O sol já havia se posto, levando com ele a luminosidade segura e deixando um tom arroxeado em seu lugar. Os murmúrios famintos dos pesadelos ao nosso redor começavam a correr pela calçada cinzenta, e passos cada vez menos hesitantes sussurravam em nossa direção enquanto o único desconforto dos Nightwalkers se esvaia em pequenos raios alaranjados.

- Ah, já estava com saudade desses monstrinhos do caralho - disse Mikael, pegando a lanterna a tempo de apontar o feixe para um vulto deformado que corria sorrateiro por nós.

- Acho que saudade é a última coisa que vou sentir desses desgraçados - murmurei, enquanto ouvia um grito rouco se aproximando de nós.

Virei a lanterna na direção do som forte que nos seguia, e vi a silhueta de uma criança pálida e pequena iluminando-se com o feixe branco, os olhos vendados por um pano rasgado e negro enquanto as unhas extremamente afiadas seguravam fortemente um pequeno urso ensanguentado, por que os Nightwalkers decidiam se materializar com objetos na mão, sendo que isso poderia prejudicar na batalha, eu realmente não entendia. Ou talvez o pequeno pesadelo ao meu lado realmente planejava me matar espancada por um bicho de pelúcia surrado. Seja como for, a criatura encolheu-se quando recebeu a luminosidade em si, e com um urro raivoso ela afastou-se, possivelmente procurando por alguma outra vítima para morrer com seu Ted assassino.

Iluminei uma garota que se aproximava, seu cabelo claro escorrendo como tecido por seu rosto, escondendo a expressão assassina que habitava seus olhos prateados. Ela ficou por alguns instantes parada, tentando caminhar por aquela luz que a incomodava, porém antes que conseguisse dar qualquer movimento perigoso ela desistira, esquivando-se rapidamente da lanterna.

Olhei para Mikael por um instante, percebendo algumas silhuetas arrastando-se entre nós. luminei cada ponto que nos separava, recebendo urros de frustração e ódio à minha volta, seguido de passos rápidos e atrapalhados dos pesadelos tentando se afastar. Quando finalmente cheguei perto o suficiente do garoto para conseguir distinguir sua figura iluminada sutilmente pela lua, notei que ele caminha lentamente enquanto conseguia desviar os monstros à sua volta.

- Você acha mesmo que alguns passos dados à noite vão nos levar mais rapidamente até aquela rua? - perguntei, enquanto um homem com o corpo distorcido tentava aproximar-se inutilmente de mim, recebendo minha lanterna em resposta.

- Não, porém meu destino hoje é um pouco mais perto que os cientistas - ele respondeu ofegante pelos incessantes ataques, pude perceber um leve aceno que ele fez apontando para algum local à nossa frente.

Olhei para o local, minha visão atravessando o mar de silhuetas prateadas dos Nightwalkers que se movimentavam costantemente em nossa direção, notei um ponto de luz esbranquiçada alguns metros a nossa frente e percebi que um poste solitário tentava iluminar um pequeno círculo da rua escura que nos cercava.

Não pude conter a sensação de pânico que alarmou minha mente, enquanto as imagens da garotinha de sorriso diabólico que outra noite nos esperara chorando abaixo de uma iluminação como aquela invadiram minha mente, tentei livrar-me do medo, observando os Nightwalkers raivosos que tentavam chegar perto de mim. Minha situação naquele lugar iluminado seria melhor do que onde eu estava, mesmo que eu tivesse que enfrentar uma criança chorosa para sobreviver.

Um riso rouco flutuou abruptamente aos meus ouvidos, acompanhado de uma respiração ruidosa próxima à minha garganta, virei-me e iluminei o rosto de uma criatura pálida, o sorriso de uma mistura de negro com o escarlate de suas vítimas sendo engolido por sua expressão de pânico quando foi atingida pela luz, fazendo-a correr rapidamente.

