Shamandice escrita por Prana Zala


Capítulo 7
Aquele que estava bem ao lado




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"A se preocupar apenas com o que está à frente, pode-se não se ver o que está ao lado, mesmo que o acompanhe desde sempre"

Aquário não conseguira dormir aquela noite, não só pelo calor, mas algo o deixara inquieto, angustiado. Deitara e levantara diversas vezes, bebera água, chá, chá e chá, tentara ler um pouco enquanto esperava o sono chegar, tentara trabalhar e também assistir a televisão, mas sua mente não o deixava se concentrar no que fazia e nem relaxar a ponto de dormir. Quando o dia raiou o cavaleiro sentiu como se não tivesse sequer deitado aquela noite. Trabalhou a manhã inteira de maneira quase improdutiva, até desistir e resolver almoçar antes de terminar o segundo relatório.

Chegou ao refeitório antes da maioria dos outros colegas. Era bom, poderia comer em sossego e voltar rapidamente ao relatório. Como os únicos cavaleiros dourados presentes eram Shura e Afrodite, o francês sentou-se afastado, sozinho, com sua típica e constante solidão. Se Aldebaran ou Mu estivessem ali, ele teria sentado próximo a eles, que sempre o convidavam para ficar junto. Remexeu a comida algumas vezes antes de prová-la, desanimado. Realmente, algo o incomodava como poucas vezes conseguiram incomodá-lo. O pior era não saber o que o angustiava tanto! Seria um mau pressentimento? Os Santos de Apollo se aproximavam? Impossível de saber. Entretanto, ele sabia que sua intuição estava em alerta vermelho para algo próximo, algo que iria significar muito para o aquariano.

– E aí, Camus? Muito trabalho? – cumprimentou Shura, sentando-se ao lado do francês, seguido por Afrodite.

– Por que não se sentou perto de nós? – inquiriu Peixes.

– Nenhuma razão em especial, aqui era mais perto – respondeu o ruivo.

– Ah, sem pressa para voltar ao escritório. Acredite, ninguém vai roubar aquela pilha astronômica de papeis – afirmou Capricórnio, que passou a falar sobre o quanto o francês vivia entulhado naquele escritório e do quanto da vida ele perdia.

E falaram sobre trabalho, treino e cardápio. Os assuntos eram breves, esgotavam-se rapidamente; uma típica conversa social. O sueco não falava muito, não queria se aproximar do amado que agora ele ignorava; Shura e Camus nunca haviam sido bons amigos, era apenas coleguismo. Conversavam quase como colegas de escritório que se encontram no elevador, por educação. Quando já haviam quase terminado de comer, Aldebaran adentrou o escritório esbaforido, olhando freneticamente para os lados, procurando alguém. Avistou os três cavaleiros e caminhou apressadamente até eles, parando em frente a Afrodite.

– Yô, Deba – cumprimentou Peixes – Qual o motivo da agitação?

– Diga a verdade: Shaka já havia contado para você, não?

– Contado o quê?

– Sobre Milo.

Camus sentiu um calafrio percorrer a espinha. Odiava quando o assunto "Milo" corria perto dele. Desde que se separara, aqueles assuntos sempre lhe tiravam a noite de sono. Apesar disso, nem imaginou que sua angústia pudesse estar prevendo aquela conversa.

– Ah! Pior que não.

– Então você tinha visto?

– Também não. Quero dizer, não explicitamente. Digamos que eu vi na cara deles, só isso.

– Mas não era óbvio!

– Para você, para mim era. Mas, me diga, como você soube?

– Oras, acho que TODO mundo que quis soube!

– Perdão, mas do que estão falando? – intrometeu-se Capricórnio – É algo que também podemos saber?

– Opa, foi mal. É claro que podem saber, como eu dizia, todos já devem estar sabendo mesmo. Estamos falando do novo casal enamorado do Santuário!

– Não me diga que Milo está pegando alguma serva ou amazona seriamente? Rapaz, nunca imaginei que ele fosse de namorar!

– Antes fosse! Milo e Shaka estão namorando.

– Shaka também? Unidos até nisso, não? Quem são as escolhidas?

– Shurinha, você não entendeu o que o Deba disse – falou Afodite -: Milo e Shaka são namorados. Entende? Namoram um com o outro.

– Como é que é?

