Kit Black: Viajantes De Mundos escrita por Dama dos Mundos


Capítulo 16
Hora de Partir




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As noticias que chegaram a sede por intermédio de Alberich quando Kit foi se deitar não eram das melhores... aparentemente Haradja estava fechando o cerco. Definitivamente. Mais algumas cidades haviam caído sob o seu domínio, como se fosse uma vingança pessoal contra aqueles que haviam lhe tirado o artefato mais poderoso da Terra uma vez mais. Cassandra deveria estar tendo problemas para lidar com ela.

Ela estava realmente, mas sua superior não estava muito melhor. Apesar de ser o cérebro por trás de tudo, Haradja ainda era uma imortal... e Cassandra era uma Deusa. Uma Deusa Menor, mais ainda assim uma Deusa.

–Sua incompetente, realmente tem a coragem de voltar aqui, mesmo depois de ter sofrido uma derrota tão ridícula?

–Foi apenas um erro de calculo... –ela respondeu em sua defesa, em seu natural tom calmo e distante.

–Tu fostes mandada para Moon Scy!

É, Crós havia teletransportado-a para a cidade da noite eterna, e ela tivera dificuldade para sair de lá sozinha. Havia vampiros e espectros rondando cada lugar que ia, e por algum motivo que ela ainda desconhecia, Haradja não se dera ao trabalho de infiltrar um espião que fosse dentro da cidade, e muito menos em sua irmã gêmea, Sun Guardian. Ela foi forçada a passar o dia no anonimato, até conseguir um navio que a deixa-se na costa de Soledad.

–Faz diferença para onde ele me mandou?

–É óbvio... és uma Deusa... e deixas-te que um mago de quinta categoria a mandasse pra longe.

–Crós Salem Shadownight não é um mago de quinta categoria... –ela girou a cabeça, mantendo o contato visual com a outra, e por um instante pareceu realmente assustadora.

A outra mulher fez com que seu olhar ficasse ainda mais demoníaco que o normal. Ela agarrou Cassandra pelo rosto, trazendo-a mais para perto... a altura de ambas era parecia, de modo que ela ficava apenas alguns centímetros abaixo da Deusa. E só então começou a falar, com uma voz extremamente ríspida. -Pouco me importa quem ele é ou o que é, e muito menos se os dois tem algum tipo de romance... estás comigo agora, do meu lado, e eu não fui até seu templo implorar por sua ajuda, tu vieste até mim... então eu acho melhor que a prezada Deusa comece a fazer o seu trabalho!

–A prezada Deusa fará o que tem de ser feito... –foi a resposta dada em um tom melodioso, que fez Haradja automaticamente afrouxar o aperto. –Não se engane... eu não escolhi seu lado pela lógica de seus atos... e não concordo com a maior parte do que está fazendo. E definitivamente, minha senhora, não estou aqui para seguir as suas ordens... –ela retirou a mão da imortal de seu rosto, puxando-a pelo pulso, e logo soltando-o. –Isso aqui é muito maior do que a sua pessoa.

Haradja hesitou por algum tempo, antes de balançar a cabeça rapidamente e partir para o ataque. –Como se houvesse outra causa maior no momento!

–Não nesse momento... mas haverá... –ela lhe deu as costas, começando a caminhar. –Como eu disse... não és o centro do Universo...

–Er... estou atrapalhando...? –Driguem acabara de chegar no salão, olhando de uma para a outra com ares de quem não entende nada. O que cortou o pensamento de Haradja e obviamente a resposta cruel que estava se formando em sua língua.

–O que queres?

–Mensagem de Gaia... Terfina foi tomada com sucesso...

–Ahn... isso é música para os meus ouvidos... –ela lançou um olhar afiado em direção a Cassandra. –Uma BOA música. Logo teremos cercado Farem e a Capital. E quando isso ocorrer...

–...Diamante cairá. –previu o rapaz, com um tom maligno.

A Deusa do Som não fez mais que estreitar os olhos, continuando seu caminho e deixando o aposento, rumando pelos corredores escuros da Torre.

“Ou talvez não...”

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“Kit...”

Ela estava sonhando... estava fugindo de alguma coisa, algo que a perseguia sem cessar, mas por mais que se voltasse nunca havia nada atrás de si... era mais como uma presença, que lhe causava urgência suficiente no peito para forçá-la a correr.

“Kit...”

Ignorou a voz em sua cabeça e impulsionou suas pernas para frente. Erguendo seus olhos para o lugar em que estava, podia ver uma terra estéril e negra, com árvores retorcidas bloqueando o caminho... mais ao longe, havia o que parecia um vulcão... igualmente negro, com lava escorrendo por sua cratera, o que achou estranho... era outra certeza imbecil, porque ela não conhecia aquele lugar, nunca estivera ali. Mas sabia que aquele vulcão, estando onde estivesse, não deveria estar ativo.

“Kit...”

Ela tropeçou, e sentiu que rolava pelo chão, machucando seu corpo. E uma escuridão se abateu tão subitamente sobre ela que mal podia enxergar... e só então conseguiu focar-se na voz que continuava a chamá-la... incessantemente... embora tivesse tirado-a do pesadelo, não estava com disposição para falar com ela.

“Eu não quero conversar... me deixe dormir.”

“Infelizmente você não pode... não mais...”

“...”

Tentou abrir seus olhos, sem muito sucesso... não, na realidade eles estavam bem abertos, mas ela não enxergava nem um palmo a frente do seu nariz. Levou a mão á frente do rosto para ter certeza. A menos que tivesse ficado cega durante o tempo que dormira, a sede estava mais escura que seu normal... ela tateou até procurar o abajur do seu lado da cama, puxando a cordinha para acendê-lo. Sem resultado.

