Shamandice escrita por Prana Zala


Capítulo 8
Um cheiro familiar




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"Mais do que os olhos são capazes de enxergar, os outros sentidos reconhecem aquilo que é importante"

Há mais de um mês Afrodite praticamente não aparecia em público. Há anos treinava sozinho, e continuava a fazê-lo, sendo visto apenas quando raramente aparecia no refeitório ou ia a algum dos encontros planejados por Aldebaran, que fazia todo o esforço para manter os cavaleiros de ouro mais unidos do que pelo simples fato de terem escolhido a mesma vida. Ninguém fora procurá-lo, exceto Shaka, por quatro vezes, porque todos ou não tinham muito contato com ele ou não se preocuparam com seu afastamento. Somente o Cavaleiro de Virgem reparara que o sueco sumira após a discussão com Milo no refeitório e imaginara que algo poderia não estar bem, porque somente Shaka verdadeiramente o considerava um amigo.

Peixes odiava longos períodos de solidão, porque sempre acabava agarrado a fotos da infância. E era justamente as lembranças da infância que o faziam se isolar aqueles dias! Desde que chegara ao Santuário, ele contava três crises de depressão e isolamento, que quase lhe tragaram a vida: a primeira, quando seu mestre o traiu; a segunda, quando Milo o traiu; a terceira, quando ele a si próprio e Claire. Seria aquela a quarta...? Não, não estava depressivo, apenas queria pôr a cabeça em ordem para poder pensar em paz. Das outras vezes, ele mal comia, mal dormia, não tinha vontade de levantar ou falar, apenas de morrer; desta, era só a tristeza quase incontrolável. Nem a drogas tinha recorrido ainda!

Mas, olhando as antigas fotos mais uma vez, olhando as fotos de Claire durante a infância, não conseguia parar de pensar em quando tentara se afastar da moça. Mentira diversas vezes, dissera coisas horríveis, fizera de tudo para afastá-la (chegara a dizer que ela era insuportável e que pouco lhe interessava se ela estava viva ou não!), mas ela voltara para perto de Milo e Afrodite. Naturalmente ela se magoou com a atitude do sueco, que, bom ator como era, realmente a fizera acreditar que ele não a queria mais por perto, mas ela o perdoara como poucos o teriam perdoado. Ele tinha uma razão para seus atos e ela o compreendeu. Na ocasião, apesar de já inimigos, Milo e ele concordaram que ela era muito importante para ambos e que eles iriam contar a verdade a ela sobre o Santuário e sobre o fato de serem cavaleiros, desde que ela mantivesse a mentira de Afrodite para os demais conhecidos do pisciniano. Ela aceitou a condição para permanecer próxima a eles e desde então tinha sido seu único elo com o passado que tanto queria esquecer.

O motivo da depressão não havia sido propriamente a traição a Claire, apenas fora na mesma época e pela mesma ocasião. Ele mentira para a amiga e para mais pessoas, destruindo todas as chances em voltar para a vida que tinha antes de ser cavaleiro. Quando decidiu "fazer o teatro", nas palavras de Milo, ele não imaginou que a sensação de perda fosse sufocá-lo tanto, fosse afundá-lo tanto, fosse doer tanto a ponto de fazê-lo tentar parar a dor acabando com a própria vida. Nessa hora, não houve Milo para pará-lo, como houvera quando seu mestre o traiu; nessa hora, não houve Saga para dar a ele algo com o que se ocupar como quando Milo o traiu; não, nessa hora ele teria estado completamente sozinho se Claire não tivesse descoberto as mentiras e corrido a seu encontro. Nem ele sabia o que ele poderia ter feito a si mesmo se ela não o tivesse encontrado no mercado ateniense e abraçado-o aos prantos no dia em que ele tinha decidido que não voltaria vivo ao Santuário. Claire era seu pequeno tesouro, alguém por quem ele daria a vida sem pensar, alguém que ele amava ainda com a mesma pureza de quando criança.

Ele pegou sua foto favorita da garota e colou-a embaixo da que tinha de Milo na parte interior da porta do guarda-roupa. Agora poderia lembrar-se dela também toda vez que abrisse aquela porta. Se as duas pessoas retratadas nas fotos acima daquela só lhe traziam dor, Claire poderia dar-lhe um pouco de forças para continuar lutando. Na foto, a linda garota de longos cabelos vermelhos como o sangue sorria, enquanto abraçava o mesmo coelho da foto acima, e devia ter a mesma idade das crianças da outra foto, mas o coelho já estava muito maior, demonstrando que a garota era alguns anos mais jovem do que os amigos.

Não entendia o porquê de Claire ter contado a eles sobre a doença daquela pessoa. Ela sabia que ele não faria nada, e também deveria ter ficado surpresa com a atitude de Milo em mandar flores e um cartão. De fato, Milo realmente jamais mentira, apenas sumira, mas tanto a ruiva quanto o sueco acreditavam que o escorpiano tinha tanta intenção de entrar em contato com as pessoas que deixara para trás quanto Afrodite. Talvez a doença fosse tão séria, talvez a iminência da morte fosse tão certa que ela não conseguiu se controlar e tentou realizar o possível último desejo da mulher que os três tanto amavam. Por Zeus, se pelo menos fosse Antoi...!, pensava repetidas vezes o cavaleiro. Se fosse a mulher que Milo odiava tão profundamente que estivesse morrendo, nada teria mudado. Não que algo fosse mudar, mas seria mais fácil ignorar a situação. Mas Antoi nunca desejaria ver nem Milo nem Afrodite novamente (aliás, era muito mais provável que não os ver mais naquela vida fosse seu último desejo). Zeus, por que a vida era tão difícil de ser vivida?

Fechou bruscamente a porta do guarda-roupa quando sentiu a aproximação de Athena. Recolheu todas as fotos e guardou-as no armário, onde ninguém pudesse vê-las, nem o próprio Cavaleiro de Peixes. Adiantou-se até a entrada de Peixes, para saber o que sua deusa queria. Era raro ela passar pelas Doze Casas, deveria ser importante.

