Kit Black: Viajantes De Mundos escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 17
Uma Noite Interminável... Um Dia Eterno




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Há alguns anos atrás...

Uma garotinha estava entretida fazendo o que parecia ser uma coroa de flores... ela tinha longos cabelos negros, e olhos castanhos esverdeados. Não deveria ter mais que três anos de idade. Sua mãe a observava com o canto dos olhos, embora a maior parte de sua atenção estivesse em outro lugar mais a frente.

Estavam no Mundo Real... então por que ela se sentia fatalmente inquieta? Mesmo que houvesse algum perigo iminente, ela saberia como lidar com ele...

A criança acabou seus preparativos e levantou-se, correndo até o lugar onde sua responsável estava sentada e estendendo os bracinhos para colocar a coroa na cabeça dela. E abriu um sorriso tão doce, que a fez esquecer suas preocupações por um segundo.

–Ah, ficou linda, Ly... –ela plantou um beijo em sua testa, ajeitando a coroa com a ponta dos dedos. Mas antes que pudesse paparicar mais a pequena garota, seu instinto voltou com força total, fazendo-a abraçar a criança e rolar o corpo para o lado... bem a tempo de evitar ser agarrada por uma criatura que descia da árvore mais próxima.

As sombras de fim de tarde já eram bem acentuadas, de forma que ele podia se esconder da luz do sol tanto quanto quisesse. Sua aparência não seria marcante, não fossem a pele pálida, os olhos avermelhados e as presas expostas, maiores do que as de qualquer ser humano comum.

Um vampiro.

O que um ser desses estaria fazendo naquele lugar, porém, era um mistério. Leah não pensou nisso naquele momento, evidentemente. Ela não pensava em nada, além de manter a menina a salvo... só não sabia como fazer isso sem uma arma. Havia árvores, mas estas estavam distantes demais para que ela conseguisse retirar madeira e criar uma estaca a tempo. Ela não dispunha de água benta. E alho não fazia efeito algum, embora os filmes insistissem no contrário.

Ficou de pé, mantendo-se em frente ao vampiro, tirando seu campo de visão da menina atrás de si... ele também devia ter se alimentado recentemente, já que a parte frontal de sua roupa estava empapada de sangue, que obviamente não o pertencia. E só então ela conseguiu racionalizar o que o teria levado até ali. Era a pessoa que deveria se esconder, custasse o que custasse. Não conseguiu mais pensar sobre isso, porque logo ele estava saltando para agarrar seu pescoço. Ela grunhiu, tentando se libertar. As unhas compridas e bem cuidadas faziam marcas profundas no rosto pálido, mas ele não ligava pra dor, se é que conseguia senti-la.

Então, o grito da garota tirou sua atenção finalmente de Leah, antes que acabasse por estrangulá-la... e sabendo que era isso que buscava, ele largou-a e foi em direção a sua vitima... as unhas dele também pareciam maiores que o normal, e utilizou-se delas para agarrar a perna da garota e puxá-la, de forma que ficasse de cabeça para baixo. E embora esta esperneasse e choramingasse, não parecia que haveria salvação alguma destinada a ela. Leah estava fora de combate, ainda tentando voltar a trazer ar a seus pulmões.

O vampiro mudou a posição, agora agarrando-a pela cabeça, pronto para morder o seu pescoço, ou talvez fosse melhor enfiar a cabeça dela no chão até destruí-la completamente? A única coisa que sabia era que sua mestra ficaria muito grata a ele, e que desfrutaria de um banquete de qualquer forma.

Mas sua convicção foi seu erro... ele não contava que uma espada atravessasse seu corpo a partir do ombro. A surpresa, mais do que a própria dor, fez com que ele soltasse a criança. Ela foi impedida de cair por um braço acolhedor, e logo estava muito distante de seu algoz.

O rapaz deixou a menina nos braços de uma Leah chocada e praticamente exausta, deixando apenas o conselho, ou talvez fosse uma ordem, para que fechasse os olhos dela. E se voltou para o vampiro. Este já exibia a típica expressão animalesca que indicava-o como sua próxima refeição, e atacou-o com toda a força que dispunha. –Devolva-me a criança...

Uma vez mais ele foi surpreendido, porém... com a mão livre, o rapaz puxou um objeto de suas costas e transpassou o coração do inimigo com extrema facilidade... e então, girando totalmente o corpo, passou a espada por sua cabeça, fazendo-a soltar-se do corpo e rolar pelo chão. Afinal, não era um adversário tão forte assim...

