Já haviam se passado horas e nada de Haku acordar, tudo bem que o impacto fora extremamente grande, mas em tais circunstancias eu não conseguia me tranqüilizar.

Haku estava ardendo em febre...o rosto corado e a expressão de dor já diziam que por dentro ele talvez estivesse tendo uma luta complicada.

 Respirei fundo e deitei-me sobre o pequeno e surrado colchonete que Kamaji havia me dado, o tempo todo encarei a feição de Haku e aos poucos, com os panos úmidos em sua testa e todos os cuidados necessários sua face de dor ia se dissipando, dando lugar a um rosto mais tranqüilo e menos rubro.

 Fechei meus olhos por um instante... Kamaji havia voltado a seu posto para atender aos pedidos de água pendentes, os empregados não sabiam do ocorrido com Yubaba, e os que sabiam foram ameaçados de morte por Haku, graças a isso o trabalho continuava sem tumultos.Já eram pouco mais de sete da noite, graças ao cansaço e a tensão,talvez por um milagre consegui pegar no sono.

••

Abri meus olhos de forma vagarosa olhando em volta, eu já não estava mais do lado de fora da casa de banhos, pelo teto e as paredes, eu estava na sala das caldeiras. Tentei me levantar, mas era algo quase impossível, meu corpo todo latejava, meu coração falhava as batidas e o ar não chegava até os pulmões. O que havia acontecido mesmo?...

 Aos poucos, com certo esforço movi-me no colchão e consegui me sentar sentindo uma forte pontada na cabeça, o enjôo veio junto e com isso tudo que consegui fazer foi levar uma das mãos a boca com dificuldade e rosnar revoltado comigo mesmo... Como eu havia me tornado fraco.

-Haku? –Ouvi a voz conhecida sussurrar meu nome e me virei para ver de onde vinha.

-Kamaji o que ho- - Parei de falar vendo-o fazer um sinal de silêncio com o dedo e apontar para o lado.

 Desviei meu olhar para o chão e finalmente vi o motivo de sua preocupação, havia uma pessoa ali... Uma pessoa que eu sentia necessidade de saber quem era...E por algum motivo, tinha a sensação de já conhecer.

 Levantei-me com dificuldade, minhas costas trincavam em dor e a tontura era intensa e devido à fraqueza acabei cedendo, cai de joelhos no chão fazendo um grande estrondo no assoalho antigo abaixo de mim.

-Haku, pelo amor de Deus!Pare de se esforçar!

Eu não conseguia olhar nos olhos de Kamaji... Eu não queria nem se quer olhar para mim mesmo.

••

Acordei ouvindo murmúrios baixos e um tanto desesperados, meu corpo estava pesado, mas mesmo assim consegui me mover devagar ficando de bruços.

-Está me ouvindo?Você precisa ter calma!-Ouvi ao longe Kamaji sussurrar e virei meu corto devagar,abrindo os olhos em seguida.

 No inicio a imagem estava embaçada, mas logo pude ver o que estava havendo.Kamaji estava segurando os ombros de Haku enquanto ele estava sentado no chão, o rosto baixo,os cabelos cobrindo a face.

-Haku!!-O chamei me pondo em pé o mais rápido que consegui.

Corri até ele me ajoelhando a sua frente, segurei seu pulso e o puxei devagar para que sua mão descobrisse o rosto.

-Haku...-O chamei novamente colocando uma das mãos em seu queixo o puxando para cima para que ele me olhasse.

 Os olhos dele dobraram de trabalho,estavam marejados, a face molhada...Isso já era o suficiente para que eu soubesse de seu choro.limpei suas lágrimas com o polegar e sorri...Mesmo naquela situação era um alivio vê-lo na minha frente.

-É você...-O ouvi sussurrar

-Eu voltei...Kamaji foi até lá me pedir isso.

-Por que voltou?...Você não devi-

-Sei que talvez não devesse mesmo, mas queria te ajudar.

 Haku não me respondeu, apenas abaixou novamente o rosto, soltando minha mão de seu pulso e afastando o rosto do meu toque.

-O que foi?

-Não quero que me veja dessa forma...

-Haku, você não tem culpa...

-Sim, eu tenho!!-Falou alto cerrando os punhos.

-Não... Você não tem.

-Como pode dizer isso? Olhe para mim, olhe o meu estado! Me tornei um fraco, sucumbi a pouco e cai nesse poço!