Ela descia as escadas com Aldebaran, aproveitando a volta deste à Segunda Casa. Athena decidira visitar seu cavaleiro devido à preocupação com o seu afastamento, receosa de que ele não estivesse se sentindo bem ou que algo o estivesse incomodando. Afrodite sentiu-se lisonjeado, agradeceu a preocupação e disse que estava muito bem, apenas se afastara para se concentrar no possível ataque dos santos de Apollo. Ela pareceu bastante aliviada, mesmo porque em uma época de dificuldade como aquela, ter um cavaleiro abalado física ou psicologicamente não era uma ideia reconfortante.

Peixes, um pouco por educação, um pouco por puro e sincero agradecimento, convidou os dois para entrarem e tomarem uma xícara de chá. Diferentemente de Aldebaran, que aceitou de imediato, Athena quase declinou do convite, mas acabou aceitando por sua política de aprofundamento dos laços, a mesma que a levara a começar a comemorar os aniversários de seus cavaleiros de ouro.

A Décima Segunda Casa era um exemplo de limpeza, organização, bom gosto e decoração. Se Máscara da Morte gostava de decorar a sua casa com rostos, o sueco a decorava com rosas de diversas cores e alguns quadros em perfeita harmonia. De todas as Doze Casas, aquela era, certamente, a com a qual Athena mais se identificava, a única que ela não mudaria uma única rosa de lugar se ali morasse. Ela própria não sabia do passado da maioria de seus cavaleiros, mas olhando o misto de requinte e simplicidade da decoração ela chegara diversas vezes a cogitar se Afrodite tivera, pelo menos, contato com alguma família rica durante a infância. Só que Saga uma vez comentara que Peixes também não tinha família...

Já Aldebaran pouco se interessava pela decoração, bom gosto ou organização, dificilmente reparando no ambiente no qual se encontrava, porém, por puro acaso, daquela vez ele reparou em um pequeno pingente dourado caído no tapete da sala. Se a casa fosse um pouco menos organizada, talvez o deslize de Afrodite tivesse passado despercebido ou nem gerado a curiosidade necessária para que Touro resgatasse a jóia perdida que tanto já tinha significado para o sueco, que há anos tentava se desfazer dela. Já de posse do pingente, o brasileiro analisou a letra "M" tão cuidadosamente esculpida em relevo dentro de uma gota, numa pedra azul cristal. Nem ele nem Athena repararam na semelhança daquele pingente com o que Milo sempre usava, mesmo porque o pingente do grego tinha ficado exposto pouquíssimas vezes para que algum deles tivesse reparado. Sem dizer uma única palavra sobre a jóia encontrada a seu dono, Aldebaran apenas a colocou em cima da mesa, julgando-a coisa sem importância, e voltou a falar sobre qualquer assunto que julgava interessante no momento.

Somente algumas horas após a partida de seus dois convidados foi que o pisciniano reparou no pingente à mostra. Por alguns minutos, ficou com receio de que ou a deusa ou o colega tivessem reparado na jóia, mas acabou descartando a idéia por achar muito improvável que o taurino não comentasse sobre a semelhança daquele pingente com o de Milo se o tivesse visto. Jogou novamente a peça dentro da caixa em que guardava as fotos, despreocupado com sua anterior distração. Era daquele jeito que seu passado deveria ficar: lacrado numa caixa, escondido dentro de um armário trancado, longe de todos - na verdade, quem mais precisava manter a maior distância era o próprio Afrodite. Como diziam, algumas vezes lembrar nos faz sobreviver, mas noutras é preciso esquecer para continuar vivendo.

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Nada, em momento algum de sua vida, fizera-o sentir tanto remorso quanto ao descobrir o porquê fora abandonado. Sabia que Milo não devia, simplesmente, ter parado de amá-lo, sabia que ele deveria ter feito algo que incomodara tanto o escorpiano a ponto dele decidir se separar, mas nunca passara pela sua cabeça que pudesse ser por causa de Afrodite. Aliás, como Escorpião descobrira? Camus tinha certeza de não ter sido surpreendido enquanto fazia sexo com o cavaleiro de Peixes, que nem Milo, nem ninguém, vira os dois juntos. Encontraram-se apenas algumas vezes na casa de Aquário, em supostas passagens rápidas e necessárias do sueco para descer as Doze Casas. Até Minerva, teoricamente, viera a saber apenas depois, quando o próprio Camus lhe contou, e ela certamente não teria contado a ninguém. Teria Afrodite...? Não, também não deveria ter sido daquele modo que Milo soubera... Será que a ligação entre aqueles dois cavaleiros era tão forte que dispensava as palavras quanto aquilo? Quase impossível. Afinal, por mais que eles se conhecessem, não era algo que simplesmente pudessem saber por olhares.

Camus suspirou. De fato, não importava como Milo descobrira, importava apenas que ele sabia o que acontecera. Ele sempre descobria tudo o que queria, principalmente quando envolvia Camus, Shaka e Afrodite – o grego parecia um imã de informações a respeito dos três. O francês sabia que o na época amante não ficaria satisfeito com seu affair com o pisciniano, mas não que aquilo acabaria com o relacionamento dos dois. Minerva bem tentara alertar o cavaleiro de gelo sobre o perigo do envolvimento, sem sucesso. Se lhe perguntassem o porquê ele deixou que Afrodite o seduzisse, provavelmente ele não conseguiria dar uma resposta satisfatória, porque ele próprio não tinha certeza do que o levara para a cama com o maior inimigo de seu amante.

Da primeira vez, o sueco parara para conversar com ele, como sempre fazia quando passava pela Décima Primeira Casa. Há anos Afrodite deixara claro para quem quisesse ver que se interessava pelo aquariano. Alguns até disseram que o ouviram dizer que amava Camus, mas ele próprio nunca ouvira tais palavras diretamente da boca de Peixes. Desde jovem, nunca gostara da promiscuidade do cavaleiro, que era apelidado de "cortesã do Santuário", nem de seu manifesto desinteresse com os ideais de justiça e honra e sua veneração à vitória. Quando o Antigo Mestre caiu e Atena retornou, saber que Afrodite era um dos que sabia de tudo e que, mesmo assim, continuou a obedecer o Mestre como se este tivesse sido escolhido pela deusa aumentou o nojo que Camus sentia por ele. Por isso, surpreendeu até o próprio cavaleiro de Aquário quando ele decidiu transar com Peixes.