O francês quase deixou a faca cair. Como assim, Milo e Shaka? Desde quando Shaka? Desde quando eles eram ligados a namorar? Desde quando Shaka era gay? Milo sempre dissera que preferia mulheres, que Camus era uma exceção que nem ele entendia, porque era o único homem que o escorpiano amava e com quem queria transar! Os dois sempre tinham sido muito ligados, muito próximos, muito amigos, mas todos juravam que aquilo não passava de amizade! De repente eles simplesmente acordaram apaixonados? E por que eles deixariam o relacionamento tão público? Estariam tão sérios assim? Milo estaria amando outra pessoa?

– Pois é! – exclamou Touros – Eu mesmo vi, com esses olhos que papai e mamãe me deram, os dois se agarrando lá na arena!

– Conta isso com detalhes, porque eu não consigo acreditar!

– Foi o seguinte: estávamos treinando todos juntos, e quando eu digo todos eu quero dizer praticamente todos, Mu, Aioria, Saga, Shun, Máscara da Morte, Hyoga, eu, os dois e mais uma porrada de gente. Enfim, estávamos treinando quando Shaka se distraiu e foi atingido por Milo e se machucou, aí Milo correu lá para ver como ele estava, os dois trocaram uma dúzia de palavras e Shaka, do nada, beijou Milo! Aí eles se abraçaram e começaram a se beijar! Sacam, moh carícia e mel? Aí o Aioria foi perguntar para eles o que tinha acontecido, se eles 'tavam juntos e Shaka respondeu que sim, abraçado no Milo! Aí eu achei que eles 'tavam brincando e fiz a mesma pergunta, e eles responderam da mesma forma!

– E como está Shaka? O machucado foi sério? – interrompeu Afrodite, preocupado com o amigo. Shura e Camus haviam abstraído a parte do machucado depois da revelação.

– Shaka está bem, foi só um arranhão. Mas, cara, foi muito estranho! Bizarro, no mínimo! Tipo, eu nunca tinha imaginado que os dois eram gays, como eu falei no outro dia. E todo mundo com quem eu falei até agora estava tão surpreso quanto eu. Mas os dois estão agindo com a maior naturalidade do mundo! Não que eu seja preconceituoso ou algo assim, longe de mim, sou de terra sem cara e sem raça, mas eu fiquei abismado com o fato daqueles dois serem gays. Aí eu lembrei do que o Dite tinha dito lá no piquenique e vim correndo ver se aqui eu poderia achar uma explicação razoável para o que tá acontecendo. Sabe, tem uma pá de cavaleiros aqui que eu nem teria dado muita bola se começassem a namorar, mas, sinceramente, aqueles dois...!

– Onde eles estão? Porque isso eu só acredito vendo! – exclamou Shura, levantando-se antes de acabar a refeição – Vamos, vamos!

– Cara, vocês estão fazendo uma tempestade em copo d'água... – disse Afrodite, voltando a comer.

– Mas que isso, Afrodite! Você vem conosco! – disse Capricórnio, puxando o colega pelo braço – Você vem, Camus?

– Não, obrigado. Tenho muito trabalho ainda.

Os dois saíram apressados, enquanto arrastavam Peixes. O francês esperou-os sumirem de vista para também abandonar o que lhe restava do almoço e retornar ao escritório, onde poderia tentar colocar a cabeça no lugar. Não fosse o próprio Aldebaran ter afirmado que vira Milo e Shaka aos beijos, Aquário teria certeza de se tratar de um engano; Deba podia com freqüência compartilhar solidariamente suas informações com a maioria dos cavaleiros de ouro e alguns servos, entretanto o francês nunca ouvira falarem que o cavaleiro inventara ou acrescentara pontos às histórias. E ele não seria capaz de espalhar boatos infundados sobre a sexualidade de Shaka, ninguém seria! Mas, por Zeus, por que justo Milo e Shaka?

Havia quem acreditasse que, apesar do escorpiano ter sido frequentemente visto aos amassos com mulheres durante a adolescência, ele tivesse uma tendência à homossexualidade. Houvera até quem afirmasse que, na verdade, o cavaleiro e Peixes fossem amantes, e uns poucos tinham certeza que Milo sentia mais do que amizade por Camus, dadas suas crises de ciúmes e sua possessividade. Mas nunca, em mais de uma década de Santuário, cuja maior parte convivera perto do indiano, Camus ouvira alguém sequer cogitar que o loiro tivesse a mais leve vontade de provar do fruto. Chegaram a desconfiar do relacionamento de Milo com o francês, mas jamais de Escorpião com Virgem. E isso porque, em ambos os casos, o grego passara meses morando na casa de um dos dois. Aliás, a Oitava Casa há anos parecia competir com a Casa de Sagitário em qual casa ficava mais tempo vazia no Santuário.

