Exit escrita por Relinked


Capítulo 9
Capítulo 8


Notas iniciais do capítulo

Obrigado ao tio bio por me fazer reparar que o Rod sabe o que são semelhanças, e também que um leilão não funciona do jeito que eu supus funcionar.
Obrigado ao défi, também, por toda a correção feita no capítulo.



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Erick encontrava-se cara a cara com uma porta dupla multicolorida colossal no topo de uma escada de 119 degraus (Rod contou). O seu medo palpitava no coração acelerado, demonstrando que se arrependia de ser ousado e que começava a achar que a decisão não era nada racional ou responsável. Não que qualquer uma das coisas que andara fazendo nas últimas horas fosse racional, mas ainda conseguia manter-se no nível mínimo admitido por ele como “responsabilidade”. Ainda trazia consigo um garoto sem memórias e que poderia ser morto a qualquer momento. Ele mesmo poderia ser morto a qualquer momento, talvez nem sequer precisasse tocar em uma das duas grandes maçanetas da porta dupla, que piscavam em tons coloridos de maneira festeira.

Olhou para Rod e, com muito esforço, pois estava a ponto de defecar de medo ali na escada mesmo, disse um “É melhor você ficar aqui.”, num tom que pretendia fingir que ele não estava defecando de medo ali na escada mesmo, mas que falhou miseravelmente.

- De jeito nenhum. – disse Rod, que aparentemente também estava duvidando do que dizia.

Falas inúteis que na verdade queriam dizer, respectivamente “vem comigo, por tudo que há de mais sagrado” e “vou te largar aqui sozinho na frente dessa porta esquizofrênica, dar no pé e dizer que você me mandou embora”.

Engolindo em seco e respirando fundo, ambos aproximaram-se e tocaram, cada um, uma maçaneta. Nada de mais acontecera até então. Abriram as porta e se depararam com um rio de sangue que escorria do centro vazio da sala – mais especificamente, do corpo morto do senhor Vernico.

O silêncio pareceu rondar a sala carregando uma bandeja de aperitivos (já que tudo mais tinha um ar festeiro) enquanto Erick e Rod – que começara a ficar pálido – observavam a cena lúgubre na sala colorida e cheia de luzes que piscavam ritmicamente. Depois de algum tempo observando o líquido vermelho espalhado no chão emborrachado, o olhar de Erick recaiu na janela oval e viu, do lado de fora da mesma, uma silhueta escura sobre o parapeito, que usava cartola e carregava algo fofo em sua mão direita.

Depois de estancar o sangue do nariz agora torto e dolorido, Takeso sentou-se encostado na privada translúcida e melada com seu próprio vômito e sangue. Olhava pra Kellyn carrancudamente, e esta por sua vez permanecia de costas olhando pra porta. Os pensamentos de ambos corriam a mil para lugares totalmente diferentes, e suas emoções eram ambas contrastantes. O banheiro permanecia sujo e ouvia-se apenas a respiração ofegante de Takeso, até que o mesmo resolveu quebrar o silêncio.

- O que está acontecendo, afinal? – não conseguiu pensar em outra pergunta que fosse racional, direta e objetiva.

- Se soubéssemos já tínhamos te abandonado aqui e ido embora. – resmungou Kellyn, sem virar.

- Tínhamos? – perguntou Takeso, e sua voz assumiu um leve tom de desdém indefinido – Você e o barbudinho idiota?

- O único idiota aqui é você. – resmungou mais uma vez Kellyn.

- Você e ele? – insistiu Takeso.

- Sim, eu e o Erick. – afirmou Kellyn, mas dessa vez em alto e bom som, ao mesmo tempo em que se virava – Eu, ele e mais dois outros... seres.

Takeso parou por um instante pra pensar na segunda afirmação.

- Seres?

- É, não sei se são humanos. – disse Kellyn – não posso descartar nenhum tipo de possibilidade quando falo deles, principalmente o cara de cartola. Já nem tento mais questionar, só vou aceitando os fatos.

- Cara de cartola? – perguntou Takeso mais uma vez. Não entendera o que ela queria dizer, mas também passara a questionar menos e observar mais.

- É, cartola. Um estranho que aparentemente quer ajudar a gente a sair daqui.

- Ele sabe como?