Não era como se não tivesse resistido aos encantos do sueco; não, longe disso. Deitou-se com ele premeditadamente. Ponderou, calculou e decidiu conscientemente aceitar as carícias do cavaleiro. Procurava por algo que nem ele sabia o que era, mas acreditou poder encontrar durante o ato sexual com o sueco; não fora por prazer, não fora por amor, não fora por curiosidade. Mas não encontrou a resposta do que buscava em nenhuma das cinco vezes em que transou com o cavaleiro e estava disposto a continuar procurando-a, se Peixes não tivesse dito que aqueles encontros tinham acabado. Não sabia o porquê passara a ser rejeitado pelo homem que durante tantos anos implorara por um pouco de sua atenção, assim como gastara mais de meio ano tentando entender o porquê fora abandonado pelo amante dias após Afrodite ter feito o mesmo.

Agora que sabia o motivo de Milo, o arrependimento que até então não tinha sentido começou a aflorar no peito do francês, não por ter traído o amante, mas por tê-lo perdido à toa, sem ter descoberto a resposta do que procurava. Nem fora tão bom que tivesse valido a pena! O pior foi descobrir que, depois de tantos anos com Milo por perto, a solidão que outrora amara agora o incomodava tanto que chegava a sufocá-lo. Odiava admitir, mas sentia falta de ter alguém a seu lado, de se sentir querido.

E foi o desespero de permanecer sozinho, somado à necessidade de encontrar ainda a tão desejada resposta, que o levou impulsivamente a procurar novamente Afrodite. Ele não sabia o que fazer ou o que dizer, nunca lhe passara pela cabeça fazer o que estava disposto a fazer. Jamais teria ido à Décima Segunda Casa se não tivesse certeza de que perdera Milo para sempre ou se soubesse que seria novamente rejeitado. Se Afrodite não tivesse jurado para si mesmo que nunca mais investiria em Camus ou transaria novamente com ele e se não estivesse em uma fase tão antissocial, teria recebido o aquariano de braços abertos no que seria um dos dias mais felizes de sua vida. Se Milo não tivesse sido chamado por Athena para dar seu veredito sobre o estado psicológico de Afrodite ou se tivesse respondido verdadeiramente à pergunta da deusa, em vez de apenas um "acho que bem", ele não teria visto o amado tentando beijar o pisciniano e sendo rejeitado por este.

O sueco apenas desviou o rosto do beijo intentado de Aquário, disse que estava ocupado e que não tinha tempo para perder com assuntos não importantes. Camus ficou estagnado, sem palavras, e assistiu imóvel o cavaleiro dar-lhe as costas e voltar para dentro de sua casa. O que havia acontecido? Por anos fora paquerado, por anos fizera-se de desentendido perante as investidas de Afrodite, por anos Milo deixara claro seu ciúmes quando o assunto era o pisciniano e agora, além da indiferença com a qual vinha sendo tratado, fora nítida e explicitamente rejeitado! Chegara a achar que a indiferença era apenas aparente, que ainda era do interesse do cavaleiro de Peixes, mas se enganara. Sentiu-se tão arrependido como jamais havia se sentido, somado à humilhação da rejeição. Tudo bem que não tinha muitos relacionamentos no currículo, mas nunca tinha sido rejeitado antes! Queria cavar um buraco e enfiar a cabeça nele, e não saberia como lidar com a situação se o outro não o tivesse deixado ali sozinho. Ainda assim, não sabia como encarar novamente o sueco.

Voltou para casa se amaldiçoando por ter ido até lá por impulso, por não ter agido racionalmente. No fim, Trotsky estava certo. Sempre estivera. Deixar-se envolver e se aproximar demais das pessoas nublava a razão e era prejudicial. Por que ignorara seus ensinamentos? Jamais deveria ter deixado Milo romper sua casca protetora e aninhar-se em seu peito. Se não tivesse se envolvido, jamais estaria buscando a bendita resposta junto a Afrodite, jamais sentiria falta de sexo, jamais se envolveria daquela forma com alguém, jamais teria sido humilhantemente rejeitado. Odiou-se por um momento, odiou sua fraqueza e seu coração. Por que, Zeus, queria desistir de Milo e apagá-lo da memória, mas seu coração doía tanto com a ideia?

Diferente de Camus, que costumava ser muito racional, Milo comumente agia por impulso, ainda que suas ações impensadas lhe rendessem horas de meditação tardia e muitas vezes lhe fizessem ficar arrependido. Se parasse para contar, provavelmente o número de vezes em que tomara uma atitude impulsivamente superava as vezes em que pensara bem antes de agir. Aquário diria que "isso era tão Milo..." se tivesse visto, daquela vez também, o cavaleiro avançar sem pensar até onde Afrodite estava, apontar o dedo para o nariz do inimigo e esbravejar que ele não tinha o direito de agir daquele jeito com o francês. Tudo bem que o pisciniano não prestava, mas desde quando ele passara a humilhar aqueles de quem gostava?

– Ora, Milo, e o que você tem a ver com isso? Não é da sua conta mais nada que aconteça na vida de Camus, porque você não faz mais parte dela, então porque se intromete? De qualquer jeito, e não pela obrigação de responder às suas perguntas, eu lhe disse que não o queria mais, não? Eu disse que você podia ficar com ele, problema seu se não o quis. Ou ele que não te quis, não sei, porque ele veio me procurar, e não a você – respondeu Peixes, sem se incomodar com a invasão de sua casa ou com o fato de alguém, principalmente seu maior inimigo, ter visto o que ocorrera. Camus, certamente, não gostaria de saber daquilo.