-Haku, Kamaji me contou tudo,você foi enganado!Pare de se culpar assim.

-Olhe para o que me tornei Chihiro...Sou um monstro!Sou um fraco!

-Parem!Haku, você precisa descançar- Kamaji dizia enquanto tentava fazer com que Haku não se levantasse.

-Novamente eu te digo, você foi enganado!Pare de achar que tudo está perdido.Eu vim aqui te ajudar, não foi?

-NÃO DEVERIA!

-MAS EU VIM!

-CHEGA!!- Kamaji gritou alto o suficiente para assustar a nós dois.

 Cerrei os punhos e desviei o olhar... Eu havia saído do meu mundo para ajudá-lo, fiquei feliz ao reencontrá-lo e é isso que estou ganhando por tentar ajudar a pessoa que eu tanto amei?!Por mais que eu quisesse entender o nervosismo e a situação dele... Tudo que eu conseguia sentir naquele momento era raiva e desgosto por estar sendo tão menosprezada daquele jeito.

-Sim, chega... Se não quer minha ajuda Haku, então não o ajudarei!-Falei me levantando e voltando até o colchonete, peguei meus sapatos, os calcei e me direcionei a porta.

-Chihiro calma, aonde vai?-Kamaji perguntou segurando meu braço.

-Embora.

-Chihiro, acalme-se primeiro, por favor.

-Escute aqui Haku, se voltei para ajudar foi por que me importo com você, mas se não quer minha ajuda, livre-se sozinho desse seu enorme problema, senhor orgulho.-Falei soltando-me do toque de Kamaji.

 Em esperar mais nenhuma resposta, levei a mão à fechadura e me retirei dali. Haku estava sendo infantil, e por mais que eu tentasse ver o lado dele naquela história, só o fato de ter falado como se minha presença fosse inconveniente, já fez com que meu sangue fervesse.

 Subi a longa escadaria novamente, precisava pensar, estava sendo demais tudo aquilo! Eu esperava ao menos um “que bom vê-la” ou “Fico feliz que esteja aqui” e não um “você não deveria ter vindo”, de qualquer forma a vida nunca é como queremos, já notaram? No final das contas como minha mãe me disse uma vez “Aprenda uma coisa: a vida NÃO É BELA”.

-Queria saber o que raios ele tem na cabeça?Que droga!-Xinguei baixinho enquanto passava pela ponte de entrada da casa de banhos.

-S-Sen?...-Ouvi uma voz feminina atrás de mim e bufei contrariada, não gostava daquele nome.

-É Chihiro!-Respondi ríspida virando-me para ver quem era.

-SEEEN!

Assim que me virei tudo que tive tempo de fazer foi me segurar para não cair com o impacto do abraço que aquela moça me dava.

 Depois de um tempo fui percebendo que já a conhecia, era nada mais nada menos do que Lin.Tirando os cabelos um pouco mais longos presos em uma trança, nada estava diferente.

-Lin?

-Sim eu mesma! Quando voltou?

-A pouco...

-Diga que veio nos ajudar,por favor diga!

-Acalme-se... Eu vim sim mas..

-Ah! Graças aos céus!Muito obrigada Sen!

As palavras dela e aquele agradecimento... Fizeram-me realmente pensar se na minha frase esse “mas” cabia em algum lugar.

••

-Mas o que deu em você afinal?Ela veio aqui por vontade própria quando podia simplesmente ter te abandonado Haku!

-Foi melhor assim!

-Melhor assim?Se você não sabe só tem mais um ciclo de lua pra se tornar um demônio completo!Se isso acontecer NADA vai poder salvar você, esse mundo acabará e o de Chihiro acabará aos poucos!

-Se ela ficasse Kamaji, em algum momento eu poderia tê-la atacado e a matado, acha que me perdoaria por isso?Acha que eu quero viver com ela ferida ou com o peso da morte dela sobre mim?

-Se você não deixá-la te ajudar Haku, a morte dela será inevitável.

 Foi tudo que ele me disse antes de se retirar... Eu fiquei feliz em vê-la novamente, realmente a queria perto de mim, mas só de imaginar que posso feri-la... Toda a minha felicidade se esvai.

 Embora eu entendesse as palavras de Kamaji não suportaria saber que a feri, preferiria a morte a isso...