O som de metal chegou a mim repentinamente, e antes que eu pudesse me indagar como aquele barulho estranho chegara ao local, um cavaleiro enferrujado apareceu à minha frente, suas mãos segurando uma lança escura como sua armadura. Eu não sabia dizer se o vermelho do material seria de ferrugem ou de sangue. Apostei na primeira opção, mesmo que aquilo parecesse impossível.

Joguei a luz para ele, e tive vontade de rir em ver seus membros rígidos tentando se afastar dali sorrateiramente, aquele Nightwalker não havia acertado na transformação, pensei comigo mesma, enquanto avançava com Mikael ao meu lado, nós dois nos dirigindo ao ponto branco do poste que se transformara em nossa estranha esperança.

Nos aproximamos do local depois de alguns minutos de ofegos e gritos contidos, iluminando as friguras sinistras que chegavam rapidamente ao nosso redor, com seus gritos rasgados de fome e vitória até que fossem afastados por nossas lanternas. Mikael deu um salto para a pequeno círculo prateado que os pesadelos tentavam a todo custo evitar, no mesmo momento em que uma pata de garras ameaçadoras cortava o ar em que ele estava momentos antes.

Observei o garoto cair firmemente no local prateado, olhando para o corpo como se quisesse ter certeza que realmente estava vivo. Logo depois ele olhou para mim, com um sorriso vitorioso, porém sua expressão mudou no mesmo momento para preocupação, e sua boca abriu-se em um alarme que não chegara a se declarar, quando ele observou algo por sobre meus ombros.

Antes que eu pudesse elevar meu braço para iluminar a criatura que assustara Mikael, uma mão totalmente rubra segurara meu pulso, fincando as unhas negras na minha pele, a ponto de fazer uma linha fina de sangue sair do local. Soltei a lanterna quando senti as pontadas da dor afiada que começara a controlar meus dedos, fechei minha outra mão e tentei socar o Nightwalker que já começava a rir descontroladamente, porém no momento em que meu golpe ia acertar o que eu achava ser o rosto do pesadelo, sua outra garra segurou o movimento e torceu meu braço, fazendo-me gritar repentinamente.

- Emily! Emily! - Mikael chamava-me do lugar seguro em que estava, em seus olhos sua indecisão era refletida, até que foram preenchidos por uma decisão.

Ele preparou-se para o que estava prestes a fazer, observando minha luta já definida com a criatura escarlate, eu queria gritar pedindo para ele desistir, porém eu sentia que se tentasse abrir meus lábios o único som que sairia seria um urro de completa dor, e naquele momento eu não queria dar o pequeno prazer de me ver sofrer para o Nightwalker que me segurava.

Mikael correu para onde eu estava, não muito distante do poste em que ele se encontrava antes. Assim que seus pés pisaram no asfalto negro e seu corpo foi engolido novamente pela escuridão, mãos esqueléticas e gritos de satisfação vieram de nossa plateia, todos os pesadelos tentando inutilmente agarrar-se à carne do garoto, porém sendo afastados pela luz que já ficava fraca de sua pequena lanterna.

O garoto chegou até mim, enquanto eu tentava me soltar do abraço torturante que o Nightwalker colocara sobre meu corpo. Consegui afastar uma de minhas mãos de suas garras que ainda rasgavam meus braços por um momento, estendendo-a a tempo para que Mikael pudesse pegá-la.

Senti sua mão cobrindo meu pulso machucado, e então Mikael tentou me puxar para o local em que estava antes, iluminando os Nightwalkers ansiosos que ainda nos cercavam esperando por uma brecha em nossa proteção amarelada para poderem nos pegar. Eu travava minha própria luta para conseguir libertar o resto de meu corpo, conseguindo aos poucos soltar-me em meio aos chutes e arranhões instintivos que eu depositava no Nightwalker ainda coberto pelas sombras.

A mão do pesadelo afroxou-se sobre mim por um momento, e senti nisso a chance que tinha de me salvar. Depositei o chute mais forte que poderia na direção da criatura, recebendo um urro de surpresa em resposta, denunciando que eu havia acertado o alvo. Os braços do Nightwalker afastaram-se de mim, e no mesmo momento a força que Mikael fazia para me puxar tornara-se forte a ponto de nos fazer correr aos tropeços por entre os pesadelos modelados que nos cercavam.