Levantou-se, com cuidado, tentando não bater em nada... tateou a parede até achar o lugar onde deveria ficar o interruptor, apertando-o. Nada... não era possível que a fortaleza estivesse sem luz. Sua mão desceu até a maçaneta, girando-a e abrindo a porta, passando através do corredor. Só então reparou que estava transformada, quando passou os dedos pelos cabelos com uma angustia crescente. As orelhas levantaram de imediato, ouvindo um som a sua esquerda. Sem saber exatamente o que encontraria, tentou materializar uma faca... mas seus poderes negaram-se a si mesmos, e o máximo que conseguiu foi o que parecia, pelo tato, ser uma pequena espátula.

–Mas que diabos...

–Kit?

Ela ergueu sua atenção a sua frente, tateando a procura do dono da voz, até o encontrar. Agarrou-o tão forte que os dois quase foram ao chão. –Ken... ainda bem que está aqui.

–Sim, eu estou, mas... o que está acontecendo?

Ela movimentou a cabeça, sabendo de antemão que a ação não poderia ser vista. –Eu não sei... a voz me acordou...

Sentiu-o fazer um carinho delicado em suas orelhas, o que ativou inconscientemente seu instinto de ronronar. –Aquela voz?

–A própria.

–Pensei que não a escuta-se mais... você não falou sobre isso de novo.

–Ela ficou um tempo sem aparecer. Mas hoje me acordou... e quando abri os olhos não enxergava nada.

–Incrível como consegue ser conveniente...

–Ou não... e você?

–Não consegui dormir. Ia pegar um pouco de ar. –ela sabia que ele estava pensando antes de continuar. –Talvez ver você...

–Hum... acho melhor deixarmos essa conversa pra depois...

–Verdade. Consegue acender alguma luz?

–Não. Provavelmente vai virar algo inútil se eu tentar. –ela contou em poucas palavras o acontecimento da espátula, que colocou na mão dele logo após. –Não podemos ir em direção as escadas, vai ser impossível descer nessa escuridão sem cairmos.

–E se procurarmos os outros...?

–Devem estar dormindo... e se não estiverem, vão nos encontrar. –ela estava começando a dizer quando sentiu o corpo dele ficar mais pesado, e no instante seguinte ela tinha que abaixar junto do mesmo para que ele não fosse ao chão. –Ken...?

Ele não respondeu... a mão dela apalpou de modo desesperado todo o seu corpo, como se espera-se encontrar algum ferimento, mas não havia nada... então sua voz chegou fraca a seus ouvidos.

–Kit... eu sinto muito, mas não vou conseguir ficar com você...

–O que? Por quê? O que está sentindo??

–Eu apenas vou dormir... okay?

–Você não pode simplesmente dormir e me deixar aqui! –ela o sacudiu. –Ken... por favor...

–Desculpe...

Sacudiu-o novamente, mas foi inútil. Ela já conseguia ouvi-lo ressonar, e sabia que estava sozinha desta vez... sabendo que continuar a tentar despertá-lo não levaria a nada, puxou delicadamente seu corpo para um canto, deixando-o escorado numa das paredes, e com cuidado para não pisá-lo, fez o caminho inverso, usando a parede do corredor de guia. O silêncio a incomodava. Aquela escuridão também, e mais que todo o resto. Parecia estar viva.

Kit chegou ao final do corredor, e parou. As escadas para os andares inferiores estavam ali, assim como a do terceiro andar. Ela decidiu subir. Com cuidado redobrado, sua mão ia acompanhando o corrimão e seus pés moviam-se um pouco de cada vez, tocando o degrau seguinte com os dedos antes de subi-lo. E assim, de modo lento, ela chegou ao andar seguinte, mais uma vez apoiando-se nas paredes. Ela tinha uma idéia de que a caixa de força ficava ali em algum lugar, mas não conseguia se guiar até ela. Quando conseguiu finalmente alcançá-la e tentou religar, nada aconteceu. Ela suspirou de modo pesado, encostando o corpo na parede oposta e deixando-o escorregar até o chão.

Sentia-se como uma criancinha com medo, depois de um blecaute. A diferença é que a criança não estava sozinha, e logo viria alguém com uma vela acesa e algumas histórias, e a aninharia e diria que estava tudo bem.

Ela sabia que não haveria luz ou um abraço protetor. E ela não era mais uma criança.

Abraçou os joelhos, abaixando a cabeça para tocar os joelhos e respirou profundamente.

“Está tudo bem... deve ser apenas um erro no sistema de força.”

“Você sabe muito bem que não é”

Por um minuto, Kit esteve feliz por ter uma voz esquisita em sua cabeça.

“É... eu sei.”

“Imagina o que é isso tudo?”

“Não... mas bem que eu queria.”

“Não se preocupe... eu lhe mostrarei.”

“Você?”

“Sim... eu. Acho que já está mais do que na hora.”

De dentro de seu corpo encolhido, ela viu que começava a surgir uma luz... esta foi se destacando dela, aumentando cada vez mais de intensidade, até tomar forma diante de seus olhos, e agora ela conseguia enxergar a sua forma real. Era uma dama branca. Tudo nela resplandecia, desde os cabelos loiros até os olhos de cor esbranquiçada, e as vestes, igualmente claras. E então ela soube quem era... a visão que tivera tanto tempo atrás, na véspera do dia da sua morte. A dama na janela...

–Você é um anjo?