Camus, quando deu por si, já tinha dado sabe-se lá quantas voltas em sua sala. Não conseguia sentar, não conseguia se concentrar, não conseguia aceitar o fato de seu ex-amante estar agora feliz nos braços de outrem. Na verdade, o simples fato de estar nos braços de outro homem era suficiente para angustiá-lo. Com mulheres, tudo bem, Aquário não se sentia tão atingido, uma vez que podia repetir inconscientemente para si que era porque Milo sentia falta delas e que Camus era o único homem para o qual ele olhava. Mulheres não pareciam rivais, porque, no final, o que decidiria com quem Milo ficaria não seria o amor, mas sua sexualidade – se ele, por ventura, escolhesse outra pessoa, o francês poderia atribuir a vitória ao lado heterossexual do companheiro, que sempre lhe tinha parecido tão forte. Mas Shaka era um homem!

De tão entretido em seus pensamentos, quase não notou a chegada de Minerva, que não trazia nada consigo e nem parecia ter algum recado para lhe dar, de modo que provavelmente tinha vindo conversar. Ela lhe sorriu e perguntou se ele tinha alguns minutos, ao que ele prontamente respondeu que sim. Seria bom pensar em algo mais.

– Soube que já lhe contaram a última fofoca do Santuário – disse ela.

Pelo visto, ele não conseguiria pensar em outro assunto com aquela conversa, porque aquele era o assunto! Minerva era sempre igual: aparecia para conversar apenas quando algo o atormentava; em outras ocasiões, apenas ouvia quando ele falava e respondia o que ele perguntava.

– Eu não me interesso pelas fofocas – disse ele, fingindo indiferença.

– Mas essa interessou, não? Pelo que eu sei, tudo que tem a ver com Milo ainda lhe interessa.

– Minerva, não estou a fim de falar sobre isso...

– Como preferir. Se bem que falar sobre o que lhe incomoda torna mais fácil sua aceitação.

– Não há algo me incomodando.

– Ora, Camus, esqueceu-se de quem eu sou? Esqueceu-se que eu posso lê-lo melhor do que a maioria desse Santuário? Esqueceu-se que eu posso ver o que ninguém mais vê?

– Oh, certo, e o que você tem visto, Minerva? Tem olhado para mim?

– Eu sempre olho para você, mesmo porque sou eternamente grata por você ter me resgatado daquele lugar. Jurei servi-lo e a Athena até a minha morte, então sempre procuro ver o que estará no caminho de vocês. Se dependesse apenas de mim, sempre estaria procurando pelas visões do futuro daqueles que lhe são importantes, para sempre poder preveni-lo das tragédias.

– O fato de você poder ver o futuro às vezes não quer dizer que você me conheça tão bem.

– Eu não apenas vejo o que você fará, o que já me diz muita sobre você, como também já ouvi muita coisa desde que cheguei. Somos amigos, não? Já conversamos muito. Mas, apesar disso, como amiga, tudo o que posso lhe dizer é que somente uma pessoa pode lhe tomar Milo definitivamente, e que eles ainda não perceberam isso. Só tome cuidado para não perder muito tempo acreditando na pessoa errada, para não ser tarde demais quando perceber o engano.

– Você fala como se eu fosse tentar reatar com Milo. Não se esqueça que foi ele que quis ir embora; eu não vou pedir para que ele volte, e nem espero por isso. É até melhor, assim eu posso me dedicar apenas à Athena, sem ter que ficar me preocupando com crises agudas e histéricas de ciúmes.

– Camus, quem ama tem ciúmes, e amar é natural...

– Eu não sei o que é esse amor que todos tanto falam.

– Você não quer saber o que é.

– Tanto faz.

– Você quem sabe. Só nunca esqueça que você não pode controlar os seus sentimentos como pode controlar os seus atos e que eles não mudam só porque você atribui a eles outro nome. E, por favor, pense com carinho no que eu falei, para evitar arrependimentos, ok?

– Como posso pensar em algo tão vago?

– Desculpe, mas sabe que é o máximo que posso dizer...