O garoto puxou o corpo que acabara de decepar por um bom tempo antes que chegasse a uma área onde o sol ainda manchava o prado, e viu-o virar cinzas... só então voltou a ter com as vitimas, e encontrou uma garotinha cochilando nos braços de Leah, embora esta fosse sacudida por soluços. Provavelmente havia chorado até dormir. Ele passou a mão pela testa dela e sentou-se em frente a mulher, suspirando pesadamente.

–Sinto muito... eu percebi que ele tinha atravessado essa dimensão, e segui-o para impedir que pudesse encontrar os rastros... mas ele acabou me enganando.

–Ele não parecia tão esperto a este ponto. –Ela respondeu, em um tom de voz rouco, enquanto passava a mão esquerda pelo pescoço... um hematoma roxo surgira a sua volta, mas ela não parecia ter se ferido mais que isso. –Não achei que o veria outra vez, Nicolas.

–Eu não esperava que um deles fosse passar por mim. –ele parecia amargurado com tal idéia... não passava de um rapaz de seus treze anos. Desde cedo decidira treinar para participar da guerra que logo viria. Voltou a se levantar, endireitando-se e estendo uma mão para ajudar Leah a erguer-se também. –Preciso voltar. Não se preocupe, nenhum espião vai encontrá-las.

–Tem certeza? –ela apoiou a cabeça da menina em seu ombro, para segurá-la de forma mais fácil. A coroa de flores havia se despedaçado, e pétalas ficaram entrelaçadas em seus cabelos. Mas ela ainda mantinha a compostura.

–Absoluta. Estou treinando para isso. –o jovem Nicolas abriu um arremedo de sorriso, e tocou uma vez mais os cabelos da menina. –Espero que ela esqueça isso...

–Não tenho tanta certeza. Ela desenvolveu uma memória muito boa. Mas até que a hora chegue, talvez isso caia realmente no esquecimento.

De fato... ela esquecera daqueles momentos aterrorizantes... e sobrevivera a coisas piores. No entanto, não foi capaz de apagar o medo. Ele estava ali, no fundo... pronto para ser liberado novamente. E isso aconteceria quatorze anos depois...

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Kit ainda ressonava, com a cabeça encostada no vidro do carro, quando a picape freou de maneira tão brusca que quase a fez voar contra o vidro.

–Ai... mas que...

–Acorde... –ela sentiu seu corpo ser sacudido com certa urgência e abriu os olhos de imediato, visualizando tudo a sua volta em poucos segundos. Passou a mão pela cabeça, enquanto saia do veiculo com passos trôpegos. Nicolas deixava o outro lado, aparentemente preocupado, os olhos claros buscando algo mais a frente. A estrada estava escura demais, e ele de fato havia atropelado alguma coisa.

A garota passou o punho pela testa para limpar um filete de sangue que atrapalhava sua visão e deu passos para trás, emparelhando-se com o homem a seu lado. Ele fechou ainda mais a expressão.

–Não faça movimentos bruscos...

–Isso vai depender do que você considera movimentos bruscos. –ela protestou em um tom mais baixo, tentando ver algo, sem muito sucesso.

–Apenas fique quieta... francamente... –passou o braço na frente dela, fazendo-a ir para trás. Sua outra mão preparou sua espada para uma possível batalha, e um brilho sutil percorreu toda a lâmina, onde a lua a encontrava.

O veiculo chacoalhou atrás deles, de maneira violenta. Parecia que havia alguma coisa abaixo dele, tentando tirá-lo do lugar... Kit materializou com certa dificuldade uma pistola, usando-a para arrebentar as correntes que prendiam a motocicleta a ele -o que causou vários protestos da parte de Nicolas- e esta se desenganchou de imediato, rolando para trás e chegando ao chão com mais um solavanco do que quer que fosse que estava ali embaixo. E junto com ela uma criatura escamosa desceu da parte traseira, pulando para a estrada e erguendo um pescoço fino. E só então , suas escamas na base do pescoço se eriçaram e um mar de fogo jorrou em direção ao lugar onde estava antes, fazendo a garota estremecer de imediato.

–Eu não vi ele entrar...

–Ahn, aparentemente isso foi uma boa coisa. –Nicolas contornou com rapidez o carro, aproveitando-se da imobilidade de seu agressor, e puxou a primeira coisa que pensou em salvar, a mochila que carregava o Olho de Osiris. Ele atirou-a sem muita cerimônia para a sua companheira e correu mais uma vez em direção a moto. –Esqueça a picape, não vai dar para continuarmos com ela.

–Fácil falar depois do dragão tê-la queimado. –Kit passou as alças da mochila pelas costas, capturou Draco com a outra mão e correu junto com ele. E então o tanque explodiu. Com um estrondo ensurdecedor, levantando poeira e fogo para todos os cantos, assim como um cheiro desagradável de carne queimada.