– Eu não o entendo, definitivamente. Pela primeira vez na vida, eu realmente não o entendo. Por acaso você bebeu? Ficou louco? Está possuído? – perguntou Escorpião, incrédulo – Você sabe que ele nunca mais vai se aproximar de você depois disso. Jogou fora sua última chance de ter quem ama a troco de quê? Servir apenas à Atena? Se fosse por isso, poderia ter tomado essa decisão antes de tentar transformar a minha vida num inferno.

Afrodite riu das palavras de Milo como se ele tivesse contado uma piada. Estaria ele realmente falando sério?

– Querido, o único que transformou, ou tentou transformar a sua vida num inferno, foi você mesmo, e não eu. Tudo que lhe acontece deve-se às suas próprias ações; é o que chamam de reação, baby.

– Para começo de conversa, eu nunca menti, apenas disse para Camus algumas verdades sobre o que acontecia no Santuário. Eu me aproximei dele sem trapacear, que culpa eu tenho se você foi lerdo?

– Claro, você sempre vai jogar a culpa por você ter destruído a minha reputação em mim. Por que eu não estou surpreso? Ah, já sei: é porque você sempre fez isso. Se Antoi soubesse dessa sua característica, ela teria tido algo concreto para explicar o porquê o odeia.

– Sabe, eu não o entendo, realmente. Primeiro, fica nesse lero-lero idiota de "esquecer quem sou" e blá-blá-blá. Depois, encena o maior teatro para "apagar de vez quem eu fui", se é que podemos chamar assim. Diz ter deixado tudo para trás para justificar seu abandono até mesmo a ela, mesmo que agora seja a hora em que ela mais precisa de você. E, se eu quisesse, poderia ficar aqui citando suas contradições ridículas por horas! E ainda vem querer me empurrar nas suas mentiras? Vai empurrar Claire também e culpá-la pela doença de outra pessoa, por acaso? Porque você empurra todo mundo se isso o fizer se sentir melhor, ou mais vítima, que para você é sinônimo. Você empurra o mundo e Atena se preciso! Diz querer esquecer o passado etc e tal, mas não perde uma chance de trazer esse mesmo passado à tona! Quer falar sobre isso, darling? Quer mesmo? Por que se quiser, por mim tudo bem, afinal eu nunca fugi dele, diferente de você. Mas comecemos falando de você, dos seus pais e da sua atuaçãozinha idiota, sim?

– Não sei por que ainda perco tempo com você. Sério. Ainda tenho que ouvir que eu que sou contraditório e me faço de vítima! Ah, quer saber? Fique aí tecendo as suas teorias da conspiração e matutando um jeito de conseguir me atingir, porque você é tão baixo e sabe que só falando disso você tem alguma vantagem numa briga.

– Será que você é idiota mesmo ou hipócrita? Porque todas as vezes que tocamos no assunto, desde que você começou com esse teatrinho idiota seu, foi você quem o trouxe de volta, de uma forma ou de outra.

– Claro, e fingimos que nós dois não sabemos que da última vez que "treinamos", no dia em que Athena nos convocou para falar sobre Apollo, você estava prestes a cuspir seu veneno falando disso, só para que você pudesse ganhar uma luta que como homem você era incapaz?

– Como se eu fosse usar isso para uma coisa tão besta! – exclamou Escorpião, apesar de ter que admitir em seu íntimo que pensara mesmo a se valer daquela fraqueza do pisciniano para transtorna-lo e ganhar a luta – Eu disse na ocasião, não? Que não tinha nada em jogo que justificasse eu tocar nesse assunto naquela hora. Mas claro, se eu tivesse que falar algo, seria sobre o fato dela estar morrendo e tal, e por culpa de quem mesmo?

– Ah, quer saber? Fique falando com você mesmo. Não ganho nada conversando com você, apenas o pouco da tolerância que ainda me resta. – disse o sueco, já se virando para voltar para dentro de sua casa.

– Vai fugir de novo? Claro, você sempre foge!

– Não estou fugindo nem nada, só não quero falar sobre algo que nós decidimos não falar, porque eu, diferente de você, tenho palavra! – rebateu o sueco, voltando-se novamente para o inimigo.

– Recapitulando porque você parece retardado: eu não toquei no assunto, mas você! Porque, pra mim, não importa se sabem da minha vida antes do Santuário ou não, não tenho que ficar escondendo o que aconteceu na minha vida!

– Eu não estou escondendo nada de ninguém, eu é que não quero ficar pensando nisso!

– O que dá no mesmo.

– Ok, se quer falar sobre isso, vamos falar, mas você começa! Primeiro, me diga exatamente o que eu tenho a esconder, depois me diga o porquê você nunca falou da sua mãe para ninguém. Ou o porquê você nunca contou dos seus irmãos. Se você diz que não fala sobre o passado por minha causa, porque não conta essas coisas pelo menos para o Shaka? Não, deixa que eu mesmo respondo! Porque você não quer que os outros saibam já que você tem vergonha deles!

– Se eu me envergonhasse deles, jamais teria mantido o sobrenome da minha mãe, porque opção eu tive de tirá-lo.

– E que crédito ter mantido o sobrenome dela te dá para a presente discussão? Por acaso alguém aqui além de mim sabe o seu sobrenome? Se eu bem me lembro, quando você vai para Atenas e precisa de um sobrenome você usa o primeiro sobrenome do seu pai!

– E quantas vezes eu tive que dar um sobrenome? A maioria das vezes eu inventei!

– Porque não quer que te associem à sua família.

– Não impute a mim o que você acha! Claro, pra você a minha família grega logicamente seria motivo para se envergonhar, porque a minha família, diferente da sua, não foi o que se pode chamar de "família perfeita"

– Não escolhi nascer naquela família.

– Nem eu escolhi nascer na minha, ou ser tirado dela e levado para a casa do meu pai ou até mesmo conhecer você. E nem seus pais escolheram ter um filho que é conhecido como a cortesã de luxo do Santuário.

– De fato, acho que você é o único que se refere assim a mim. Mas sabe, eu não sou "a cortesã de luxo" daqui, como você tanto insiste em me chamar, porque eu não faço sexo por dinheiro, ou para receber presentes, ou coisas do tipo.

– Então, isso faria de você uma puta.