Sim, ela sabia o quão bizarra era aquela pergunta, mas não conseguiu evitar. A idéia de anjos não entrava em sua cabeça. Não havia uma razão para isso... embora acredita-se e tivesse visto um milhão de coisas desde que cruzara as fronteiras daquele mundo, e talvez até antes disso, ela não conseguia entender o conceito de anjo.

Anjos são responsáveis por cuidar dos humanos, ouvira dizer. Mas ela não se sentia protegida por um. Ela morrera... os pais de Ken e Sacha morreram da pior forma possível. A mãe de Cloe também... e até mesmo de Nicolas. E os pais de Iris. E a antiga Equipe Black. E mais um monte de gente que não sabia e nem conhecia, mas que deveria estar sofrendo com os avanços da sua irmã paranóica.

E com tantas pessoas padecendo, onde estariam os anjos?

No momento atual de sua vida, só via duas opções: ou eles não existiam, ou não se importavam. E imaginar que uma horda de seres, que necessariamente deveriam ser bons, não se importavam, era doloroso demais. Então preferia apenas crer que não existiam.

–Um anjo, eu? –ela deu uma risada doce. –Não... de forma alguma.

–Ahh... –desviou os olhos para o lado. –E... então quem é você?

–Ainda não descobriu? –ela recostou-se na parede, fitando Kit, que ainda estava sentada no chão. –Uma pena... é uma garota tão inteligente... um pouco inocente, claro, mas...

–Sei... –a garota cortou, sentindo-se sem saber porque encabulada com a situação. –Eu tenho de descobrir sozinha?

–Seria interessante algo assim. Pense.

Kit mordeu o lábio inferior, piscando os olhos, e num instante, um pensamento lhe ocorreu.

–Luz... você é a luz... uma das pedras? Aquelas que eu tinha de juntar? –ao ver que a dama assentia com um sorriso, ela continuou. –Mas... por quê? Por que estava comigo esse tempo todo?

–Você era incapaz de lidar com certas coisas sozinha... por isso eu a procurei... para lhe trazer a minha benção...

–Mas você é parte dela... deveria estar com ela... não?

–Não exatamente... quando um imortal nasce são criadas pedras para aprisioná-lo... essa é a lei, para manter o equilíbrio, porque eles não podem morrer. Não há um padrão de quantidade ou qualidade... algumas como eu são auto-suficientes... outras não. O que quero dizer é que minha personalidade só estará ligada a ela quando estiver presa... e isso ainda não ocorreu. –ela inclinou a cabeça, fazendo os cabelos caírem sobre seus olhos. –E além do mais, foi-se o tempo que ela podia me escutar. Então eu tive de me afastar, e acabei chegando até você, em outra dimensão... muito longe para calcular. Mas a encontrei...

Ela tocou o rosto de Kit com a ponta do indicador. –A pequena Kit...

A jovem sentiu por um instante que toda aquela escuridão havia se dissipado, como se as coisas resolvessem de fato dar certo dessa vez, só com a simples presença da dama a sua frente... mas durou apenas um breve instante.

–Eu fico feliz em saber que se deu a este trabalho, mas... não poderia me explicar o que está acontecendo aqui? É urgente. SE a energia não voltar, pode haver uma invasão.

–Sinto informar, isso não é uma queda de energia...

–Não? –ela arqueou as sobrancelhas.

–Não... é uma outra força. Minha outra metade.

A mulher olhou por cima dos ombros, como se esperasse que algo aparecesse ali.

–É obra de uma...

–Sim... e minha amada irmã tem uma péssima personalidade... para não dizer um senso de humor negro... –fez um esgar, erguendo a mão para ajudar Kit a se levantar. –Aparentemente ela está usando uma redoma de escuridão.

–Com que finalidade? –a jovem se levantou e ajeitou-se, olhando para além do corredor por onde havia vindo.

–Me encontrar. Darkness está me procurando... talvez por um longo, longo tempo...

Kit preferiu manter-se em silêncio e utilizou-se da Luz que sua companheira irradiava para se guiar, logo chegando as escadas... se preparou para descer, ainda com cuidado. A dama só iluminava uma área pequena ao seu redor, e ela tinha que cuidar para ficar nesse local, ou acabaria caindo. Quando voltou para o segundo andar, conseguiu sentir uma presença opressora vinda do lado oposto do corredor. Embora não pudesse ver nada físico, ela sabia que existia alguma coisa ali. A escuridão parecia se adensar ainda mais naquela região, e depois de focar sua atenção completamente lá, conseguiu divisar que esta se juntava, começando a tomar forma.

Um par de pernas surgiu, assim como um quadril, tronco, ombros e face... a fisionomia era semelhante a de Luz, mas as diferenças de gosto eram gritantes. As roupas eram completamente negras, assim como os cabelos e os olhos... apenas a pele era clara, o que dava um contraste impressionante. A expressão era sisuda, o tipo que faria uma pessoa pensar duas vezes antes de sequer olhar para sua dona. Os olhos eram tão incisivos que causavam calafrios na espinha. Quando estes cravaram em Kit, a garota pensou que ia ser cortada ao meio só com aquele olhar.

–Light...

–Darkness...

–Francamente, minha irmã...

–Espere. –a outra ergueu uma mão para silenciá-la, o que fez com que a careta de desgosto ficasse ainda mais intensa. –Não quer saber o que houve antes de começar a me julgar...?

–Quer que eu seja sincera ou simpática...?

Light revirou os olhos, clamando por paciência. –Ah... como és impossível de se lidar as vezes...