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Mitaray sentiu um estremecimento percorre-lo por completo, enquanto descrevia um arco com sua foice e degolava um demônio com muita facilidade. Ele voltou sua atenção para Hiei, um pouco mais distante, e gritou para ele recuar. E foi o que ambos fizeram, deixando por algum tempo a frente de batalha, enquanto a tropa de seres malignos batia de cara com os portões da muralha externa da cidade. Eles tinham sido sitiados a algum tempo, e com uma pequena parcela de soldados, tentavam mantê-la impenetrável. Mas sem duvida isso não duraria para sempre.

–O que foi desta vez?

Hiei já começava a resmungar, balançando os braços de modo inconformado.

–Não sentiu nada?

–Senti, senti uma amargura por um tempo, mas as tropas estão avançando!

–De qualquer forma teríamos de recuar um pouco. –ele observou por de trás da muralha, passando os dedos pelos cabelos acinzentados obviamente incomodado. –Está acontecendo alguma coisa. Na sede, ou com alguém de lá.

–De qualquer forma, não podemos pensar nisso agora... estamos sitiados.

–Agradeço por reafirmar o óbvio, Hiei...

Ele ergueu seu olhar para uma das torres e viu um vulto familiar encarapitado em uma delas. –Ora, ora... olhe bem quem veio nos fazer uma visita.

O ser lhes sorriu momentaneamente, com um ar divertido. Era uma mulher de cabelos em tom castanho, levemente ondulados, e olhos hipnotizantes, claros, mas que não puxavam nem para o verde nem para o azul... eles pareciam alaranjados, mas estranhamente isso não os tornava difíceis de encarar. As roupas que utilizava eram um pouco curtas, em tons de marrom e bege... e assim também eram as asas que surgiam de suas costas, translúcidas e enormes, dando a impressão que se as batesse com muita força poderia levantar um vento forte o suficiente para fazer qualquer um voar.

Ela deu um salto bem calculado, passando para uma das torres mais próximas e logo para o piso, sem nenhum esforço. Esticou as asas, e depois o resto do corpo, num alongamento longo e demorado, antes de finalmente desfazer seu sorriso e observar os rapazes. –Hei, meninos... espero que não estejam tendo muitos problemas por aqui...

Os dois se entreolharam por um momento antes de curvarem seus corpos de imediato numa reverência. –Majestade...

–... creio que os problemas estão apenas começando.

–Compreendo... –a Deusa da Terra, Hera, fez um esgar e levou um dedo aos lábios. –Não vão conseguir manter esta fortificação por muito tempo.

–Até podemos, se Haradja não mandar nada pior contra a gente... –Hiei deu de ombros, enquanto Mitaray simplesmente negou com a cabeça.

–Não... os alimentos estão começando a escassear. Sabes que nós conseguimos sobreviver a certos imprevistos, mas o resto das pessoas daqui não.

–É. Levando isso em consideração, imagino que a resposta seja não mesmo...

Mitaray preferiu manter silêncio e focou mais uma vez seus olhos sobre a Deusa. Apesar de sua atitude relativamente despreocupada, um vinco começava a surgir em sua testa, o que significava que a resposta não lhe agradara em nada.

–Meninos... vocês sabem que eu não posso interferir diretamente, certo?

É, ela não podia. E todos sabiam disso. Deuses não devem interferir ao menos que estejam brigando contra outros Deuses. E por mais que Haradja fosse imortal e já tivesse acumulado muito poder, ela ainda assim não era uma divindade. Então o máximo que todos eles podiam fazer era lançar suas bênçãos... e dar pequenos empurrões de vez em quando.

Como nenhum dos dois se atreveu a responder, ela fez um biquinho e colocou as mãos na cintura. –Vou tirá-los daqui... é o máximo que posso fazer.

–Mas...

–Sem mas, nem meio mas... –balançou a mão de forma afetada em frente ao rosto. –Fortificações podem ser tomadas... o que ganha a batalha são pessoas... –apontou para os dois. –Ao meu comando, vocês se retiraram pelo portão norte e evacuarão todos os que estiverem nessa área. Depois, os dois vão voltar para a sede...

–Aconteceu algo? –foi a pergunta alarmada de Hiei, enquanto seu amigo apenas mordia o lábio inferior, preocupado.

–Vocês verão... não se preocupem, os demônios não vão entrar tanto no território... isso pára por aqui. –ela estreitou as sobrancelhas, lançando um olhar ameaçador para as criaturas ao redor dos muros. –Definitivamente...