– Talvez – Afrodite respondeu com um dar de ombros – Mas isso faria de você uma também.

– Você seria o único a dizer isso.

– Claro, você transava com mulheres, o que fazia de você um playboy e garanhão. Mas uma mulher que também se deitasse com um homem diferente a cada dia seria, sem sombra de dúvida, chamada de puta por qualquer um, é só uma questão de mudar o gênero. De qualquer jeito, assim como você, eu transo por prazer, pelo meu prazer, não para dar prazer a quem está comigo, que é apenas uma consequência para eles.

– Consequência? – Escorpião deu uma leve risada – Você só pode estar de brincadeira! Desde quando transar com você tem como consequência ter prazer? Você é asqueroso.

– Pode rir, pode falar o que quiser – disse o sueco com desdém –, eu sei que está mentindo, querido, porque você sabe muito bem o quanto é prazeroso transar comigo.

– Quanto convencimento da sua parte. Quando foi que eu gostei?

– Sempre, todas as vezes? Já perdi a conta.

– Hupf, vá sonhando... Você nunca foi humilde e cada dia você fica menos modesto...

– Sabe que sua opinião não me interessa, então não percamos tempo com você falando.

– Já que concordamos que é perda de tempo eu ficar aqui, au revoir, Darling – despediu-se Escorpião, dirigindo-se, irritado, à saída.

– Milo! – chamou Afrodite, surpreendendo o outro cavaleiro pelo chamado, pela mudança súbita do tom de voz agressivo para um tom lascivo e por encontrar o sueco já ao seu lado ao se virar – Eu disse que é uma perda de tempo você ficar falando, mas há algo que você pode fazer para compensar meu tempo perdido.

O grego somente entendeu o significado daquelas palavras ao ser beijado pelo pisciniano. Mais uma vez. Não precisava ser experiente em matéria de sexo para perceber onde aquilo levaria. Novamente, por menos que racionalmente quisesse, acabaria transando com o inimigo. E não precisava ser vidente para saber que gostaria no momento e depois se amaldiçoaria por horas por não ter resistido... novamente. Mas como resistir? Afrodite sabia seduzir como ninguém jamais saberia, além de satisfazê-lo mais do que qualquer um seria capaz. Sabia, também, que o sueco decidira transar com ele naquele momento apenas para caçoar dele depois, dizendo que era tão óbvio que Milo gostava de quando os dois ficavam juntos que chegava a ser infantil da parte dele negar o prazer que sentia. Provavelmente, se não com essas exatas palavras, com algo bem próximo a isso.

O fato era que não conseguia dizer não. Sentiu a mão do inimigo tocar o seu corpo voluptuosamente, sentiu seu próprio membro enrijecer devido ao contato e ouviu a si próprio gemer de prazer quando a boca do sueco tocou seu baixo ventre.

Desde que passaram a se odiar aquilo acontecia: para irritar Milo, Afrodite frequentemente arrancava-lhe gemidos de prazer, ainda quando o grego acreditava ser mais hetero do que homossexual, quando tinha para si que Camus era o único homem que ele queria tocar e por quem queria ser tocado. A princípio, o escorpiano achou que aceitava as carícias do antigo amigo de infância por causa de sua aparência afeminada. Somente anos mais tarde, bem recentemente, após passar a se deitar frequentemente com Shaka, Milo passara a considerar a hipótese de ter seu lado gay mais pesado do a princípio supusera.

Mas, independente de qualquer coisa, Escorpião sempre soubera o porquê transara com Peixes tantas vezes durante seu relacionamento com Camus: necessidade. Sim, Aquário, era o amor da vida do grego, mas não conseguia (provavelmente nem ao menos tentava) satisfazer as expectativas do amante na cama. Por Camus ser tímido ou pela sua criação (que Milo não sabia como tinha sido, mas era experiente o suficiente para reparar que muito do retraimento do aquariano vinha de berço) e porque Escorpião desejava muito mais do que era capaz de cobrar, a relação sexual dos dois era quase mecânica. Na maioria das vezes, era um "fazer por fazer", pois o francês dificilmente se soltava, apesar de sempre murmurar palavras em francês (indecifráveis, é verdade, mas que Milo sempre acreditou ser capaz de gozar apenas por ouvi-las). O grego, por outro lado, tinha experimentado quase todas as fantasias sexuais que um homem poderia ter durante seus anos de mulherengo e pegara gosto pela inovação na cama, que variavam desde orgias até sadomasoquismo. E a rotina do sexo com Camus aumentava sua vontade de buscar algo novo fora da Casa de Aquário. Como um agravante, o ruivo não gostava de ser penetrado, então Milo quase sempre era o passivo da relação, pois faria qualquer coisa para dar o máximo de prazer ao amado, mesmo que isso nem sempre o satisfizesse por completo, deixando-o frequentemente com vontade de algo mais.

Mesmo que Milo nunca tivesse reclamado (nem mesmo dito uma palavra a respeito), Afrodite parecia saber os detalhes mais íntimos da vida sexual do casal e sempre que seduzia o grego deixava-o não apenas ser o ativo da relação, como também fazia tudo que Camus parecia cheio de pudores em fazer. Ainda que jamais admitisse, era certo que o Escorpião, um homem fogoso como poucos, teria traído o amante, se não com o sueco com alguma amazona ou mulher de Atenas. Mas, tendo sido em quase sua totalidade com o antigo amigo de infância, o rapaz simplesmente evitara problemas com mulheres apaixonadas e alguém que pudesse contar para o francês sobre as traições.

Contudo, ao lembrar que Afrodite tinha se deitado com o ruivo alguns meses antes, Milo sentiu um ódio tão forte do inimigo que obteve forças para, pela primeira vez, rejeitar o sueco. Mas como o escorpiano jamais perderia uma chance como aquela para uma pequena, mas eficaz, vingança, deitou o parceiro no chão e sentou sobre suas pernas. Começou beijando o pescoço do cavaleiro, depois passou ao tórax e, finalmente, chegou a baixo ventre do sueco. Peixes estava tão confiante de que não havia perigo que demorou uma fração de segundo para processar o que ocorrera; em um minuto, ele sentia a língua do outro percorrendo seu membro e, no minuto seguinte, sentiu a dor da mordida deferida. Passado o choque, tentou chutar o loiro, mas este já estava preparado para o golpe e afastou-se antes. Indiferente aos xingamentos do inimigo, o grego sorriu vitorioso, pegou suas roupas, despediu-se e saiu.