Ouviram um barulho vindo do corredor. Athena retornara de sua caminhada. Minerva despediu-se e saiu da sala, deixando o espaço livre para caso a deusa precisasse falar com o cavaleiro. Por sorte, Camus não precisou falar com ela, não precisou dizer-lhe que não estava raciocinando direito e que precisava de um tempo para pensar sobre alguns problemas com os quais tivera recente contato. Saiu do escritório cedo e foi para sua casa, onde ninguém questionaria sua ansiedade.

oOo oOo oOo

Quando Shaka acordou, Milo já havia se levantado. Raridade. Eram pouco mais de cinco horas de terça-feira. O indiano estava tão cansado devido à farra da noite anterior que chegava a admirar a disposição do amigo quando o assunto era sexo: ele podia transar a noite inteira, fingir que dormia por menos de uma hora e encarar o dia seguinte como se nada tivesse acontecido e ele estivesse super descansado. Bem mais disposto do que o virginiano, sem dúvida, que aguentava bem passar noites acordado, treinando ou meditando, mas transar muito na mesma noite deixava-o cansado. Às vezes ele se perguntava como Camus dera conta de satisfazer alguém tão insaciável quanto Milo; Aquário não parecia ser um ninfomaníaco também. Pensou em somente virar para o lado e fechar novamente os olhos, mas a possibilidade do amigo estar chorando sozinho fê-lo levantar-se e procurá-lo. Escorpião não costumava ter problemas em chorar na frente do indiano, mas desde que se separara de Camus evitara as lágrimas sempre que acompanhado. Encontrou o grego sentado na janela da sala, com um olhar distante, parecendo acariciar o pingente em forma de "A" da pulseira que sempre mantivera consigo, desde que chegara ao Santuário. Dizia que o pingente era devido ao seu antigo sobrenome, que, aliás, nunca revelara, mas também nunca lhe perguntaram; após conhecer Camus, dissera repetidas vezes para o virginiano que o pingente era especial porque previra o nome do seu amor-para-todo-o-sempre, "Aquarius". No fim, devia ser só sua única ligação material com sua origem, desconhecida por todos. Aproximou-se do amigo e chamou-o, suavemente.

– Ah, olá, Shaka - cumprimentou o escorpiano, abaixando o braço com a pulseira – Não me diga que já se levantou para meditar!

– Não, que isso. Vim só ver o porquê você não estava na cama e se estava bem.

– Estou ótimo, só sem sono. Está com medo de dormir sozinho? Quer que eu volte com você?

– Muito medo. Sabe, nunca me libertei daquela história de monstro embaixo da cama.

Milo riu. Levantou-se, passou uma mão por trás da cabeça do indiano e, puxando-o para si, beijou-o. Beijaram-se repetidas vezes antes do grego puxar o amigo pela camisa até a cama novamente, de onde os dois não saíram mais até o último minuto possível para chegarem ao treinamento no horário limite. Apesar de serem cavaleiros de ouro, Saga era bastante rigoroso com seus horários de treino, especialmente numa época de iminente e possível ataque dos Anjos de Apollo.

O relacionamento amoroso recém-começado dos dois cavaleiros era, realmente, óbvio para quem quisesse ver. Possivelmente uma cena única na história do Santuário, pois ninguém jamais ouvira falar de dois cavaleiros de ouro tão publicamente enamorados. Nos dias que se seguiram à "revelação", as fofocas decaíram significantemente em número, pois ficara tão comum ver os dois amantes trocando carícias em público que o fato perdera o interesse. Alguns cavaleiros – Máscara da Morte, por exemplo – passaram a evitar freqüentar locais onde os dois estivessem, pois dizia que era "alérgico a testosteronas enamoradas". Camus também evitava ficar perto dos dois, pois cada beijo, cada toque,incomodava absurdamente o coração dito de gelo do cavaleiro. Ainda não tinha se libertado da falta que Milo lhe fazia, não era saudável ficar exposto àquelas cenas.