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Ken levou a mão ao coração, sentindo um aperto inconfundível no peito. Ele estava preso em um dos quartos subterrâneos da sede. Por quê?

Bom... quando lhe proíbem de ir a algum lugar e você tenta roubar um veiculo para ir da mesma forma, está claramente quebrando as regras. Salem pegou-o tentando fugir para ir atrás de Kit, e foi forçado a trancá-lo. E ter certeza de que ele não iria arrombar a porta desta vez. A barreira mágica parecia surtir um belo efeito sobre ele.

–Você sabe muito bem que pediu por isso, não sabe? –Crós apareceu do outro lado da grade, observando-o de cima a baixo.

–Vocês são todos uns injustos... por que o tal de Nicolas pode acompanha-la e eu tenho que ficar aqui?

–Não to acreditando que isso é tudo por causa de ciúmes... –ele balançou a cabeça.

–Claro que não! Mas ela é minha namorada, é minha obrigação protege-la!

O mago apenas o observou com um olhar tipicamente irônico. –Claro... sei...

–Desisto de tentar discutir com você...

–Como queira. –ele deu de ombros e olhou para o teto. –Não deveria se preocupar, meu caro...

–Eu não estou preocupado!

–Hum... vou fingir que acredito.

–Cale a boca, Crós...

–Mas é verdade... –ele estendeu as mãos para cima. –Francamente, jovens são tão irritantes as vezes...

Ken ficou obviamente tentado a responder, mas preferiu calar-se por alguns instantes, antes de virar-se para o outro lado. –Idiota.

–As meninas já estão a caminho também... –o outro mudou de assunto, coçando a cabeça.

–Pra onde?

–Você é desinformado além da conta... –fez uma careta, se virando para voltar ao lugar de onde ele veio. –Trarei sua janta mais tarde... que tal?

–Tanto faz... –voltou a olhar por trás das grades, e sua mão foi mais uma vez ao coração... aquela pontada persistia, incomodando-o o suficiente para impossibilitá-lo de dormir... ou até mesmo pensar...

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Ela sentiu o baque dos pedaços de ferro batendo contra a barreira que acabara de criar, sabendo que se tivesse esperado mais, estariam todos mortos. O escudo brilhou por pouco tempo, segurando a maior parte do impacto, e depois se desfez mais uma vez.

Timing perfeito, gatinha...

Kit afirmou com a cabeça, o coração disparado dentro do peito. –Pensei que não ia dar...

–Você tinha duvidas? –Nicolas observou-a com um ar desafiador, o qual ela respondeu apenas balançando a cabeça em concordância. Sem ter mais o que dizer, o rapaz voltou as suas preparações, subindo na moto e estendendo a mão para ela. –Bom trabalho... vamos continuar...

–Ainda não terminou... –Kit apontou para o outro lado, distante da explosão, onde alguns vultos se juntavam e vinham em sua direção. Todos tinham uma palidez marcante. Todos exibiam presas afiadas... Deveriam ser meia dúzia, mas sabendo exatamente o que eles eram, isso não era uma boa coisa... nem de longe.

–Vampiros...

–Vamp...? –ela se encolheu quase de imediato, empalidecendo drasticamente, com uma expressão chocada.

–Sim... corra...

Ele a puxou, mas para sua surpresa ela não mexeu um músculo sequer... mantinha-se olhando para as criaturas que vinham em sua direção, os olhos arregalados em um estado visível de choque. Nick imprimiu um pouco mais de força desta vez, e um grito estrangulado saiu da boca da garota, antes que ele começasse a arrastá-la.

–Venha... ou vamos morrer!

Quando os olhos dela se voltaram para fitar seu companheiro ela finalmente pareceu acordar. Suas pernas se mexeram finalmente e ela se ergueu para começar de fato a correr... ainda mais rápido que ele.

–Para a moto... você consegue rechaçá-los?

–Re...chaçá-los?

–Com fogo...

–...

Talvez o silencio dela fosse uma resposta perfeita, mas um segundo depois ela girou o corpo para trás e fez com que labaredas saíssem de seus dedos, acertando-os em cheio. Voltou a correr e deu a mão para Nicolas, que alcançava a moto e a puxava para si, para que sentasse atrás dele. Kit se acomodou, fez com que Draco se enrolasse em seu pescoço novamente e ajeitou uma ultima vez a mochila nas costas, antes de passar os braços em volta do outro.

–Segure-se firme...

–Okay...

