reescrita (afinal faz muitos anos que a iniciei e podem notar que os primeiros capítulos são bem menos desenvolvidos que os últimos). Ainda estou pensando se postarei a segunda versão aqui.
Kit Black é uma trilogia, e este é apenas o começo da série. Espero publicá-la um dia, então me desejem sorte, okay?
Obrigada mais uma vez a todos que leram, e nos vemos por ai.
Kisses, kisses para todos ♥



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