- Se não sabe, atua muito bem. – disse Kellyn, sem querer assumir pra si mesma essa possibilidade.

O silêncio voltou a passear pelo banheiro, e Kellyn desta vez o quebrou:

- Diz que temos que encontrar o Alec. – suspirou – Aparentemente ele controla o mundo como bem entender. Não entendi direito como funciona, mas é quase como se ele fosse um deus aqui.

- Bobagem. – disse Takeso – O seu irmão não tem auto-suficiência nem pra atravessar a rua sozinho. – sorriu maldosamente – É mau de família.

O ruído seguinte foi algo como um tênis acertando um nariz já quebrado.

O sol havia nascido e Melanie já se desenrolara dos restos de balão. Alec permanecia desacordado, e ela estava com medo do que poderia vir a seguir. Dentre os quatro, por que ele?! Seu humor tinha decaído assustadoramente e ela começou a pensar que, caso Alec não acordasse logo, o mundo não poderia bonzinho e salvar eles de novo, fosse de ursos, fosse de crocodilos-canadenses-herbívoros-do-papo-amarelo. Não que esses crocodilos existissem, mas não que eles não pudessem existir. As planícies não pareciam seguras e o amarelo do balão chamava muita atenção. Sabe-se lá o que esse garoto já tinha imaginado para esse mundo. Piratas, mercenários, agentes, pilotos, submarinos terrestres, táxis navegantes. Sabe-se lá qual poderia ser a próxima coisa hostil que veriam. Enquanto pensava nessas coisas, foi surpreendida por duas mãos que taparam seus olhos com agilidade. Puxou as mesmas pra baixo e as mordeu com uma força descomunal para uma garota da sua idade (fosse qual fosse). Sentiu o sangue quente em sua boca, em meio aos seus dentes, e ouviu uma voz conhecida gritar de dor.

Depois de desejar ter parte dos seus dedos de volta, Alec ficou emburrado por um bom tempo. Sua perna aparentemente não queria se curar, mesmo que ele desejasse muito. Ela não estava mais quebrada, mas doía quando ele se apoiava na mesma. Começava também a formar-se uma tempestade nada amigável e o mais longe que ele tinha conseguido desejar fora uma caverna que brotou do chão e que era consideravelmente aconchegante por conter paredes estofadas e chocolates num refrigerador movido à pilha. Mas chuva não ia embora e os chocolates não pareciam voltar quando eles os comiam. E a perna continuava dolorida. Alec resolveu que dormiria mais uma vez e Melanie prometeu ficar de guarda. Todas as suas tentativas de conseguir outro balão foram nulas. Todo o seu tempo perdido foi em vão.

A silhueta na janela resolveu que aquele momento era bom o suficiente para quebrar o vidro e pular pra dentro do quarto. Rod, a primeira vista, pensou ser o tal “Raphael” que supostamente não gostava dele e que estivera guiando o grupo até algumas horas atrás, mas haviam diferenças visíveis, começando pelo fato de que o homem usava cartola e smoking brancos e tinha cabelos pretos que cobriam um dos olhos, além de uma cara que beirava à piedade. Carregava um travesseiro na mão direita, e sua imagem não condizia com o estardalhaço do vidro quebrado. O smoking branco, todavia, tinha respingos vermelhos e na sua outra mão ele carregava uma grande tesoura sem ponta ensangüentada.

Estupefatos com o repentino aparecimento de um ser que pulara da janela carregando uma tesoura sem ponta e um travesseiro, Erick e Rod permaneceram estáticos. A figura, entretanto, bocejou e encaminhou até o corpo já um tanto quanto picotado e ensangüentado do senhor Vernico e fez mais um picote na garganta, sem piedade ou nojo visível. Nesse instante, o pouco de cor que ainda poderia haver no rosto de Rod se esvaiu e ele caiu de borco no chão, com um impacto nada barulhento. O senhor de cabelo preto olhou rapidamente para o garoto estatelado, enquanto Erick voltava a terra e agachava para ver se estava tudo bem com Rod. Sua boca se abriu e sua voz chorosa atingiu os tímpanos de Erick:

- Desculpe...