Kit pensou que ela seria difícil de lidar sempre, mas não fez essa afirmação para que ambas pudessem ouvi-la.

–Eu “nasci” assim... como tu nasceste com um coração mole de manteiga derretida...

–Não é hora para esse tipo de briga... desfaça a redoma.

–Não irei...

A dama de branco ergueu uma sobrancelha. –Como não? Não querias me encontrar? Aqui estou...

–E achas que será simples assim? Abandonou-me para ficar vagando pelo Mundo Real, aquele lugarzinho atrasado e corrompido, e para guardar a garota que é a inimiga declarada de nossa senhora. Não, Light... não vim aqui apenas para procura-la... eu irei puni-la.

A aparência de calma que ela transmitia mudou-se para algo que beirava o sarcasmo. –Oh, sério? E pretende fazer isso como?

–Do jeito que faço melhor... irei apaga-la... –ela fez um sinal abrangente com um dos dedos e uma onda de escuridão se voltou contra as outras duas, deixando-as eclipsadas por algum tempo antes que uma centelha de luz irradia-se, começando a se espalhar novamente.

–Kit... não posso deixar que se intrometa...

–Er... mas não havia algo como juntar as pedras e coisa e tal...

–Acontece que isso é pessoal. –ela focou os olhos esbranquiçados na irmã. –Não é verdade?

–Tirou as palavras de minha boca.

A garota olhou de uma para a outra e sabiamente afastou-se alguns passos. –Se prefere assim...

–Muito compreensível da sua parte... por isso gosto de ti.

–Gostas de todo mundo, irmã. Mas vou fazer com que aprenda que nem todos são boa companhia.

–Estou esperando para ver.

Aos olhos de Kit, foi difícil entender o que aconteceu depois que Light proferiu aquelas palavras. Houve uma série de ondulações na claridade do lugar, tornando-se quase nula e logo após aumentando de maneira espantosa. A energia liberada era tão intensa que fazia a matéria vibrar. Ela teve de se encostar a parede para manter-se equilibrada, já que a pressão súbita afetava seus ouvidos. Era a mesma sensação de surdez que uma pessoa tem ao subir ou descer uma montanha. E não era das mais agradáveis...

Light e Darkness pareciam alheias ao estrago que estavam prestes a causar. Ambas as forças se moldavam de forma criativa, prendendo, quebrando e rechaçando. Um escudo fora criado para repelir uma chuva de espinhos negros. Um emaranhado de correntes foi designado a impedir a trajetória de uma lança de luz... e a impressão que se tinha era que estavam apenas se aquecendo.

Mas Darkness estava disposta a terminar as coisas o mais rápido possível. E sua rival não queria que a escuridão causasse efeitos colaterais nos humanos que estavam por perto. A dama branca empunhou sua lança com maestria, fazendo-a bater contra a muralha de espinhos que a irmã conjurara. –Já chega...

–Nós nem começamos.

–Eu digo que é melhor terminarmos por agora, enquanto ambas estamos inteiras.

–Ah... que bobagem! –a outra protestou, erguendo a barreira e lançando-a em um ataque preciso, que pareceu pegar momentaneamente sua irmã de surpresa... seu brilho quase se apagou por muito tempo desta vez. Por tanto que Kit achou que iria ter de brigar para fazer a escuridão voltar a ser uma boa e imóvel pedrinha. Os olhos negros vasculharam o ponto de luz a distância, tentando compreender a extensão do que ela acabara de fazer... antes que um súbito clarão a cegasse momentaneamente, e amarras fortes envolvessem seu corpo. Sua reação foi acusar a outra, embora seus braços estivessem presos o que a impossibilitava de apontar um dedo inquisidor a Light. –Sua trapaceira!

–Quem, eu? –ela levou uma mão ao coração, voltando a sua expressão serena. –Eu não trapaceei. Eu já lhe disse há muitos anos... a escuridão é a ausência da luz... e estou perfeitamente presente no momento. A noite pode ser sua aliada, mas ainda existe uma lua lá fora.

De fato, uma tênue coluna luminosa tinha rompido a barreira de sombras, passando através de uma janela no fim do corredor. A visão fez Darkness trincar seus dentes. A chuva havia cessado, e o céu abrira. Quem chegasse do lado de fora veria um firmamento pontilhado de estrelas.

–Até a Lua se apaga em um eclipse... até mesmo o Sol é tomado pela escuridão. E muitas das estrelas que olham para nós já estão mortas.

–Nem tudo pode morrer.

–Ah, pode sim. No entanto, a coisa que pode ceifar qualquer vida está muito longe para ser alcançada...

–Então deveríamos parar de falar nela. Vamos, irmã... renda-se.

Darkness apenas mordeu os lábios uma vez mais. –Como pôde? Logo vós... a santa e perfeita Luz. Eu esperava que todas as outras se revoltassem, menos vós.

–Não havia nada que eu pudesse fazer.

–Ela era boa! Cuidava de nós, apesar de sermos sua futura prisão. Você a abandonou! –ela estava tão transtornada que o seu ar formal se perdeu completamente.

–Eu apenas escolhi um caminho diferente... –Light desviou seus olhos para a janela. –Logo todas nós estaremos juntas de novo.

–Então é isso... –sua voz tornou-se um sussurro.

–Exato. Todos tem de pagar por seus erros. Cedo ou tarde. –Ela estendeu uma mão para a irmã, fazendo as amarras sumirem... pouco a pouco a barreira foi se desfazendo, até que as pequenas e fracas luzes que ficavam nas paredes do longo corredor voltaram a ficar visíveis. –Venha. Vamos nos reencontrar com as outras... não há mais nada para ser feito aqui, por enquanto.