Ela apertou com mais força, o que fez com que ele quase sufocasse, e um segundo depois Nick acelerava a moto, quase fazendo-a tombar, mas logo conseguiu restaurar o equilíbrio e impeliu-a para frente, bem a tempo de evitar o choque do primeiro vampiro... com os cabelos sendo dispersos pelo vento, lançou um ultimo olhar para a destruição atrás de si. E havia alivio o suficiente ao se distanciar dos vampiros que a fez suspirar.

–Você está bem? –perguntou o rapaz depois de algum tempo, e por não poder virar-se para ver a cara dela, teve que apelar para seus ouvidos.

–E-eu... acho que sim...

Certo... seus ouvidos capitavam muito bem a mensagem.

–Medo de vampiros...?

–Não sei porque... eu...

–Perdoe-me... –ele mordeu o lábio inferior, e ela abaixou um pouco a cabeça para o lado direito.

–Pelo que?

–Nada...

Ele pareceu um pouco distante por algum tempo a mais, antes de continuar. –Estamos chegando a fronteira...

–Que horas devem ser...

–Ahn, acredite, isso não fará diferença nenhuma por aqui...

Kit desapertou o abraço apenas o suficiente pra não cair. –Era verdade, então?

–Claro que sim, tampinha... acha que inventariam esse tipo de coisa?

–Acho que não... hei! Pare de me chamar de tampinha...

–Então cresça alguns centímetros, oras...

A resposta foi um amontoado de pragas, ditas em menos de um minuto, o que apenas o fez sorrir e acelerar um pouco mais, forçando-a a voltar a segurar com mais força.

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Os dois já haviam organizado a retirada da reduzida tropa que estava a seus cuidados, em meio a lamentações... no fim das contas, as perdas tinham sido consideráveis... Mitaray ainda exibia um corte abaixo do olho que com alguma sorte não ficaria marcado. Hiei fazia uma coleção de cortes, sua roupa parecendo um trapo. Os demônios se juntavam uma vez mais para invadir e liquidar um por um, como era de seu feitio violento... e então aconteceu...

Uma praga vinda das profundezas do solo.

Ah quem diga que trepadeiras não são mais que plantas daninhas, que nascem sem que sejam desejadas... mas desta vez, elas salvaram várias vidas.

Elas explodiram do chão, agarrando e estraçalhando vários inimigos em seu caminho, abrindo um verdadeiro buraco nas fileiras demoníacas... e dando o tempo perfeito para a retirada estratégica que Hera sugerira... mas logo após isso, ela não poderia mais ajudar em nada. Enquanto seus protegidos se afastavam, só teve tempo de lançar um ultimo olhar a desolação que havia causado, e com um sorriso ligeiramente entristecido, sentiu ser amarrada pelas trepadeiras que havia ela mesma criado. Alguns feixes se fecharam a ser redor, formando um casulo, ou talvez fosse de fato uma prisão, e ela foi tragada para baixo da terra.

Sem um pingo de arrependimento.

Sem uma nesga de protesto.

Hera estaria confinada pelo próximo mês, incapaz de se comunicar com seus irmãos, por sua pequena intromissão... mas de alguma forma ela soube que aquilo valera a pena...

–Será que ela ficará bem? –Hiei perguntou, sentindo-se subitamente muito culpado, e lançando olhares furtivos para a fortaleza, já a distância.

–Estará, sem sombra de duvida... –o amigo apenas engoliu em seco, abaixando a voz para que os outros integrantes do reduzido grupo não ouvissem. –Creio que... ela imagine que isso mudou algo... e a partir desse preceito, deve estar satisfeita. Teremos de fazer jus a esse gesto...

–Como se fosse difícil... –o outro replicou um pouco mais confiante e continuou seu caminho. –Para a capital?

–Sim... vamos indo... já está mais do que na hora de voltarmos pra casa...

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Quando a motocicleta por fim chegou a seu destino, Kit teve vontade de voltar para casa de imediato. Não é que tivesse medo do escuro ou coisa assim. Para quem encontrara com uma Darkness furiosa, aquele lugar não parecia tão assustador. Mas era estranho... de um milhão de maneiras diferentes.

Para começar, em Moon Scy não havia dia... simplesmente o sol não cruzava o céu, o que se invertia completamente em sua irmã, Sun Guardian. Uma vivia em plena escuridão, contando apenas com a luz das estrelas e da lua... a outra não sabia o que essas duas coisas eram, pois a única estrela que conhecia era aquela que iluminava todos os lugares do Reino. E assim seria até o fim dos tempos...