Afrodite queria esganar o escorpiano, envenená-lo, torturá-lo e, se possível até matá-lo, esfolando-o lentamente, mas a mordida fora tão repentina e doera tanto que Peixes perdeu o momento. Em todos os anos que se conheciam, aquele foi o momento em que mais odiou o antigo amigo. Sorte de Milo que partira rápido; sorte dos dois, na verdade, pois se estivesse por perto assim que o sueco voltou a ficar em pé certamente lutariam por 1000 dias.

oOo oOo oOo

A satisfação de, finalmente, ter resistido (ainda que tardiamente) às investidas do sueco era tão grande que mal ele entrou em casa (que era, atualmente, sinônimo da Casa de Virgem) Shaka perguntou o que de tão bom ocorrera durante a conversa com Athena para ele estar tão feliz.

– Hum? Ah, nada de mais, apenas arranquei a asa de uma barata.

– Isso não quer dizer que machucou Dite de verdade, né? – perguntou o indiano, preocupado com a saúde física do também querido amigo.

– Nada que vá deixar sequelas – respondeu Milo, sem esconder o regozijo.

– O que você fez? Aliás, o que ele fez para você fazer o que fez?

– Nasceu; acho que é aí a raiz do problema.

– Milo, por favor, com seriedade. Estou realmente preocupado. Só não vou vê-lo agora porque seja lá o que houve ele deve estar muito irritado no momento.

– Ah, sim, MUITO irritado, de verdade. Eu também acho uma boa ideia dar um tempo, senão ele pode acabar babando em você; animal raivoso aquele, hem!

– Ainda estou esperando uma resposta séria...

– Ok ok, mas antes eu quero um chamego.

– Chantagem!

– Carência.

– Rejeito.

– Choro.

Milo fez cara de choro, mas Shaka manteve a expressão séria. Encararam-se durante alguns segundos, até o virginiano aproximar-se do amigo e puxá-lo para um ardente beijo. Do beijo para o sexo foi um caminho natural para ambos, como era de costume, e eles só pararam quando exaustos.

Virgem não sabia ao certo quanto tempo tinha dormido, mas acordou com o grego tocando suavemente as costas do cavaleiro enquanto acariciava os longos cabelos d'ouro do amigo. Talvez o escorpiano estivesse mesmo carente.

– Milo, assim eu não consigo dormir – murmurou o indiano, sem se mexer.

– Desculpe. Juro que parei.

O grego beijou o pescoço do amigo ternamente, abraçou-lhe pelas costas e deitou a cabeça no ombro do outro.

Mas nem chegaram a pegar no sono. Assim como todos os cavaleiros que dormiam, saltaram da cama ao sentir cosmos inimigos dentro do Santuário. Os santos de Apollo tinham chegado e, em breve, deveriam estar na entrada das Doze Casas. Milo correu para a Casa de Escorpião e, em minutos, já estava pronto para a iminente batalha, quase no mesmo instante em que chegou a ordem de Athena para que nenhum cavaleiro de outro deixasse suas casas, independentemente do que ocorresse. Se Apollo estivesse tão decidido a lutar e milagrosamente chegasse até a deusa, ela queria conversar com ele, tentar fazer um acordo, e, com ela, estariam apenas seus fiéis cavaleiros de bronze, para caso a negociação não desse certo. Ademais, ela temia que seus cavaleiros de ouro repetissem o ato da batalha com os espectros de Hades e refizessem o Athena Exclamation ou alguma outra loucura, pois sabia que eles seriam capazes de tudo para protegê-la.

A batalha foi feroz. Apollo não mandara uma meia dúzia de santos, mas sim dezessete guerreiros, os mais fortes que possuía. Mesmo assim, destes apenas três chegaram à Oitava Casa. Milo, internamente, respirou aliviado porque havia três cavaleiros de ouro entre ele e Athena, de modo que era quase certo que a deusa ficaria bem.

Por um lado, era vantajoso estar numa das últimas Casas, pois chegavam menos inimigos e, como naquele caso, podia-se ter uma ideia da probabilidade de alguém chegar até a deusa. Por outro, como começavam em maior número nas primeiras casas, os primeiros cavaleiros não conseguiam escolher sempre contra quais queriam duelar, então vez por outra os invasores se organizavam para que os mais fortes conseguissem avançar enquanto os mais fracos mantinham o guardião de Athena ocupado; ou seja, o inimigo que costumava chegar à Décima Segunda Casa era, de longe, o mais forte de todos.

Escorpião analisou visualmente seus três oponentes, buscando alguma evidência de qual era o mais forte. Queria barrá-lo ali, custasse o que custasse. Confiava na força dos colegas à frente, mas, se possível, preferia que tudo acabasse ali, com ele mesmo. A demora parecia deixar os oponentes impacientes. Todos pareciam igualmente fortes e irritados. Queriam chegar logo à Athena, terminar rapidamente o que foram fazer e voltar gloriosos para casa. Apollo era exigente, dificilmente tolerava uma derrota e, se algum de seus santos voltava sem cumprir totalmente a missão, era severamente castigado. Em outras palavras, era melhor morrer do que voltar derrotado.

Orestes, o santo ruivo, também examinou Milo. Era forte, sem dúvida, mas duvidava que a força do cavaleiro superasse a daquele que protegia a Sexta Casa – Shaka, sozinho, barrara quatro santos. Se Athena dispusesse seus cavaleiros de modo não aleatório como era, ele duvidaria que conseguissem passar; se quanto mais avançasse confrontasse cavaleiros mais fortes, ali seria o seu túmulo. Entretanto, a divisão tendo por critério o signo não poderia ser mais aleatória para a disposição dos inimigos. Com sorte, os últimos seriam até mais fracos do que os que já haviam enfrentado e completariam a missão sem mais baixas.