A dama negra fez um aceno sutil com a cabeça, olhando enviesado para Kit. –Espero que saiba usar-nos muito bem, garota-gato. Se não fizer isso eu volto para termos uma conversa... a sós... –um brilho letal passou pelos seus olhos, e a garota estremeceu ao vê-la se transformar numa fumaça negra e espessa, que foi se condensando e moldando-se, até se transformar em algo muito pequeno, que Light apanhou entre os dedos.

–Creio que isso deva ficar contigo... –ela visualizou a coisa por alguns segundos, antes de colocá-la nas mãos de sua protegida com todo o cuidado. Era uma ametista bem trabalhada e talhada, mas que ao entrar em contato com sua pele de repente ficara bastante pesada. O que era ilógico até demais. Parecia que nem em formato de pedra Darkness gostava dela. Decidiu que iria colocá-la na caixa com as outras o quanto antes.

–Muito obrigada mesmo... não sei se iria conseguir sozinha.

A dama coçou o queixo. –Eu imagino que não nesse exato momento... mas quem sabe um dia. –Ela voltou a abaixar o corpo e tocou os cabelos da garota com os dedos, fazendo um afago. –Está destinada a ser uma grande campeã, pequena... a melhor entre as melhores. Porém ainda há um longo caminho a percorrer. E sinto dizer-lhe, eu não poderei mais acompanhá-la.

Kit engoliu em seco. –Por quê? Eu preciso de você... me ajudou com tanta coisa... eu não teria feito metade do que eu fiz sem a sua proteção.

–Acho que teria... pelo menos uma parte. –ela sorriu. –Já cresceu, Kit... não precisa mais dos meus conselhos. E eu tenho uma irmã com o orgulho ferido para cuidar. Devo isso a ela.

A jovem se sentiu subitamente culpada por aquela situação toda. –Sinto muito. Não era minha intenção causar isso.

–Não se preocupe. Darkness é teimosa, mas um tempo esfriando a cabeça fará com que entenda melhor as coisas. –ela piscou, e seu corpo também começou a se transformar. –A propósito, haverá de encontrar alguém muito importante para sua vida. Tão próximo e tão distante. Antes de encontrar minha ultima irmã, saberás de tudo...

–De tudo o que? Quem?

–É um segredo... um segredo guardado no futuro. Selado a sete chaves. O que o tornará algo bom ou ruim, será apenas uma simples escolha sua. –seu rosto se dispersou por ultimo, deixando apenas uma frase no ar, e um diamante lapidado e incrivelmente leve em suas mãos. –Boa sorte, Kit Black. As estrelas mostrarão seu caminho.

Kit foi sentindo um nó se formar em sua garganta, assim como uma sensação de incompletude. Tanto tempo acostumada a ouvir os conselhos de Light, suas andanças dentro de sua mente, que imaginar viver sem isso era melancólico. Ela balançou a cabeça para afastar tais pensamentos e segurou com mais força ambas as pedras. –Obrigada... por tudo...

–Kit? –ela levantou seus olhos para ver quem a chamava e deparou-se com Ken, que em questão de segundos cruzou a distância entre ambos e a pegou nos braços, fazendo-a rodopiar. –Ah... minha pequena gatinha... você está bem? –houve um momento ainda em que ele parou para observá-la de cima a baixo, esperando encontrar algum ferimento, mas ao ver que ela estava intacta um suspiro escapou de seus lábios. –Que bom que não se machucou...

–Não... não me machuquei. –ela abriu um sorriso e o abraçou com um pouco mais de força. –Está tudo bem...

–Acordei no meio do corredor... me sinto péssimo por tê-la deixado sozinha.

–Não se preocupe. Acho que não iria conseguir ficar desperto mesmo... era Darkness que controlava a escuridão.

–Quem...?

–Uma das pedras... –ela ergueu a mão direita, onde mantinha em segurança tanto a ametista quanto o diamante, e a abriu apenas o suficiente para que ele pudesse ver. –E a voz... era a Luz. Sempre foi...

–Espera... tinha uma pedra com você o tempo todo?

–Incrível né?

–Ainda estou tentando entender se tem muita sorte ou muito azar, Kit.

Ela riu por algum tempo segurando a mão dele com a esquerda. Tinha toda a razão em dizer aquilo. Rodopiou em frente a ele por algum tempo antes de parar.

–Agora sei que as coisas podem mesmo acabar bem, sabe?

–Fico feliz em saber, baixinha... –ele plantou um beijo em sua testa. –Precisa descansar... deve ter sido estressante para você.

–Fica comigo essa noite?

Ele franziu o cenho, afagando as orelhinhas de gato. –Tem certeza?

–Absoluta. –Kit puxou-o delicadamente pela mão. –Quero ficar com você. Tudo bem?

–Tudo para te ver sorrir amanhã. –deixou-se ser levado, logo adentrando o quarto e fechando a porta atrás de si.

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Quando um novo dia de fato surgiu, horas mais tarde, foi encontrado um bilhete no quarto que Hiei e Mitaray dividiam. Nada além disso. Ambos tinham ido sabe-se lá para onde, e não avisaram a ninguém... o sol os encontrara já longe da sede, dirigindo um dos jipes da imensa coleção de veículos que a Equipe Black juntara através dos anos. E pareciam com pressa...

–Você tem certeza que está certo sairmos assim?

–Não temos tempo... foi uma chamada urgente...

–Mas eles podem ficar preocupados...