Mas seus habitantes não pareciam muito preocupados com isso, para falar a grande verdade... até porque eles foram distribuídos entre as duas irmãs amaldiçoadas de forma que convinha a todos. Moon Scy ficara com as criaturas noturnas, aquelas que repudiavam o dia a ponto de abandoná-lo completamente... assim como alguns outros que simplesmente achavam o escuro mais acolhedor. Os outros foram mandados para Sun Guardian. Dizia-se que um dia ambas compunham uma só cidade, mas alguém achara engraçada a ideia de separá-las em algo que ia contra a qualquer lógica física... e esse alguém fora o Deus das Trevas. Antes de se tornar ele próprio tão mal a ponto de precisar ser preso, o que levantava muitas suspeitas e discussões sobre o que realmente acontecera ao tal...

Ajax, porém, não se encontra nessa história... ainda não...

A jovem ainda se sentia drasticamente incomodada ao descer da moto e andar um bom pedaço ao lado de Nicolas, já que este afirmara que não poderia dirigir até os portos.

–Ora, por que não?

–Estou exausto, sua tampinha irritante... –ele bocejou, ajeitou a espada nas costas e inclinou a cabeça para poder observá-la a seu lado. –E certas pessoas não sabem dirigir.

–Quem precisa dirigir quando se tem conhecimento mágico?

–Assim que aprender como utilizá-lo para um fim automobilístico, sugiro não usar esse argumento.

Ela não fez mais que fechar a expressão e continuar a andar, passando os dedos pelas escamas do dragão que definitivamente não achara prático desenlaçar-se de seu pescoço, e dessa forma continuava a servi-la como um cachecol ligeiramente incômodo.

–Hei...

–O que foi?

–Tem vampiros aqui, não tem?

Ele coçou a cabeça meditando alguns segundos. –Sim, sim... mas a maioria é boa. –e fez aspas com os dedos ao usar a ultima palavra, o que fez com que ela abrisse a boca para retrucar, e então ele suspirou. –Bebem sangue de bolsas... ou de animais...

–Ah, claro... e isso faz deles bons?

–Não exatamente... mas olhe pelo lado positivo, nenhum deles vai pular no seu pescoço...

Kit se encolheu novamente.

–É uma brincadeira...

–Não teve graça...

–Ah, teve sim, pequena... –ele riu, e sua mão bagunçou um pouco os cabelos dela. Seus passos continuaram pelas ruas escuras, iluminadas parcamente por postes de luz azulada e letreiros de lojas. Mas estes ainda eram poucos, e a maior parte da luz vinha do céu. Olhando para trás, ao pensar em sua primeira impressão sobre o local, Kit Black saberia que lembrava uma cidade antiga e pequena, com um bom toque de magia, e o firmamento mais memorável que vira em toda a sua vida. E também havia os habitantes... ela sempre mantinha-se atrás de Nicolas e se forçava a andar quando um vampiro passava por eles, mas estes não lhe davam a mínima atenção... com exceção de um ou outro que comentara como o seu sangue deveria ser doce, num arremedo de piada que não melhorou em nada sua opinião sobre eles...

Lobisomens não gostavam muito dela... quando os dois passavam por uma “alcateia” ela podia claramente ouvir as fungadas e ver os olhos se estreitarem em desaprovação, os lábios formando frases ofensivas do tipo “de onde surgiu a gata? Ela está no lugar errado.” O desgosto era mutuo, mas claramente Kit não ia lá dizer isso para eles. De modo que continuava seu caminho. Um ou outro quebrava aquele padrão, mas as fungadas estavam sempre ali... cheiro de gato... cheiro de lobo... por mais agradáveis que pudessem chegar a ser, eram o tipo de raça que definitivamente não conseguiria muita coisa com ela.

Os zumbis eram engraçados, sempre em busca de um cérebro, sempre com palavras lentas e raciocínio mais lento ainda... para não falar das partes do corpo que se queixavam de perder... assim como alguns esqueletos vivos, não do tipo que Gaia comandava, mas simples criaturas vagantes.

E conhecera bruxas, e conhecera fadas noturnas, cujas asas eram de mariposa... e ela começou a ver que havia algo bom naquela viagem inesperada... no entanto, nada a separava completamente da sua meta... encontrar o que deveria e voltar pra casa... e com esses pensamentos contraditórios, Kit e Nicolas chegaram ao porto de Moon Scy.

O porto... não era o que poderiam chamar de grande, embora a maior parte das embarcações do Reino vinham das Cidades Irmãs, elas não ficavam muito tempo aportadas... no momento, só havia um navio presente nas docas escuras... ele tinha velas de cor negra... era um diamante dos oceanos do Reino. Era conhecido como Diamante Negro...

O mesmo navio que se instalara nas praias da Ilha do Silêncio agora estava diante deles... uma sombra de reconhecimento cruzou o rosto da garota enquanto ela o observava. –Não brinca...