Escorpião estava, surpreendentemente, feliz. Não era paixão, mas o amor fraterno que sempre sentira pelo amigo, unido à luxúria que lhe era tão presente, fazia-o pensar que quase se curara da dor de perder Camus. Ainda amava o francês mais do que a própria vida, mas estava convencido de que poderia, sem dificuldade, levar o relacionamento com Shaka perfeita e satisfatoriamente bem até a morte, além de parar de sofrer por uma "causa perdida". Estava com o melhor amigo, alguém com quem sempre se sentira à vontade para falar o que bem entendesse, alguém com quem podia ser ele mesmo sem preocupações, alguém que o aceitava inteiramente como era e aprendera a lidar com seus defeitos. De fato, Camus vivia reclamando da desorganização do amante, do ciúmes excessivo, dos horários, das exigências do relacionamento, das implicâncias com o aprendiz favorito, da necessidade de se afirmar, pelo menos uma vez, que "amava Milo". Isso sem falar do desgosto do aquariano sempre que um fato "promíscuo" da vida do grego vinha à tona ou que o cavaleiro parecia se interessar por uma mulher. Ele perdera a conta do número de vezes que o francês dissera-lhe para ir procurar "uma de suas mulheres, pois era o que queria". Já Shaka não reclamava de sua desorganização, arrumava a bagunça em troca de refeições caseiras preparadas especialmente pelo escorpiano; não havia ciúmes excessivo e nem exigências, pois não era exatamente "namorados", além dos dois gostarem de mulheres e continuarem saindo com elas, com a vantagem de, sendo "gays", poderem desfrutar de novas picantes experiências. O passado "promíscuo" jamais os incomodaria, pois haviam passado por tudo juntos. E, como se não bastassem essas vantagens, os dois não se preocupavam que alguém soubesse do relacionamento.

Todos podiam nem imaginar, todos podiam achar incrédulo, mas Milo sempre quisera casar e ter filhos, abraçar a pessoa amada sem vergonha de ser visto, andar de mãos dadas e beijar em público, se assim tivessem vontade. Ele queria ser um casal normal, daqueles que não vivem sempre mergulhados em mel, mas que podem ser melosos quando quiserem e onde quiserem. Ele queria, sobretudo, uma família normal, de pessoas que se amam e se preocupam umas com as outras, uma família do tipo que ele nunca tivera. Quando entrou para o Santuário, aceitou o fato de dificilmente vir a ter filhos, mas ainda assim queria ter alguém do seu lado até a morte, queria ter alguém que ele amasse e soubesse que era amado em troca. Quando se apaixonou por Camus, aceitou o fato de não poder ser um casal normal aos olhos do mundo, mas ainda queria que, exceto o fato de serem dois homens, pudessem ser o casal com o qual ele sempre sonhara. Mas Camus sempre deixara claro que a família que ele tanto desejava jamais existiria.

O grego era um dos poucos cavaleiros que acreditavam que o fato de terem dedicado a vida a servir Athena não era óbice para que constituíssem uma família e vivessem o mais normal possível dentro do padrão de vida que tinham escolhido. Cavaleiros como Saga, Mu, Camus, Shura, Aldebaran e principalmente Afrodite acreditavam que a vida de cavaleiro anulava a vida como "pessoa", que ele deveriam passar o tempo todo melhorando suas habilidades para melhor servir à deusa; eles achavam que, uma vez que poderiam morrer a qualquer minuto, era impossível fazer parte de uma família. Shaka, como também sempre quisera ter uma família, esforçava-se para compartilhar da mesma certeza que o melhor amigo, apesar de todas as vezes em que tentara engatar um relacionamento sério com uma mulher acabara frustrado.

E talvez tenha sido o desejo antigo de ter uma família que os impulsionou àquele relacionamento. Ambos queriam um lar, ambos queriam ter alguém a seu lado, ambos queriam ser um casal normal, por mais anormal que pudessem ser dois homens juntos e sem a paixão típica dos namorados. Mas, como ambos diziam, o sucesso de um relacionamento dependia apenas de amor e amizade, e a amizade deles já era permeada por um forte amor (fraternal, mas ainda assim amor) incondicional. Para Shaka, Milo já era sua única família em sentido amplo, só tinham passado a ser um casal e, assim, tornado-se uma família em sentido estrito.