–Hiei... –ele virou sua atenção para o colega, que freou o carro logo após para encará-lo. –É a Morte. Nós servimos a Ela, e quando Ela diz para irmos a nossa cidade investigar as fronteiras, nós vamos...

–Sim. Vamos. –ele fechou a expressão por alguns segundos, voltando a ligar o motor e pondo-os a caminho. –Mas... não estou com um bom pressentimento sobre isso.

Mitaray suspirou profundamente, passando a ponta dos dedos pela lâmina de sua foice. –Muito menos eu, meu amigo...

O outro não disse mais nada... apenas olhou uma ultima vez pelo espelho retrovisor e pisou fundo, pedindo aos Deuses que não desse nada de errado.

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Kira ainda segurava o bilhete entre os dedos trêmulos quando os outros integrantes da Equipe se reuniram na sala. Houve uma troca de olhares antes que as perguntas começassem.

–Maninha... o que houve?

–Onde estão os rapazes?

–O que está escrito ai...

A loira mordeu o lábio inferior, enquanto as vozes iam se intercalando e logo levantou o tom de voz para ser ouvida. –Ora, calem a boca!

Vários pares de olhos se viraram contra ela antes que pudesse continuar.

–Eles foram embora... sem previsão de volta...

–Mas por quê? –Kit perguntou, sentindo um bolo familiar se formar em sua garganta.

–Ossos do oficio... –ela estendeu de modo metódico o bilhete para a outra garota e voltou a subir as escadas, trancando-se em seu quarto por um bom tempo.

Cloe passou por trás de Kit para conseguir ler também, achando a atitude de Kira um tanto quanto estranha... mas quando passou seus olhos pelas linhas, não conteve a surpresa, levando uma mão aos lábios. –Meu Deus...

O conteúdo do recado não era muito extenso... ele revelava de forma sucinta a verdadeira identidade de seus donos, assim como o aviso de sua partida imediata. Não dizia mais nada, além de poucas palavras de consolo para quem ficava, de modo que não se preocupassem. Sem duvida, tinha sido redigido por Mitaray.

O choque demorou um pouco para se desvanecer no rosto daqueles ainda reunidos, com exceção de Crós e Nicolas. O primeiro apenas balançou a cabeça. –Estava imaginando quando isso iria acontecer. Para terem ido embora sem se despedir, as coisas devem estar realmente complicadas.

Mesmo assim, aquilo ainda era um duro golpe... porque nenhum deles esperava... e mandando-os para Vadolfer, não dava para ter certeza se poderiam ver qualquer um dos dois de novo... como Caçadores da Morte, estavam por sua própria conta e risco. E talvez fosse por este mesmo motivo que tomaram a decisão de ir embora antes que os outros acordassem, por saberem que seriam seguidos se não o fizessem...

E mais um dia desolado se seguiu, embora estivesse ridiculamente quente. Apesar do calor, porém, ninguém deixou a sede neste dia também. E quando o sol desceu sobre as colinas e em seu lugar um céu estrelado surgiu, trazendo Iris consigo, o que ela encontrou foi dois integrantes a menos do que esperava. Mas sabendo do motivo que existia por trás da situação, ela descobriu que nada podia fazer. Pois suas noticias também não eram das melhores, e o assunto a ser tratado dali por diante era de suma importância.

Iris havia descoberto pistas sobre o paradeiro do rubi de fogo, a ultima das pedras para selar Haradja. Contudo, estava muito além das mãos pequenas de Kit, longe demais para que seus braços pudessem levá-la até ele, ou até mesmo suas pernas.

–O rubi está perdido no Mundo da Imaginação, pelo que sei... a anos. –ela havia relatado habilmente suas desconfianças, e viu com o canto dos olhos que sua diminuta campeã estava a ponto de surtar.

–No Mundo da Imaginação? Como assim no Mundo da Imaginação? Ela não pode estar lá!

–Calma, gatinha... –Cloe colocou uma das mãos sobre o ombro da amiga, cujo rosto demonstrava uma inquietação intensa.

–Não tem como eu ficar calma, sabe quantas histórias devem haver lá? Quantas dimensões, quantas probabilidades? Não há maneira de eu achar um mísero rubi que seja no meio de tantos submundos diferentes! Eu levaria mais de anos...

Cloe manteve sua mão no ombro dela, murmurando palavras de consolo que não ajudavam em nada, já que ela própria era péssima nisso... em um dado momento, pediu licença para deixar a reunião e pegar emprestadas as outras pedras por um tempo, o que Kit respondeu apenas com um balanço de cabeça, nada convincente.

–Sem problemas...

Agora Sacha habilmente sacudia um grande leque ao lado de Kit, tentando refrescá-la, já que o nervoso deixara sua pele avermelhada, a beira de um ataque de pânico. Sua mão direita segurava a de Ken tão forte que ele sentia os dedos estalarem. –Kit... fique calma... para o nosso próprio bem, sim?

As palavras dele fizeram com que ela segurasse com menos força sua mão e relaxasse um pouco o corpo, mas não significava que estava muito melhor que antes.

–Na realidade, essa já tinha sido uma expectativa prevista... –Iris começou.

–Ela não vai. Não sozinha. –Eles ouviram uma voz mais distante protestar, e quando se viraram viram Nicolas, separado de todos eles, encostado na porta de entrada do cômodo.

A semi-fada abriu a boca, mas não parecia ser para discutir desta vez... de fato, havia uma certa urgência em seu olhar, que apenas o próprio Nicolas e talvez Crós pudessem entender. –Nicolas... você não está pensando...

