Kit Black: Viajantes De Mundos escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 27
O cerco se fecha/Parte II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/279836/chapter/27

Enquanto a capital era sitiada, a equipe destinada a ir para Vadolfer não parecia numa situação muito melhor. Para começo de conversa, foram seguidos e bombardeados por uma nave inimiga por boa parte do caminho. O modo de invisibilidade havia aparentemente pifado, o que lhes dera essa dor de cabeça extra.

–Mas que diabos, desgraça pouca é bobagem mesmo... -reclamou Kira, segurando-se com força para não cair. A aeronave sacudia violentamente por causa dos estragos sofridos pela agressão, e mesmo para desviar Hiei forçava demais a máquina, e esta não conseguia se manter instável por muito tempo.

–Hiei, por tudo que é mais sagrado, tente manter-nos nivelados! -Ken protestou de seu lado, enquanto vislumbrava os inimigos se aproximando. -Eu queria realmente estar com aquele dragão, agora...

–Falar é muito fácil, essa coisa não vai aguentar por muito mais tempo.

–Então está na hora de pousarmos. -argumentou por sua vez Mitaray, apontando o dedo para um espaço aberto, a alguns metros de distância. O parceiro praguejou qualquer coisa e forçou um pouco mais o jato, até o máximo que conseguia. Chegando ao local, ele diminuiu a altitude, mas mesmo com todo o cuidado a parte inferior do jato bateu com violência contra o chão, sacudindo os corpos dentro dele e possivelmente perdendo as rodas.

–Me sinto num deja-vu. -resmungou Ken, olhando de esguelha para Crós.

–Ora, não reclame, poderia ter sido bem pior... -retrucou o outro em resposta, descendo do jato e observando o lugar a sua volta. A outra nave estava em ótimas condições, e ainda parecia disposta a interceptá-los, soltando rajadas de canhão sobre eles. -Vocês querem realmente brincar, não é? Pois bem!

Antes mesmo que os outros pudessem deixar a aeronave, o mago deu um passo a frente, murmurando palavras irreconhecíveis. Um círculo se formou automaticamente abaixo dele, deixando grossas tiras de uma substância arroxeada desprenderem-se de sua circunferência. Aquelas faixas ascenderam ao céu, indo em direção aos inimigos e envolvendo-os numa bola roxa, que foi diminuindo de tamanho até que pudesse se ouvir o barulho de algo rachando lá dentro. Quando as amarras soltaram-se, os destroços do que fora um jato caíram por terra.

–Não podia ter feito isso antes? -questionou Ken de maneira cética, enquanto Hiei colocava a mão sobre os olhos e assoviava.

–Uau! Curti muito essa magia ai!

–Cara, você vai me ensinar a fazer isso, né? -atalhou Kira, com uma expressão de contentamento, que morreu assim que o mago lhe deu a resposta.

–Nem pensar, eu já tenho uma aprendiz pra me dar dor de cabeça...

Mitaray apenas suspirou, parecendo aliviado. Em sua cabeça, a namorada já causava estrago suficiente sem ter conhecimento de magia... -De qualquer forma, temos de ir em frente. Embora eu ache muito estranho o fato de não vermos mais ninguém...

Ken, que havia deixado momentaneamente a discução para dar uma verificada na situação, parou instantaneamente, erguendo a voz para chamá-los a seu encontro. Hiei havia pousado num espaço aberto que acabava em um penhasco, e a vista deste dava para a cidade principal de Vadolfer.

A característica básica da mesma eram mais as pequenas vilas que haviam a sua volta, vinculadas às autoridades da cidade. Em algum lugar em meio àquele relacionamento caótico, houvera a vila em que Mitaray e Hiei nasceram. Mas Aragorn, o mestre deles, residia na cidade central, e talvez tenha sido isso que fez com que ambos fitassem, assombrados, o que restara do local.

Não havia uma casa em pé, todas tinham ido abaixo ou estavam destruídas. Focos de incêndio surgiam aqui e ali, e corpos estendiam-se até perder de vista. O cheiro de sangue podia até mesmo chegar aonde eles se reuniam, se o vento soprasse naquela direção.