–Ele não é uma obra prima? –a voz vinha de cima. Uma jovem de cabelos cortados à Chanel estava dependurada de cabeça para baixo... não, ela não estava pendurada... ela simplesmente flutuava ao contrário, as asas de mariposa batendo com um ritmo acelerado.

–Lyra... vai acabar assustando ela aparecendo assim, do nada...

Kit não parecia nada assustada, mas não rebateu... apenas estendeu a mão para a outra, em sinal de cumprimento. –Sou Kit...

–Ah, nós sabemos, acredite...

A voz dessa vez veio de trás dela, e a fez estremecer de susto... sua audição privilegiada parecia fora de contesto naquele lugar. Eles simplesmente chegavam sem fazer barulho algum... a aparência deste era estranha... ela notou a palidez marcante, os cabelos azuis escuros muito longos e presos num rabo de cavalo, e os olhos... amarelados... de fato era um dos habitantes da cidade. Kit vira muitos com esse perfil enquanto andavam pelas ruas. Não devia ter mais que vinte e dois anos, e seu tom de voz, apesar de brincalhão, tinha uma pontada de aspereza...

–Mas já que a senhorita não nos conhece, acho melhor apresentarmo-nos apropriadamente... –dessa vez era alguém de um ponto mais distante que falava. Ele se sentava despreocupadamente na amurada do navio e tinha os contornos do rosto muito parecidos com o outro que surgira atrás da garota. No entanto, os mesmos cabelos longos e presos eram de um loiro que lembrava o sol, e penetrantes olhos verdes. Sua pele era também mais morena, típico de alguém que vivia em algum local ensolarado. Não demorou muito para ela perceber...

Irmãos gêmeos, embora opostos... seria o tipo de coisa que teria de perguntar mais tarde...

–Eu sou Lyra... –começou a fada, apontando para si mesma, e os outros seguiram seu exemplo.

O rapaz de cabelos azuis se chamava Laurent. O de cabelos loiros, Edmond. Num breve relato de sua história, os gêmeos explicaram que sua mãe viera de Sun Guardiã, enquanto o pai era de Moon Scy... e isso acabou se refletindo neles... genes tão estranhos que seria difícil de misturar, mas que de alguma forma criara-os. Eram os Irmãos Sol-e-Lua...

E eram piratas... mas isso já foi citado antes...

Não foi?

A bem dizer eram mais como corsários, seus serviços contratados para causar confusão nas esquadras que cruzavam o oceano a mando de Harajda. Nesse caso especifico, porém, eles estavam como guarda-costas... não que tenham reclamado...

Afinal, quem poderia se dar ao luxo de transportar a salvação do mundo em sua embarcação? Era o tipo de honra que acontecia raramente, não era inteligente deixa-la escapar... fora que, a tripulação do Diamante Negro tinha uma certa afeição por Nicolas. O motivo, ninguém sabia ao certo...

Eles já haviam deixado o porto... o resto da tripulação do Diamante Negro não parecia tão feliz em ter a minúscula garota a bordo.

–Mulheres não são bem vindas... –havia dito um deles, ao qual ela nunca saberia o nome... os Capitães e Lyra olhavam de um para o outro, ansiosamente, perguntando-se se deveriam intervir.

Ele era um homem musculoso, um marinheiro nato, que cheirava nitidamente a nicotina... e fumava como uma chaminé... no segundo dia de viagem o tal havia se abaixado em frente a diminuta garota e soprara fumaça em seu rosto, argumentando pela enésima vez o que uma fedelha como ela fazia ali... obviamente não fora informado de qual era sua verdadeira identidade... não que saber isso fosse mudar alguma coisa...

Para sermos justos com a pobre garota, ela não havia realmente feito coisa alguma contra ele, a não ser o incomodo fato (realmente incomodo?) de ser uma garota baixinha e franzina... e quando sentiu o bafo asqueroso em sua cara, tossiu algumas vezes, tentando dispersar a fumaça. E só então tomou uma atitude...

Nada de frases do tipo “sabe quem eu sou?” ou “você não tem o direito de agir assim comigo”. Ela chegara a conclusão que discutir era a ultima coisa que queria... até porque os argumentos seriam inúteis contra alguém que só sabia usar da força bruta.

Então...

Kit jogou-o no mar.

Ela lhe dera um soco no meio do nariz tão forte que fez com que desequilibra-se, e quando este tentou revidar, teve o gancho de direita facilmente parado, e quando deu-se por si já havia sido jogado pela amurada, quando ela usou da própria força dele para derrubá-lo.