–Vou com ela. – ele fechou os olhos, como se clamasse por algo em pensamento, e quando os reabriu havia apenas determinação em seu olhar... e uma infinita e profunda tristeza.

Mais uma vez subiu vários rumores no salão, assim como resmungos. Kit também precisou fechar os olhos para se concentrar por algum tempo e manter sua calma, levou uma das mãos a testa, respirou profundamente, e só então continuou, parecendo desta vez um pouco mais controlada. –Não há uma certeza de que eu possa achar o rubi rápido. Até lá Haradja já pode ter tomado o Reino inteiro...

–Mesmo que fique, se não ter em seu poder todas as pedras, não poderá de forma alguma fazer frente com ela.

–Não faz sentido encontrá-la para me deparar com um mundo destruído na volta... –o tom dela foi se transformando num lamento.

–Então corra... –Iris cruzou os braços, agora bastante séria. -Pelo bem de Diamante, pelo nosso... pelo de todos... você deve ser capaz de senti-la de alguma forma.

A jovem negou com a cabeça e se encolheu. Deixou seus olhos subirem pela parede e encontrarem a janela, vendo a noite lá fora... e as ultimas palavras de Light chegaram a seus ouvidos novamente.

–As estrelas mostrarão o caminho.

–Espero que estejam do nosso lado. –ela piscou, mudando de posição. –Então... chegamos a uma conclusão?

–Fui longe demais para que algo assim me impeça... irei partir. –ela sentiu Ken segurar com um pouco mais de força sua mão, e já tinha uma idéia do que ele pretendia dizer.

–Vou com ela...

–Infelizmente, não posso deixar. –Iris fechou ainda mais sua expressão. –Nosso contingente está reduzido. Sem Hiei e Mitaray, e agora, Kit e Nicolas. E também imagino que seja melhor mandar certas duas pessoas em uma pequena missão no Mundo Real... –ela lançou um olhar sutil para Sacha, antes de continuar. –Não... preciso de você aqui.

Ele definitivamente não gostou de tal decisão, mas teve a prudência de manter-se calado com relação a isso. Desta vez era ele que segurava a mão de Kit com uma força desnecessária. E com os nervos gerais um pouco mais alterados que o normal, a reunião foi encerrada.

Ken ainda parecia inconformado com a situação, mas sua namorada já começara a aceita-la. De modo que quando este abrira a boca, um tempo mais tarde, para fazer um protesto, ela levou um dedo aos seus lábios.

–Hei... acalme-se. Não é tão ruim assim.

Ah, ela estava apavorada, mas não ia admitir isso em tal situação. Isso só iria deixar as coisas ainda piores.

–Nem você acredita nisso...

Ela suspirou, fechando os olhos. –Hei... se lembra do Caminho da Ilusão? Como eu disse que iria com você e no final eu aceitei que deveria fazer aquilo sozinho?

Ele assentiu com a cabeça, desviando o olhar.

–É a mesma coisa... eu tenho que fazer isso... iria sozinha, mas eu me perderia com muita facilidade e... talvez nunca me encontrasse de novo. –balançou a cabeça, e segurou uma vez mais as mãos dele... seguiu as cicatrizes de sua mão direita com a ponta dos dedos, erguendo os olhos para ele. –Confie em mim. Eu vou voltar para você.

Mais uma vez Kit sentiu o corpo ser cingido por um abraço apertado, enquanto ele falava em seu ouvido. –Eu estarei a espera... por toda a eternidade, se for preciso. É uma promessa.

A garota o abraçou mais forte ainda e deitou a cabeça em seu peito. –Eu acredito em você...

   

Cloe pôs-se a trabalhar de imediato. Ela não descansou aquela noite, e nem nas subseqüentes. Com todo o cuidado e a inteligência que conseguira juntar, e com a ajuda de um certo feiticeiro, tentava a custo criar um tipo de máquina que servisse a seus desígnios... e chegou uma madrugada em que, finalmente, ela ficou pronta. E só então a garota chegou-se a Iris e afirmou que Kit de fato poderia ir...

Formando um novo objeto para guardar as pedras, foi criada uma caixa fina e arredondada, cuja tampa tinha um mostrador eletrônico, como uma bússola. Uma segunda tampa o protegia das intempéries que poderiam ser encontradas pelo caminho. A ponta da bússola estava preparada para apontar não para o Norte, mas na direção do rubi que faltava. As outras pedras serviam de catalisadoras e imãs, para que a agulha apontasse exatamente para a sua irmã desaparecida... Crós havia juntado a tecnologia a magia e o artefato parecia disposto a funcionar bem. O ponteiro insistia em mostrar a direção sudeste, embora todos soubessem que não havia nada ali, pelo menos naquela dimensão...

Kit nunca soube como agradecer a Cloe com relação aquilo que perdera noites para conseguir criar por ela... talvez nunca pudesse pagar a divida... ela a abraçou com tanta força que a jovem pensou que seria partida em duas, mas isso não aconteceu.

E então a viagem de fato foi marcada, e duas semanas depois da reunião, numa madrugada mais fria que o normal, Kit finalmente se preparou para deixar a sede, sem saber se iria ou não voltar...

Vestindo uma roupa quente e coberta por um sobretudo, com uma grande mochila as costas e uma mala de rodas, ela pisou para fora do quarto. Os longos cabelos estavam presos em um rabo de cavalo, embora ela soubesse que cedo ou tarde teria de soltá-los para colocar um gorro ou coisa que o vale-se.

–Não esqueceu nada? –Cloe perguntou, mostrando um certo nervosismo. Ela era a primeira a se aproximar, como sempre.