Máscara da Morte, à princípio, incomodado com "tanto mel" nas Doze Casas, chegara a depositar em Afrodite toda a sua esperança da volta da "normalidade", porém o cavaleiro de Peixes, desde a briga pública no refeitório com Milo, pouco dera a graça de sua presença naquelas semanas. O sueco, na concepção do italiano, por ser amigo de Shaka e inimigo mortal do grego, poderia ser o único problema na relação dos novos amantes, já que nada mais parecia os incomodar. Naturalmente, se ele soubesse do relacionamento prévio do escorpiano com Camus, provavelmente teria tentado fazer os dois reatarem, pois pelo menos seriam um casal discreto.

oOo oOo oOo

Camus voltava do Salão do Grande Mestre quando avistou Milo e Afrodite no gramado ao lado da escadaria que levava para a 12ª Casa. Apesar de passar sempre por aquele caminho, era a primeira vez em quase uma semana que via o cavaleiro daquela casa, que realmente tinha desaparecido da vista de todos. Apesar do francês não ter a habilidade do pisciniano em ocultar sua presença, ele conseguiu ouvir parte do que ambos conversavam antes de ser notado.

– Eu não estaria perdendo o meu tempo falando com você se não fosse por ela – dizia Escorpião.

– Eu sei, mas foi perda de tempo porque eu não irei – afirmou o outro cavaleiro, enquanto cuidava de suas lindas e mortais rosas.

– Cara, ela vai ficar magoada. Sabe que ela só vem para a Grécia uma vez por mês e que ela gosta muito de você.

– Dessa vez não dá. E nem podemos sair do Santuário mesmo.

– Isso tudo é medo dela falar o que você não quer ouvir? Porque, hello!, já faz mais de um mês, ela já percebeu que é caso perdido.

– Não-me-lembre-disso – disse Peixes, entre dentes.

– Ah, então você consegue esquecer? Porque eu penso nisso o tempo todo, ainda que não seja minha culpa ela estar morrendo.

O sueco atirou no chão as ferramentas que utilizava, com violência, mas controlando sua força sobre-humana, e deu as costas ao grego, retornando para sua casa. Milo ia dizer algo para Peixes quando avistou Camus descendo as escadas, fechou a boca e pegou o caminho de casa, sem falar novamente com Afrodite ou dirigir a palavra ao ex-amante.

A cada dia, Camus tinha mais certeza de que já havia perdido o cavaleiro, talvez por isso nem tenha dado muita atenção ao que Minerva lhe falara. Não só praticamente não conversavam mais, como o francês era nitidamente ignorado pelo grego, que, além de tudo, começara um relacionamento com alguém com quem não dava para competir. Afinal, quem poderia ganhar de Shaka? Quem poderia conhecer melhor o escorpiano, ser mais tolerante, mais leal e mais compatível senão aquele com quem ele sempre compartilhara segredos, experiências, gostos, enfim, tudo? Afrodite até podia saber um ou outro detalhe que o indiano não sabia, mas Shaka bem que deveria saber uma infinidade de coisas a mais sobre o amigo – Camus não sabia que o passado de Milo era integralmente desconhecido por Virgem. E se os dois, que nunca tinham namorado alguém publicamente, não esconderam o relacionamento, devia ser sério o suficiente para que pretendessem levá-lo até a morte.

Atravessou a 12ª Casa sem avistar seu protetor. Desceu as escadas devagar, para não encontrar-se com Milo durante o caminho. Ao chegar em casa, encontrou Minerva à sua espera para pedir permissão para ir buscar algumas frutas. Ele, como sempre, assentiu, e a loira partiu em direção ao Baixo Santuário, onde os servos buscavam os mais variados víveres para seus mestres.

Já durante a volta, a moça encontrou Shaka sentado sob uma árvore com o escorpiano deitado com a cabeça em seu colo, dividindo alguns cachos de uva. Parou para cumprimentá-los, afinal, sempre se dera muito bem com ambos, mesmo depois do rompimento do grego com seu mestre, apesar de terem diminuído a freqüência com que costumavam conversar. Eles foram muito receptivos, puxando até assunto. A certa altura da conversa, Minerva retirou da cesta que carregava alguns pêssegos e deu-os aos dois cavaleiros.

– Trouxe para vocês – explicou a moça, entregando as frutas ao indiano.

– Ah, obrigado – agradeceu Virgem – Não precisava se incomodar.

– Por acaso sabia que iria nos encontrar aqui? – perguntou Milo. Ele nunca entendera direito a habilidade dela em ver o futuro, apesar de acreditar cegamente nas previsões da moça após alguns arrependimentos todas as vezes em que resolveu não seguir um conselho dado por ela.

– Talvez eu tenha tido um flash – brincou a moça.

– Cara, tomara que eu nunca tenha que fugir de você...