–Pelos Deuses... -Hiei, pela primeira vez, se sentia vazio e sem palavras para usar. Parecia em choque, num primeiro momento. Foi Mitaray que quebrou aquele silêncio sepulcral, também metamorfoseado em uma versão completamente oposta do que realmente era.

–O que fizeram... o que fizeram com a nossa cidade!? -o grito de raiva que ele deu ecoou por algum tempo. Seus olhos tão placidos haviam se tornado um mar de puro ódio. Os mais próximos se afastaram, até mesmo Kira... o Caçador da Morte estava possesso... alguém ia ter de pagar por aquela ousadia!

–Ora, ora, ora, o que temos aqui? -uma voz conhecida matraqueou atrás deles. Um tom agudo, como o tilintar de ossos. Seu dono deveria estar sorrindo com escárnio, isso se as caveiras poderiam sorrir.

–Gaia... -sibilou Mitaray, retirando a foice de suas costas com extrema velocidade. Hiei pareceu se recobrar ao ouvir a voz do inimigo, pois preparou-se também para o ataque. Em menos de um minuto, todas as armas ali estavam apontadas para o esqueleto vivo, que não pareceu ficar minimamente preocupado com aquilo.

–Nos encontramos novamente! Decidiram finalmente cumprir suas ameaças infundadas agora? -a criatura riu, com desprezo, levantando a mão para tocar o amuleto rubro entre suas costelas. -A minha está quase completa. Quando eu tirar suas vidas, irei compuscar seus corpos e então farão parte do meu exército!

–Você passou dos limites há muito tempo, esqueleto... -Hiei ia dizendo, mas parou. Algo que Gaia lhes falava martelou algumas vezes em sua cabeça, e então ele lembrou-se da tal ameaça, feita a tanto tempo atrás, no Caminho da Ilusão. -O que você fez?

–Além de destruir a cidade que tanto amam? -os ossos estralaram enquanto ele dava dois passos a frente, girando a espada entre suas falanges. -Eu matei aquele homem... como era mesmo o nome dele? Aranthir, Argo, Aldeon... não, não era isso. Ah! -ele pareceu de fato exultar-se com a expressão que seus dois inimigos faziam naquele instante. -Aragorn. Sim. O humano que aceitou treiná-los mesmo depois de voltarem dos Campos da Morte.

–Está blefando. -alegou Mitaray num fio de voz.

–Eu não blefo... pode ir lá procurar. Creio que o corpo ainda seja reconhecível...

Não conseguiu terminar suas palavras. No instante seguinte o rapaz já estava a sua frente, e num movimento amplo e rápido seu crânio deslocou-se do pescoço, caindo com um baque surdo no chão de terra. Mais alguns golpes fatiaram o corpo de Gaia completamente, a única coisa que ficou intacta foi o medalhão vermelho que este sempre carregava. Inútil... o caçador sabia que era, mesmo que sua respiração tivesse ficado mais pesada por causa daquele mínimo esforço. Ele se remontaria, como se nada tivesse acontecido.

–Por que você não morre!? -as palavras saíram separadas por pausas, enquanto ele deixava a lâmina da foice descansar no chão. O barulho de ossadas se movendo aumentava. Lentamente, dezenas de esqueletos haviam se arrastado ao local, com seus passos trópegos e vacilantes, observando aquela cena bizarra e inútil.

–Mitaray... -ele ouviu a voz de Kira chegar distante, apesar de saber que a garota estava perto de si. -Mitaray, temos de ir!

Gaia começava lentamente a se recompor. -Ridículo... é apenas isso que você tem, cãozinho da Morte? Ainda pretende rosnar mais, sem poder morder para machucar?

A foice ergueu-se uma segunda vez, mas não foi ela que acertou o alvo. Em seu lugar, a parte plana de uma espada acertara o crânio de Gaia, jogando-o longe. -Não ouse falar assim dele, seu pedaço de lixo! -Kira entrara no caminho, fazendo questão de sapatear por cima dos ossos, esmigalhando-os completamente. Num rompante, virou-se para Mitaray novamente, a trança que usava chicoteando contra seu próprio rosto. -Pare com isso! Eu sou a nervosinha cabeça quente aqui, okay? Todos somos desequilibrados, você é o único de nós que consegue manter a calma quando tudo está perdido. Aguente firme!