–Não que eu saiba... –ela deu de ombros. Não sabia mesmo. Aliás, estava com a impressão que realmente estava esquecendo algo, mas não sabia bem o que. Desviou sua atenção para o lado, vendo Nicolas deixar seu próprio quarto, e chegou a conclusão que não era a única a ter problemas com a viagem. Ele exibia profundas olheiras, e um olhar desolado, que nunca fixava em nada. Iris chegou ao lado dele, trocando algumas palavras em um tom extremamente baixo, e colocou uma das mãos em seu ombro. E só então se afastou para dirigir-se a Kit. E depositou o Olho de Osíris entre seus dedos.

–Leve-o. Será mais necessário para onde você vai.

–Não posso simplesmente desejar que o rubi venha para cá...?

–Não. O Olho é poderoso demais... só deve usá-lo em emergências, e saber pedir. Porque um pedido mal feito pode ser interpretado de maneira errada, e isso nós não queremos, certo? –ela deixou o artefato e ficou completamente ereta novamente.

–Outra coisa... você não deve interferir diretamente em problemas das dimensões que encontrar... isso pode causar um paradoxo e a destruição completa do lugar. Não se esqueça disso.

–Não vou me esquecer. –Kit prometeu, e recebeu um abraço em seguida.

–Boa sorte, Kit.

–Sorte é meu nome do meio... –a tentativa de piada não soou muito convincente, e ela passou para as próximas as quais deveria se despedir. Cloe e Sacha ainda a observavam de modo atento... a primeira daquela maneira nervosa de antes, a segunda com uma expressão de tristeza.

–Você vai ficar bem, não é?

–É claro... –Kit abriu um sorrisinho travesso para a amiga ruiva, que a despeito do pouco cérebro, ainda tinha muito coração. –Você me conhece... tenho tanta sorte...

–Você parece um imã para problemas tamanho gigante. –argumentou por sua vez Cloe, passando os dedos pelos cabelos encaracolados.

–Quem sabe isso sirva para algo no fim das contas. –ela abraçou ambas com força, mantendo-se assim por alguns instantes. –Fiquem bem.

–Que os Deuses a acompanhem... como dizem por aqui.

–Tudo vai dar certo.

Ela seguiu um pouco mais adiante antes de encontrar-se com Salem... o feiticeiro fez um carinho em sua cabeça, como era de seu feitio, e lhe entregou um pedaço de pergaminho, que parecia muito antigo. –Vai precisar disso para as viagens dimensionais... usar o Olho não é uma boa idéia.

–Iris comentou algo sobre isso.

–Ela é mais sábia do que deixa transparecer. –ajeitou o capuz sobre a cabeça. –Como já foi dito... deves usar a magia em um lugar extenso e isolado... a Ilha do Silêncio é perfeita saindo daqui, mas para além deste mundo, precisa achar lugares com estes critérios.

–Certo... entendi...

–Que bom que sim. –ele abaixou o corpo apenas o suficiente para beijar sua testa. –Até breve, minha aprendiz.

Ela sabia que o “breve” dele ia ser muito mais longo do que qualquer um esperava, mas preferiu não argumentar. E a porta, encontrou a ultima pessoa que deveria antes de partir.

Kira não parecia melhor que os outros. De fato, ainda estava profundamente chateada com a partida de Mitaray. No entanto, ainda juntara o mínimo de sarcasmo para lidar com Kit em sua própria viagem.

–Ora, se não é minha cunhada favorita...

–Eu não sou a única?

–É sim, mas não se gabe disso... –ela deu um soco leve em seu ombro, mas logo puxou algo do bolso para entregar a Kit. –Meu irmão mandou isso...

A jovem colocou o pergaminho de Salem em um de seus bolsos e estendeu a mão para segurar o que a outra estendia. Era um cordão prateado familiar, com um pequeno gatinho como pingente. E pela enésima vez Kit teve que lembrar a si mesma porque estava fazendo isso. Era por ele também, afinal de contas. Guardou o pingente e abraçou a loira. –Diga a ele que o amo, sim?

–Ele pediu o mesmo... considere o recado dado... –soltou-se do abraço, erguendo a mão direita fechada em direção a Kit. Ela tocou seu punho no dela e logo sorriu.

–Se cuida.

–Vê se volta logo... não tem mais ninguém aqui que eu goste de atormentar mais do que você...

Finalmente a garota conseguiu sair de fato da mansão, e colocar suas malas na picape. A parte traseira estava ocupada pela moto negra de Nicolas. Ela contornou o carro uma ultima vez, enquanto o rapaz abria a porta para a mesma, e lançou um ultimo olhar a janela. Havia uma pessoa debruçada, que lhe acenava um tchau com um dos dedos e falava algumas palavras, que obviamente ela não podia ouvir, mas podia muito bem deduzir. Ela sabia que aquilo tinha sido o melhor que ele podia pensar, por causa de sua promessa de “não fazê-la chorar”, e sabia que se ele tivesse descido, isso iria realmente acontecer. Então apenas ergueu a mão bem alto, e murmurou as mesmas palavras que ele, e soube que este entendera.

Com um breve sorriso nos lábios, sentou no banco do carona e viu Nick fechá-la, antes de passar pela frente do automóvel e entrar no lado do motorista. Ele girou a chave e fez a picape arrancar. E então, ambos partiram. Numa viagem que haveria de mudar tudo... e da qual Kit Black nunca se esqueceria... mesmo que se passassem dezenas de anos.

Pois além das estrelas e das fronteiras entre mundos, ela finalmente encontraria as respostas que tanto buscara...


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