Respirei fundo levando uma das mãos ao rosto, minha cabeça latejava ainda, meus olhos estavam ardendo e minhas costas pareciam ter sido esmurradas por horas a fio... De qualquer modo nada daquilo me importava no momento. Com dificuldade, levantei-me devagar e me coloquei a caminhar por aquela sala durante alguns minutos, com isso meu corpo voltava a sua normalidade, e me senti forte o suficiente para fazer um esforço maior e ao menos sair para tentar achar Chihiro e pedir desculpas.

 Decidi ir por dentro da casa de banhos, a longa escadaria lá fora não me causava muita animação.Abri a pequena porta de madeira e sai,passei pela ala das carnes, desci algumas escadas, passando pela ala de congelados, dos animais e agora sim eu estava do lado de fora. Andei mais um pouco até finalmente chegar á ponte principal.Olhei em volta mas ela não estava lá.

- Sinto que fiz uma besteira... Mesmo não tendo sido por mal.-Sussurrei comigo mesmo voltando a caminhar.

 Olhei em todos os cantos possíveis, e só quando já estava decidindo, a achei. Chihiro estava sentada na escadaria em que um dia eu a deixei para ir embora e lhe fiz uma promessa... Cuja qual eu nunca pude cumprir...

 Caminhei até próximo dela e me sentei ao seu lado, respirando fundo e soltando o ar todo de uma vez.

-Chihiro... Eu sinto muito...

-Não sinta, apenas disse o que realmente acha, não é?

-Pare com isso... Sabe que não é verdade.

-Sei que não é verdade? Sinceramente? Este mundo está tão mudado que eu já nem sei mais o que é real.

-Escute, Minha situação não é das melhores, já sei bem que não estou mais com controle sobre o meu corpo, além do que, descobri por que acordei nas caldeiras pelo lindo estrago logo na entrada da casa.Pelo que me disse Kamaji te disse tudo, e eu também estou ciente de ter pouco tempo, mas mesmo assim...

-Mesmo assim você prefere desprezar minha ajuda e achar que dá conta de tudo sozinho.

-Chihiro, eu não suportaria se você viesse se ferisse por minha causa!Não estou de forma alguma desprezando sua ajuda, até por que sei bem que não conseguirei lutar sozinho, mas preocupo-me com seu bem estar!Eu já... Feri seu coração um dia com uma promessa que não pude cumprir, não quero feri-la fisicamente.

Esperei por uma resposta durante longos minutos, mas esta não veio... Chihiro parecia estar refletindo, era estranho vê-la não falar nada.

-Chi-

-A partir de qual degrau desses não consegue avançar?

-O terceiro...

-Entendi.

-Escute eu...

-Haku, para. Já entendi muito bem que tem medo que eu me machuque, mas eu não sou nenhuma bonequinha de porcelana, vou conseguir me virar e te ajudar!

-Mas e se algo acontecer a você?

-Nesses anos todos que você esteve longe eu aprendi que as vezes é importante parar de zelar por mim mesma e pensar no que esta a minha volta.

-Não seja inconseqüente!

-Não estou sendo,mas se acha, é como disse vire-se sozinho.

Certo, Chihiro havia se transformado em uma mulher de opinião e não estava sendo fácil convencê-la do melhor.

-Eu entendo você, mas coloque-se no meu lugar por favo-

-Come!-Foi tudo que ela me disse quando levantou uma pequena amarração de folhas próximo ao meu rosto.

-Hã?

-Coma, você precisa repor suas forças.

 Sem entender muito bem, abri o embrulho e vi alguns bolinhos de arroz ainda mornos.

-A Lin me deu.

-Então vocês se reencontrarão?

-Sim, a poucos minutos quando estava indo embora, ela foi até a cozinha e pegou isso.

-Entendo.

-Vamos, coma, isso vai te ajudar.

Enquanto começava a comer, recordava que a sete anos eu havia feito o mesmo por ela...

 Chihiro não voltou a se pronunciar, mas pelo leve sorriso já se sentia um pouco mais tranqüila.

  Ao terminar levantei-me com dificuldade, respirei fundo e fechei os olhos, a um bom tempo eu não conseguia sentir uma brisa tão fresca.

-Vamos voltar, preciso refazer seus curativos – Ouvi Chihiro falar e logo depois levantar-se também

-Tudo bem...

-E Haku...

-O que foi?Perguntei a olhando.

-Eu vou te ajudar, não importa o que ou quem eu precise enfrentar.

Pelo seu tom de voz ela estava realmente confiante e não desistiria... Logo o que me restava era sorrir e confiar nela...