–Kira...

–Caso contrário... -ela continuou num tom mais brando, enquanto estendia a mão para que ele segurasse. -Eu te ajudo a carregar esse peso. Certo?

As mãos se encontraram, enquanto ele engolia em seco, seus olhos de tempestade também ficando mais lucidos. Puxou-se para frente, sentindo um toque suave em seu ombro direito. Hiei estava lá, também, a expressão insondável, mas confiante. -Vamos acabar com isso de uma vez por todas.

–Sim... já está mais do que na hora. -Mitaray respirou profundamente, erguendo a cabeça finalmente. Não ia demorar para que a cabeça de Gaia retornar-se a seu corpo... deveria estar sendo trazida de volta nesse exato instante. -Precisamos arranjar um jeito para quebrar o encanto...

–Eu sei como. -Crós deu alguns passos para trás, reunindo-se a eles. O círculo formado pelos esqueletos ia fechando-se mais, e era preciso ter caltela. -O medalhão que ele carrega ainda está intacto, certo?

Kira olhou para o chão, puxando-o pelo cordão e observando-o atentamente. Depois de ser pisoteado e ter o corpo que o usava retalhado, a jóia continuava sem um arranhão sequer. -Nem riscou a superfície...

–Provavelmente isso mantem a alma de Gaia dentro de suas ossadas, impossibilitando-o de descansar. Se eu conseguir isolá-lo do meio externo talvez possamos dar um fim no capitão...

–Você não pode simplesmente desfazer o feitiço? -protestou Ken, do seu lado, voltando a rodar sua espada, numa clara ameaça para que os inimigos não chegassem mais perto.

–O feiticeiro que teceu esse encanto era um necromante... e era bem forte, para que nem mesmo as armas abençoadas pela Morte pudessem fazer algo contra a sua criação. Não, eu não posso dar um fim na maldição, não posso destruir Gaia. Mas posso selá-lo. Isso resolverá nossos problemas. -estendeu a mão para Kira, logo pegando o artefato da mesma.

Ele sabia que não era o suficiente para aplacar a raiva que os dois caçadores sentiam em seu âmago, mas por enquanto era a ultima alternativa. Guardou o amuleto no bolso de seu manto e abriu uma das mãos, lançando uma rajada de fogo para limpar o caminho. -Fazer isso aqui será inútil, só vamos acabar morrendo.

–Vamos descer à cidade. -sugeriu Kira, conjurando suas asas. Ela ainda não estava acostumada a elas, afinal usava-as poucas vezes.

Ken olhou barranco abaixo e sorriu. -Acho que dá para irmos correndo.

–É bem ingreme, mais fácil irmos rolando. -alfinetou Hiei, mas foi o primeiro a saltar, pisando de mal jeito e fazendo os pés escorregarem para baixo. Aumentou a velocidade, desviando das pedras, e logo de fato estava correndo ladeira abaixo.

–Eu estava sendo sarcástico... -protestou Ken, antes de ser empurrado barranco abaixo por Kira. Por algum milagre ele conseguiu não cair de mal jeito e deixou que o corpo rolasse lateralmente até chegar a um galho mais baixo, onde parou seu avanço e endireitou-se, virando para trás com a óbvia intenção de xingar a irmã. -Você tá tentando me matar, sua retardada!?

Ela ignorou-o, lançando um olhar para Mitaray e dando espaço para que ele descesse também. Os esqueletos voltavam a se levantar, alguns ainda pegando fogo, e agora estavam dispostos a matá-los de verdade.

–Você primeiro...