Ainda assim, mesmo na melhor das hipóteses, ainda havia a questão do tempo: Apollo queria que fossem rápidos, que terminassem antes do amanhecer, senão os Anjos de Árthemis também invadiriam o Santuário e acabariam por roubar a glória do deus. Tantos deuses tentaram se livrar de Athena que fazer o que nem Hades conseguira alimentaria ainda mais a vaidade do deus do sol e da música! Faltava pouco para o amanhecer, então o melhor seria acabar logo com aquele cavaleiro e seguir adiante. Orestes, apenas com o olhar, armou a estratégia com os outros dois companheiros: ele próprio e o santo loiro que vinha consigo ficariam e acabariam rapidamente com o escorpiano, enquanto o santo moreno adiantaria a batalha com o próximo inimigo. Ganhariam mais em tempo e evitariam outra morte se assim fizessem.

O grego percebeu os olhares e, então, reconheceu no cavaleiro ruivo o líder do trio. Lembrara-se de ter ouvido algo sobre o tal Orestes ter o cabelo da mesma cor que Camus, como foi que não reparara antes? Ficou feliz ao perceber a estratégia do inimigo, pois realmente queria deter o ruivo, não só por Athena, mas para que ele não machucasse Aquário. Desde que tomara lugar nas Doze Casas, uma de suas maiores preocupações sempre foi acabar deixando passar aquele que mataria o francês, o que se tornara mais evidente após a batalha com Hyoga; não que se arrependesse de ter salvado a vida de Cisne, mas o pensamento de que salvara e deixara passar quem matara seu amado quase levou o escorpiano à loucura. Aquilo jamais iria se repetir. Se ele conseguisse deter dois santos ali e Shura acabasse com o terceiro, Camus nem teria que lutar.

Sim, Shura deveria ser capaz de fazer aquilo. E ele, nem que tivesse que morrer, faria o impossível para que nenhum de seus dois oponentes passasse daquela casa.

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Por ser o defensor da última Casa, Peixes caminhava despreocupadamente entre as rosas de seu jardim, mesmo após o início das batalhas. Os inimigos costumavam demorar algumas horas antes de alcançarem-no, contudo o cavaleiro esperava-os desde o começo da invasão, apenas por precaução. Sabia que, quando muito, chegariam dois até ele, e isso apenas se tivessem invadido em grande número.

Orestes certamente seria o que mais avançaria, mas ele era o que Afrodite mais tinha certeza de que conseguiria deter sem grande dificuldade; um homem apaixonado podia ganhar mais força para defender quem amava, mas perdia proporcional força se devia lutar contra alguém que mantinha seu coração cativo – e o santo de Apollo estava, sem dúvidas, apaixonado por ele. Com sorte, poderia matá-lo durante o choque que lhe causaria ao descobrir que o sueco era um defensor de Athena. Sim, se tudo desse certo acabaria rapidamente com aquilo.

Colheu uma de suas rosas venenosas e sentiu o seu perfume. Se para os outros eram mortais, para o homem mais belo do Santuário elas tinham o melhor aroma do mundo! Por sorte, Milo nunca chegara a sentir – e nem mesmo chegaria – o cheiro daquelas rosas; Afrodite não gostaria de ouvir o que o antigo amigo de infância diria, pois sabia que não teria como contra argumentar.

Pensando em Milo, o ódio retomou a mente do cavaleiro. Ah, como queria matá-lo, vingar-se pelo ataque daquela tarde! Xingara tanto o escorpiano que já lhe faltavam palavrões para se referir ao inimigo. Às vezes se perguntava como os dois puderam ser amigos durante tantos anos e como ele pode amar tão sincera e profundamente aquela amizade; os dois pertenciam a países diferentes, culturas distintas e educação diversa. Lembrava que ouvira Antoi dizer que "pessoas da raça de Milo cedo ou tarde mostram seu verdadeiro caráter" e que era melhor "vigiá-lo de perto, pois, filho de quem era, não devia ter uma sólida moral e ser um excelente mentiroso e manipulador". Ela dissera isso de uma criança de apenas 7 anos, mas não parecia estar tão equivocada quanto o pisciniano julgara na época (apesar dele mesmo não ter maturidade para entender o que ela quisera dizer, sabia que não era algo bom).

Ouviu uma explosão vindo da Sexta Casa. Quantos já haviam sido mortos? Quantos já teriam passado? O que teria acontecido com os cavaleiros das primeiras casas? Nenhum cavaleiro de ouro parecia ter morrido até ali. A Casa seguinte era a protegida por seu odioso aliado. Milo podia ser o que fosse, mas era determinado e corajoso, seguraria ao menos um, e tentaria que fosse o mais forte. Reconheceria Orestes? Não, ainda que soubesse qual era o santo mais forte, dificilmente o defensor ruivo de Apollo perderia seu tempo lutando contra um cavaleiro tão longe do Templo de Athena. Preferiria chegar ao topo, essa seria a missão passada pelo deus. Mas e se parasse para lutar na Casa de Escorpião...? Não se preocupava com o que teria acontecido com Shaka porque sabia que Virgem provavelmente seria quem deteria mais santos e com a menor dificuldade entre todos. Mas o grego, mesmo sendo forte, tinha desvantagem perante as técnicas do santo... E se acabasse decidindo lutarem em dupla contra o escorpiano? Por mais que ele pudesse derrotar um santo, dois ao mesmo tempo, se um deles fosse Orestes, seria complicado para praticamente todos os cavaleiros de ouro. Afinal, falavam sobre o equivalente ao Grande Mestre de Apollo!

Balançou a cabeça, como se tentasse espantar aqueles pensamentos. Odiava Milo, o máximo que poderia acontecer seria o cavaleiro ser morto. E ainda havia Shura antes dos invasores alcançarem Camus, então não precisava se preocupar com o amado também. Além do mais, Athena fora categórica ao ordenar que os cavaleiros permanecessem em suas casas, independente do que ocorresse, até novas ordens. Assim, de que adiantava pensar naquilo, se não podia fazer nada? O jeito era relaxar e esperar que alguém aparecesse em seu jardim; seu único pensamento deveria ser fazer de tudo para que, dali, ninguém passasse. Eram cavaleiros, sabiam que a morte os observava de perto em situações como aquela; todos estavam sujeitos à morte, todos deveriam ficar satisfeitos de dar sua vida pela deusa. Afrodite, pelo menos, ficaria.