Foi um belo golpe... alguns marinheiros soltaram exclamações de aceitação... e só então Edmond de fato disse quem eles estavam escoltando. Kit Black...

De qualquer forma, embora nem todos tenham gostado dela, não houve mais nenhum imprevisto durante a pequena viagem até Sun Guardian... e dias depois, eles aportavam novamente, desta vez na cidade do Sol...

Edmond, ao qual Kit apelidara gentilmente de Ed, embora ele detesta-se tal nominação, utilizava agora óculos escuros... seus olhos eram extremamente sensíveis... tanto que ele quase não conseguia deixa-los abertos com a luz do sol incidindo diretamente sobre eles.

–Você fica estiloso com eles...

–Fique quieta, nanica...

Pelo visto os xingamentos sobre sua altura não diminuíram em nada... mas quem era ela pra reclamar?

A ideia era dar uma passada pela segunda cidade e zarpar novamente em direção da atual localização da Ilha do Silêncio. Mas por que fazer isso? A resposta é bem simples... em Sun Guardian havia ficado uma pequena parte da tripulação do navio, e como eles corriam o risco de encontrar com Mid Night no caminho, ninguém quis arriscar entrar em combate com o pessoal reduzido. Nicolas sumiu por algum tempo, deixando a companheira no navio, e quando retornou trazia um pacotinho que colocou no bolso, dando a entender que lhe entregaria depois.

Um dia depois, eles chegavam as fronteiras atuais da Ilha do Silêncio... Kit reviveu sua ultima estadia lá com um certo ar de desgosto... Lyra estava encarapitada na torre de vigia pela enésima vez, utilizando-se de uma luneta para ver ao longe, e deixou escapar uma frase quase desanimada. –Está chegando a hora de nos despedirmos...

–Mas não é como se não fossemos nos ver de novo, certo? –a garota engoliu em seco, e Edmond coçou a cabeça de maneira cansada.

–Seria uma benção...

–Nossa, que cruel da sua parte...

–Okay, okay... não foi assim tão ruim... –ele deu de ombros. Laurent sorriu por sua vez. –Desejamos a vós muita sorte!

–Deseje um milagre, quem saiba acontece...

–Tá ai uma boa ideia...

Lyra sorriu. –Viremos para busca-los quando voltarem...

–Como?

–Vindo, oras... isso é segredo de profissional... –ela balançou a cabeça dando uma certeza, enquanto fazia uma expressão que lembrava a de um rapper.

Algum tempo depois Kit e Nicolas acenavam para o navio, que partia mais uma vez, sem eles. Viram os vultos daqueles aos quais acabaram se afeiçoando abanando os braços e ouviram os gritos de incentivo. No entanto, isso não tornava a situação mais fácil. Agora a pior parte estava para começar...

Enquanto o dia ia escurecendo e ambos caminhavam em passos rápidos para um lugar suficientemente grande para que o ritual de passagem fosse feito, os pensamentos bombardeavam suas cabeças... o que um e outro tanto pensavam, no entanto, eram problemas claramente distintos. Ambos se resolveriam cedo ou tarde...

Kit fez a lâmina que acabara de criar profanar a pele da sua mão, e talhou um grande machucado na mesma... este começou a sangrar copiosamente, mas ela não chegou a se importar... sob o olhar preocupado do companheiro, começou a fazer desenhos no chão de terra com seu próprio sangue. Pentagramas, símbolos estranhos... a mesma mandala que Salem desenhara com cuidado na folha de papel, agora ela reproduzia... terminada a sua arte, ela engoliu em seco e pegou sua mochila outra vez, colocando-a nas costas... Draco já estava acordado novamente, e se enroscava entre seus pés, a espera do que viria a seguir. Ela olhou mais uma vez para Nick, como se pedisse uma confirmação, e ao receber um aceno de cabeça, abriu novamente o papel e começou a ler o feitiço, já que ainda não o havia decorado...

Mas isso, também, era apenas uma questão de tempo...

–Pelos Deuses do Ar, Terra, Fogo, Água e Trevas, eu peço que o portal para onde desejo se abra, e prometo não interferir na realidade...

Quase que de imediato, um barulho horripilante de algo rachando se fez ouvir, e o próprio mundo pareceu sacudir-se. A dimensão estava se quebrando... O chão se partiu, e uma nuvem escura subiu na direção deles, envolvendo-os completamente. Quando o dragão pulou sobre o colo dela, e ela estendeu a mão para segurar a de seu parceiro, tudo tornou-se escuro... por um segundo o ar pareceu despedaçar-se, como se fosse vidro... e então eles definitivamente partiram...


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