–Que amável da sua parte... -ele abriu um mínimo sorriso, o que já era alguma coisa, e saltou também. Ao contrário dos outros dois, o lugar que escolhera para descer estava repleto de pequenos e grossos galhos, os quais ele utilizou para deter a própria queda, pulando com facilidade de um para o outro. Kira bateu as asas e desceu como um raio, só diminuindo a velocidade quando estava bem perto do solo. Crós, que ficara para trás, apenas suspirou pesadamente e, recorrendo ao seu teletransporte, não demorou nem um minuto para que já estivesse lá em baixo, antes de qualquer um.

–Vocês fazem tudo pelo modo mais dificil.

–Eu tenho de estar muito desesperada para deixar que me teleporte, cara. -Kira alegou, parando quase a altura dele, mas sem chegar a colocar seus pés no chão. Hiei, que havia pegado impulso lá de cima, acabou passando direto por eles e parando de fato só bem mais na frente.

Enquanto os outros dois conseguiam juntar-se a eles, Hiei deixou que seus olhos captassem toda a desolação que havia ao redor. As coisas pareciam piores ainda observando de perto. E o cheiro de carne queimada e sangue era pungente, o que o fez levar uma das mãos ao nariz. -Eu preferia continuar lá em cima...

–Não tinha jeito, eu nunca poderia selar essa coisa com todos aqueles inimigos tão próximos. -Crós parecia sombrio, também, segurando com força o medalhão para que não o perdesse. -Além do mais, Gaia já deve ter se recobrado... agora que sabe que estamos com seu único ponto fraco, vai começar a nos caçar.

–Que venha... vou fazê-lo em pedaços o quanto for preciso. -o garoto de cabelos cinza retrucou, com a voz afiada, logo estreitando os olhos para aquele desastre. Hiei parecia ler seus pensamentos.

–Ele está aqui em algum lugar... precisamos encontrá-lo...

–Agora não. Nossa mestra sempre deixou bem claro...

–Os vivos cuidam dos assuntos dos vivos, os mortos cuidam de seus assuntos também. Mas acredita que ele estava falando sério quando disse...?

–Ele estava. -cortou Mitaray, levantando os olhos para o céu... uma chuva fina começava a cair. Ele dissera que era um blefe, mas sabia que estava errado. A satisfação na voz de Gaia era palpável, ele achava que tinha vencido. Aragorn estava morto em algum lugar ali, em meio aos destroços. Caberia aos dois fazerem um túmulo para um descanso apropriado. Mas só depois...

–Eles estão se agrupando de novo! -avisou Kira, engolindo em seco.

–Que inferno, não temos tempo nem de respirar... -Ken girou o corpo bem a tempo de cortar um esqueleto que resolvera surgir bem por trás do mesmo. A gargalhada histérica de Gaia vinha lá de cima, amplificada sabe-se lá como, possivelmente pela própria geografia esquisita do local.

–Vocês acham que pegar o medalhão muda alguma coisa? Acabou-se. Os reforços chegaram!

–Reforços? Como reforços, o resto do contingente está com Haradja na capital... -Crós havia franzido o cenho, e uma flechada tirou completamente sua atenção do que estava pensando. A ponta atravessou seu ombro, cravando-se profundamente, arrancando-lhe um grito estrangulado de dor. Patético... um mago como ele, ferido por uma mísera flecha.

–Deu sorte por essa não estar envenenada, senhor mago. -um rapaz de traços comuns e roupa de caçador estava sentado sobre uma casa semi-destruída, seu arco apontado para os intrusos. Ele já havia colocado mais duas flechas no mesmo, o que significava que poderia deixar pelo menos dois deles fora da luta.

–Driguem! -a constatação veio dos irmãos gêmeos, a uma só voz. Ken parecia irritado com a intromissão de seu inimigo declarado, ao passo que Kira estralava os dedos, pressionando uma mão contra a outra, com uma expressão feroz.

–Ah, isso vai ser divertido! -a moça abriu um sorriso entusiasmado, finalmente deixando uma das mãos cair novamente para a empunhadura da espada.

Ken contornou Crós, ficando na frente do mesmo e também preparando sua espada, numa posição de ataque. -Vamos deixar o Gaia com vocês três. Essa presa é nossa.