Senti dentes rasgarem minha camiseta surrada e garras arderem enquanto passavam violentamente por minha pele, porém antes que algum ser conseguisse por suas mãos escorregadias em nós novamente, encontrei a linha branca que separava o espaço iluminado pelo poste daquele sonho em negrume. Mikael não soltara meu braço dolorido, e por causa disso no momento em que ele pulou novamente para dentro do local o movimento não saiu como ele previra, e acabamos os dois perdendo o equílibrio e encontrando ruidosamente o chão aspero que nos esperava.

Senti os novos arranhões causados pela queda arderem irritantemente em minhas mãos que eu tentara usar para me proteger enquanto caía, Mikael arfava próximo a mim, o que significava que ele havia se salvado como eu, e estava na mesma situação cansada em que eu me encontrava.

Abri os olhos, recebendo o brilho leve da luz refletindo-se na rua negra ao meu redor. Olhei para o meu lado, e encontrei Mikael levantando-se com dificuldade como eu, seu olhar encontrando o meu por um instante enquanto um sorriso de alívio iluminava seus lábios levemente vermelhos por um pequeno corte em sua boca.

Sorri como resposta, e levantei meu corpo a ponto de sentar-me para observar a paisagem apocalíptica que me assistia. Uma multidão de monstros movimentava-se a minha volta, seus corpos instáveis rastejando pela linha branca que separava minha segurança de seu medo, os membros estalando com suas ações rígidas e os urros de ódio que rasgavam suas gargantas secas ecoando pela madrugada escura, dando ao momento uma terrível música de fundo.

- Precisamos tratar de seu machucado - disse Mikael fracamente, seu corpo encostado no poste escuro, sua posição largada denunciando a  exaustão que sentia.

Andei lentamente até ele e sentei-me encostada no metal, olhando o corte profundo que marcava a pele suja em meu pulso, enquanto o sangue traçava caminhos escarlates lentamente por meu braço.

- Nada que eu não possa resolver - respondi, olhando novamente para os monstros irritados a nossa volta.

Mikael soltou uma risada rouca.

- Se eu te salvei para você morrer sangrando por causa de sua insistência momentos depois, eu juro que te caço aonde você estiver para esses amiguinhos te visitarem novamente - ele apontou para os Nightwalkers, recebendo olhares prateados nada amigáveis como resposta da platéia que nos observava.

- Você não conseguiria me vencer, nem se quisesse - disse, enquanto encostava-me o mais confortavelmente possível naquela superfície gélida, sentindo a adrenalina de minutos antes seder lentamente ao cansaço de tantos dias sem dormir.

O garoto apenas deu de ombros com um sorriso no rosto novamente, deixando a música dos pesadelos frustados preencher o ar a nossa volta.

Soltei um bocejo sem que pudesse evitar, recebendo um olhar compreensivo de Mikael.

- É melhor você dormir - ele disse, calmamente - Eu cuido das coisas por aqui.

Antes que pudesse pensar em uma resposta, minhas pálpebras começaram a pesar, levando-me a cerrar meu olhar em poucos segundos.

Senti um arrepio subir minha espinha antes de mergulhar no sono tão convidativo, assim que vi a figura iluminada parcialmente pela luz que nos protegia. Suas garras negras ainda tinham as marcas vermelhas de meu sangue, enquanto seu corpo todo parecia pintado do mesmo tom escarlate.

Seu rosto era da mesma cor, a pele rubra contorcendo-se a ponto de deixá-lo muito distante da aparência de um humano. Apenas seus lábios rachados pareciam encaixar-se em sua expressão indecifrável, a boca contorcendo-se em um sorriso cruel que guardava sua promessa de vingança.

Os olhos me observavam, parecendo querer guardar todos os detalhes da vítima que escapara de suas mãos por poucos segundos. Seu olhar era faminto.

E completamente negro.