– Tomara. Mas eu não vejo tudo, muito menos posso escolher o que ver. Simplesmente, vejo. Por exemplo, por mais que eu tivesse visto que você iria se afastar, jamais consegui ver o que o fez se afastar.

– Mas você viu o que seu querido mestre fez com Afrodite, não? – ela não respondeu – Bem, ainda que não tenha visto, você com certeza sabia que ele estava tendo um caso com Afrodite... Eu só não consegui ignorar o fato quando descobri.

– E você o largou só por isso?

? Desculpa aí, mas pra mim esse é um motivo mais do que suficiente.

– Você não acha que eu sou ingênua o suficiente para acreditar que você nunca fez o mesmo, né?

– Cada um aceita o que acha que deve aceitar – Milo deu de ombros – e eu não aceitei o que ele fez. Por isso que um relacionamento pode ser rompido unilateralmente.

– Mas você nunca disse para ele que foi por isso. Pelo que eu sei, usou outro motivo.

– Porque eu não queria ouvir desculpas, justificativas ou o que quer que ele resolvesse falar. Simplesmente não queria tocar no assunto.

– E acha que fez a escolha certa?

– Com certeza. Somos incompatíveis, de qualquer jeito.

– Espero que gostem dos pêssegos – disse Minerva, mudando bruscamente de assunto – Tenham um bom dia.

– Você também – despediu-se Shaka, com naturalidade, como se o assunto "Camus e Milo" jamais tivesse sido mencionado, enquanto colocava mais uma uva na boca do amigo.

A serva retomou seu caminho satisfeita. Agora podia contar a Camus o porquê de Milo tê-lo largado subitamente. Há seis meses ansiava por uma oportunidade de que alguém – Milo, Shaka ou até mesmo Afrodite – lhe contasse o motivo. Claro que ela sabia, mas era proibida de revelar o que via, podia apenas dar indiretas, conselhos, sobre o que o futuro reservava às pessoas. Essa era a sua maldição: podia ver o futuro com nitidez, mas se o contasse morreria. Estava determinada a morrer por Camus ou por Athena, mas guardava essa vez para o momento em que pudesse salvar a vida de um deles com a informação, não podia desperdiçar com briga de namorados. Mas, agora, tinha sabido por meio de uma pessoa normal! Correu para casa para contar ao mestre a idiotice que fora envolver-se com o pisciniano – há tanto tempo queria ter-lhe dito para não se deitar com o arqui-inimigo de Milo!

Mas sua felicidade foi rapidamente nublada pela mais nova visão que tivera. Tão cedo? Ela sabia que a hora em que Milo ficaria vulnerável a substituir o francês em seu coração estava próxima, mas tão rápido? Se não fizesse logo o francês abrir os olhos...! Apressou o passo. Qualquer minuto era crucial. Em breve Apollo chegaria ao Santuário, e com ele o maior obstáculo entre os dois cavaleiros. Eles ainda se amavam tanto...!

Minerva nunca considerara uma dádiva suas visões, mas sim sua maior frustração. De que adiantava saber antecipadamente as desgraças, se não podia as evitar? Sentia-se tão impotente só podendo assistir, e duas vezes, aquilo que traria o sofrimento às pessoas a sua volta. A maior maldição do mundo, acreditava ela, era saber demais; quanto mais se sabe, maior é o peso das decisões. Felizes aqueles que viviam na ignorância! Saber e não agir era um pecado maior do que não saber e não agir.

Chegou à penúltima casa juntamente com uma fina garoa. Antes de entrar, mirou o horizonte, onde ainda era possível avistar o sol. Ali, no trecho ainda iluminado da cidade, estavam treze Santos de Apollo aguardando o momento do ataque ao Santuário. Ah, se aquele fosse o único problema...! Minerva buscou, então, avistar Atenas, que já estava coberta por nuvens. Ali, no Hotel Grande Bretagne, em vinte e um dias, estaria possivelmente aquela que resgataria um amor já esquecido de Milo, até por ele próprio.


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Notas finais do capítulo

O próximo é o capítulo oito, o próximo é o capítulo oito, o próximo é o capítulo oito! *.*~

Obrigada a todos que têm tido paciência de esperar e estão lendo essa história! Espero que continuem lendo e que gostem ! Agora começa a parte interessante! *o*~ (na minha opinião – se bem que, de fato, ela começa só no capítulo 9, com a esperada "chegada", ehehehe)

Gente, o próximo é o capítulo OITO! *ansiedade-mor*



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