–Pode deixar que vamos cuidar direitinho dela. -atalhou Kira, jogando a cabeça para trás de forma que pudesse divisar os outros, principalmente Mitaray. Era sua forma de dizer que estava tudo indo bem. Apontou sua lâmina prateada em direção a Driguem, voltando a erguer a voz. -Já faz um tempo, seu cretino!

–Verdade... parece que chegou o dia do acerto de contas, afinal... -ele retesou o arco, prestes a atirar. -No entanto, não deixarei que os outros saiam fácil daqui.

Crós fez uma careta de dor, sua ideia de tentar ajudar naquela situação não poderia ser levada adiante. Era melhor que se preocupasse em terminar o selo o quanto antes. Pressionando o ombro ferido com a mão oposta àquele lado, respirou profundamente e ergueu a outra para fazer um simbolo estranho no ar. Este brilhou por algum tempo, e Driguem pareceu reparar, pois as flechas voaram automaticamente naquela direção. Para serem bloqueadas por Ken e Kira no mesmo instante. Uma névoa espessa subiu da região em que eles estavam, e a demora para dispersar-se deixou o inimigo profundamente irritado. Quando a obstrução se desfez, só havia dois guerreiros ali em baixo. Os outros três haviam desaparecido.

–Que esperto da parte daquele mago intrometido. -resmungou Driguem, com certa frustração, voltando sua atenção para os outros dois. -É a segunda e última vez que ele me faz de idiota.

–Ele não precisa fazer você de idiota, você já é um. -zombou Kira, parecendo à vontade com tal situação.

O assassino expirou com calma, evitando a todo custo se sentir ofendido pelo comentário, e logo abriu aquele sorriso levemente psicopata. -Que seja. Atentem-se para o dia de hoje, meus caros adversários. Hoje terminarei a missão que me foi imposta a anos atrás. Hoje eu porei fim a linhagem dos Himura!

   

As coisas não pareciam estar melhores na capital... Nick procurava a irmã com os olhos, mas ela já havia saído de sua vista há muito tempo. Em contra partida, Iris parecia estar se cansando com certa facilidade.

–Você... -ele desviou de alguns golpes, aturdido, cortando seus inimigos enquanto colocava-se entre ela e uma nova leva de demônios. -Está bem?

–Nem um pouco. -Iris ofegou, forçando-se a levantar e pulando de lado, escapando de uma foice que descia em sua direção e logo atravessando o olho daquele que o empunhava com sua arma. -Isso está cansativo... Kit precisa resolver isso rápido.

–Não é como se fosse culpa dela, pensando bem. -argumentou o rapaz, dando o braço para que ela usasse de apoio. Olhou ao seu redor. As criaturas tinham dado uma trégua, o que ele não sabia definir se era bom ou ruim. Algo chamou sua atenção, então, e Nick assobiou, com uma expressão crescente de incomodo. -Se lembra que estava faltando alguém na ofensiva...

–Cassie...

–Não está faltando mais. -resmungou, apontando a frente, onde os demônios abriam espaço para que alguém coberto por um véu passasse. Era estranho que eles fossem tão organizados a esse ponto, no entanto fazia muito sentido quando se tratava da deusa do Som. Sua voz armoniosa era capaz de encantar até a pior criatura.

–Estavam a minha procura? -a pergunta soou quase inocente, enquanto ela caminhava até ambos com passos lentos, mas decidos. Ouvi-la fez com que um arrepio desagradável percorresse a espinha recém-tratada de Iris. O que ela pretendia? A situação já não estava ruim o suficiente?

–Não diria isso, só estávamos, hum... incomodados com sua ausência.

–Se não estiver aqui, provavelmente estaria fazendo coisa pior em outro lugar. -A mulher completou rispidamente o primeiro comentário de Nick, mas a rival de ambos não pareceu se impressionar com aquilo. Seu sorriso sutil, quase inexistente, abriu-se por alguns segundos.

–Eu reconheço todo o ódio que tem por mim, mas não sabem meus motivos... acreditem, isso tudo foi planejado com caltela. Para algo que está por vir. Essa pequena guerra, ela não significa absolutamente nada.