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Escorpião sentiu o corpo pesar e pender ao chão. Faltavam-lhe forças para levantar e continuar lutando, por mais que quisesse acabar com a guerra ali mesmo. Aquilo era uma derrota? Já tinha liquidado o santo loiro, que ficara na Oitava Casa para lutar junto com Orestes, mas não conseguira derrotar também o líder dos santos. Já tinha se esquecido de como era ser derrotado e ficar à beira da morte. Esperava que Shura fosse capaz de vencer, pelo menos. Ainda não sentira o cosmos de Shura se elevar de modo a indicar que derrotara o santo moreno que passara pela Oitava Casa e isso o angustiava. Mas talvez o santo ainda nem tivesse alcançado a Décima Casa. Ou talvez estivesse mantendo Capricórnio ocupado até que Orestes o alcançasse. Se o espanhol tivesse que lutar também contra dois, miseravelmente Orestes chegaria à Casa seguinte.

Pensou em Camus. Que Shura, de fato, fosse capaz vencer, para que Camus não precisasse se machucar. Tinha certeza de que nenhum dos dois santos restantes chegaria à deusa, mas não queria ter que ver o aquariano sangrando novamente. Isso se ele próprio sobrevivesse para ver qualquer coisa, fosse a morte do francês ou sua vitória perfeita.

Sentiu a dor aumentar na região do abdômen. Um novo golpe. Provavelmente morreria ali, pois Orestes não ia larga-lo vivo ali e continuar seu caminho, pois a misericórdia de uma hora podia ser a desgraça da outra. Sabia que os santos tinham ordem para matar todos os inimigos derrotados, para evitar um contra-ataque futuro. Doeu-lhe perceber que provavelmente nunca mais veria o amado. Será que ele sentiria? Talvez. Que importava, se estaria morto para ver?

Diziam que quando a morte se aproxima as pessoas pensam em sua vida inteira e todos os seus arrependimentos. Quando lutou contra Radamanthys, queria morrer, então não se lembrava de ter pensado em algo além de como faria para derrotar o espectro no submundo. Agora, surpreendeu-se ao notar que sua vida não passara diante de seus olhos, apenas lembrara de menos de meia dúzia de pessoas.

A segunda, Athena. Dedicara sua vida à deusa e uma parte de si estava satisfeita por estar morrendo cumprindo seu dever. Tinha certeza de que nada aconteceria à deusa, pelo menos não daquela vez.

A terceira, Shaka. O que teria sido da sua vida se nunca tivesse ido ao Santuário ou se nunca tivesse feito amizade com o indiano? Não conseguia se imaginar sem ele. Ele, com certeza, sofreria com a sua morte.

Ele e a quarta pessoa, Claire. Ela era a segunda mulher mais especial na vida do cavaleiro, apenas abaixo de Athena. Não era a terceira pessoa que ele mais amava no mundo, mas era uma das duas únicas que ele sabia que retribuída seu amor e que sempre estaria lá quando ele precisasse.

A quinta pessoa, Afrodite. Porque seria impossível lembrar de qualquer fase de sua vida ou em pessoas que lhe marcaram sem passar pelo seu odiado amigo de infância. Será que ele ficaria feliz com a morte do escorpiano? Naquele dia, após o que fizera, provavelmente sim.

E a primeira pessoa era, sem dúvida, Camus. Se já tinha rompido os laços com o francês, por que não conseguia parar de pensar nele? Por que se angustiava tanto por não saber se o aquariano ficaria, ao menos, triste com a sua morte? Por que não conseguia afastar o pensamento de que morreria feliz se com isso pudesse salvar a vida do ex-amante? Por que não tinha ignorado tudo e continuado ao lado daquele que não conseguia afastar da sua mente e do seu coração?

Morreria sem nunca ter ouvido a pessoa que amava dizer que também o amava e sem ter ido visitar uma pessoa que estava doente e que lhe tinha sido tão importante na infância. Morreria sem ter reencontrado seus irmãos e sem ter visitado o túmulo de sua mãe ao menos uma vez.

Morreria, com certeza. Sem forças para se defender, era presa fácil para Orestes, que continuaria a golpeá-lo até ter certeza de que ele nunca mais abriria os olhos.

No entanto, não foi Shaka quem subiu, tampouco Camus quem desceu para ajudá-lo. Nenhum dos dois saiu de suas casas, pois jamais desobedeceriam a ordens de Atena – ele próprio provavelmente também não sairia de sua Casa para ajudar um dos dois se eles estivessem na situação oposta. Antes de perder a consciência, a última coisa que Milo sentiu foi um perfume, um cheiro que lhe era tão familiar. Rosas.


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Notas finais do capítulo

Esse final eu escrevi quando ainda estava escrevendo o capítulo 2, ou seja, a long long time ago. E eu mal podia esperar para postá-lo desde lá, porque ele marca a "fase 2" da história. A parte da batalha eu passei muito rápido porque a ideia da fic não é ser uma fic de ação, mas romance e drama, então escrevi o mínimo possível. Para quem não se lembra, Orestes é o santo que apareceu no final do capítulo 4, deem uma olhada lá qualquer coisa.
Apesar de agora começar a fase da "reviravolta", o próximo capítulo ainda não vai ferver muito e é bem menor do que este, mas nem por isso menos importante. Vamos conhecer um pouco mais de um dos quatro cavaleiros mais importantes para essa fic (a saber, para os que eventualmente não perceberam, os quatro são Milo, Camus, Shaka e Afrodite), então fiquem ligados!
Mais uma vez, agradeço a todos os que leram, leem e pretendem continuar lendo a fic e agradeço duplamente a todos os que comentaram até aqui. Desculpem a demora, mesmo! E espero que gostem =)



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