–Deixa eu ver se entendi, está dizendo pra gente que ter matados nossos amigos é meramente aceitável? Que foi algo bom? -Nicolas crispou os lábios, logo após explodindo. -Você só pode ter enlouquecido, Cassandra! Sua maldita vida eterna fundiu seus neorônios!

–Eles terão um papel importante a cumprir do lado de lá... -ela murmurou num tom baixo, desviando o seu olhar daqueles dois. Também não havia sido fácil para ela, com toda a sua bagagem de vida, tomar certas decisões. Ela, que viera de um mundo distante e decidira trabalhar pelo bem do Universo como um todo (englobando todas as suas dimensões e subdivisões), havia chegado a Diamond com uma noção total do que ocorreria no futuro. Estava disposta a continuar a assegurar esse futuro, no entanto isso significava ferir pessoas que acabaram tornando-se importantes para ela. Um humano comum teria sacrificado sua missão pelo bem de tais pessoas, mas Cassandra era uma deusa, e como tal tinha noções distintas dos mortais. Anos e anos de existência lhe deram a força necessária para seguir em frente, quando queria tanto dar passos para trás. -Não adianta continuarmos com esse debate, não podem entender o que está por trás disso tudo. O mesmo para Crós... nenhum de vós podes entender o significado de sacrifício.

–Eu entendo o significado de sacrifício próprio, não o de outrem. -Iris retrucou, aprumando sua postura para poder encará-la. -Por que não se sacrifica você mesma?

–Depois. -Cassandra fechou os olhos, ficando em silêncio por alguns segundos. Os demônios a sua volta começaram novamente a ficarem irrequietos e ameaçaram avançar até as duas presas. -Quando minha função acabar, por hora... então terão meu sacrifício, e sua vingança, se assim desejarem.

Nicolas fitou aquela deusa, tão cheia de si, tão perturbadoramente calma no meio de todo aquele caos, e engoliu em seco. Talvez, com ela mantendo os demônios parados, ele e Iris podiam sair atrás de Kit antes que a irmã se machucasse mais do que devia. Deu dois passos para trás, mas Cassandra pareceu perceber de imediato, pois seus olhos se abriram naquele mesmo instante. -Não podes interferir. A luta entre as duas é necessária.

–Estou começando a me perguntar de que lado você está, Cassie. -Iris voltou a afiar seus sais um no outro, preparando-se numa posição de defesa, pronta para pular fora na primeira oportunidade.

A deusa piscou mais uma vez, e ergueu seus olhos escuros para o céu fechado de nuvens, sentindo os primeiros pingos de chuva chegarem ao seu rosto, sendo bombardeada por uma dor aguda, assim como podendo ouvir os gritos dos silfos da tempestade preenchendo seus ouvidos. Seres estava chorando, mais uma vez. -Acho que aquela criança precisa esfriar um pouco a cabeça.

Ainda que ela agisse como se aquilo fosse uma frase óbvia, nenhum de seus interlocutores foi capaz de entender. Ela se referia a que criança, exatamente? Se pudessem ouvir seus pensamentos, no entanto, saberiam que ela se referia a Haradja. Suas mãos ergueram-se, um gesto que fez o exército recuar para trás da mesma. -Infelizmente, não posso deixar que saiam daqui. Possivelmente iriam intrometer-se entre aquelas duas, e nada de bom poderia vir disso. Se quiserem forçar uma passagem, terão de lutar contra mim.

–Beleza...

–Estava só esperando você falar!

Os dois não esperaram nenhuma resposta da parte dela quando foram para frente, disparando golpes simultâneos contra ela. Cassandra deu um leve desvio de corpo para a esquerda, evitando a estocada de Nicolas e com uma das mãos segurou o pulso de Iris, vinda do lado oposto, torcendo-o e jogando-a para o lado.

–Se preferem desse jeito... então lhes mostrarei a força de um deus! -os olhos dela cintilaram, assustadores, e sua voz sempre tão melodiosa pareceu macabra aos ouvidos deles...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Kit Black: Viajantes De Mundos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.