Não bastasse a voz chorosa, a tesoura sem ponta, o cabelo preto em cima do olho, o rapaz se pôs a chorar em cima do corpo do senhor Vernico. Mas enquanto chorava e murmurava “desculpe!” derramando lágrimas e mais lágrimas em cima do corpo já muito desfigurado, ele continuava a picotar o mesmo com a tesoura, numa sinfonia de clics infernal. O chão emborrachado cada vez mais cheio de sangue e de pequenos pedaços de carne, o smoking cada vez menos branco, os murmúrios cada vez mais desesperados. A cena em si trazia a Erick uma vontade incrível de nunca ter entrado na sala, ou de ter insistido para que Rod ficasse. Estar ajoelhado ante a perspectiva de ter que carregar um garoto pesado caso fosse preciso fugir não era algo que ele podia chamar de “divertido”.

Depois de alguns minutos picotando o senhor Vernico, num murmúrio crescente de “desculpe”, o rapaz do travesseiro deu uma picotada de misericórdia com um grito angustiante - “DESCULPE!” – e levantou-se. Enxugou as lágrimas e correu até Erick e Rod, aproximando-se bastante dos dois antes de perguntar:

- Vocês estão bem?

Não que ele fosse obter resposta, e aparentemente não era o que ele queria. Olhou para trás, contemplando mais uma vez o cadáver, e voltou-se de novo para Erick.

- Chamam-me de Isaac. – Parou, colocou o indicador na frente dos lábios como se indicasse silêncio, olhou para os lados e prosseguiu: - Se o Esteban souber que eu chorei, fico de castigo. Então, se importa de não contar pra ninguém?

Erick não respondeu, e continuou olhando para o rosto de Isaac que estava agora terrivelmente perto do seu. Isaac fechou os olhos e permaneceu nessa posição. Aproveitando-se da situação, Erick levantou-se e ergueu Rod sem fazer muito barulho. O movimento era completamente perceptível, mas Isaac continuava na mesma posição, só que com o rosto agora perto do seu joelho. Sem querer realmente fazer o que fez, mas considerando necessário, chutou o rosto de Isaac com força, derrubando-o para trás e correndo em seguida para a porta aberta carregando Rod, sem conferir o resultado antes.

E em meio à nuvem de poeira e nostalgia que saltitava em lá menor sobre sua cabeça, a mãe de Kellyn ouviu o barulho de uma campainha. Não podia ser, já que campainhas necessitam de luz elétrica para funcionar, e que a chuva continuava forte de mais para que realmente algo pudesse ser ouvido. As panelas ainda tocavam um batuque baiano digno de acarajé quando ela ouviu mais uma vez a campainha. Levantou-se, e saiu do quarto meio escuro, em direção à escada. Deu uns tropicões em meio aos degraus que nunca tinham ido com a cara dela, mesmo, e foi em direção à porta, onde ouviu alguém bater. Sua imaginação não era muito fértil e ela tinha certeza de que ouvira algo, então abriu a porta.

Tirando o fato de que ficara ensopada de uma vez só, e que seria menos molhado pular numa piscina de biquíni num dia de garoa, ela viu um homem alto, de cabelos grisalhos e muito feio parado encostado na parede, com a sua jaqueta mais que ensopada, como se tivessem acabado de tirar o senhor de um tanque cheio de algo que talvez fosse água, mas não precisamente água.

- Vai me negar abrigo nessa chu... – começou o homem, mas a porta batendo em seu nariz veio com a resposta gritante estampada de maneira figurativa num ciclo de emoções crisálidas.

Ela iria, então, ignorá-lo. Deixá-lo lá, morrendo de pneumonia no dilúvio que provavelmente duraria 40 dias e quarenta noites, sendo que ele se quer tinha uma arca. Mas tudo bem. Ele não precisava mesmo do aconchego de uma casa seca e com eletricidade num dia chuvoso e cheio de granizos que batiam em sua cabeça a cada segundo, parecendo mais cometas destrambelhados em meio à chuva. Virou-se de costas para suspirar dramaticamente, mas arrependeu-se do feito assim que a chuva jogou praticamente um balde de água em seu rosto. Fechou os olhos, pensou no bem estar próprio e em quantos meses de prisão pegaria se invadisse uma propriedade privada, e arrombou a porta com um chute. O estrondo fez a mulher que subia as escadas penosamente gritar e se assustar, escorregando de um dos últimos degraus da mesma e rolando todos eles - que não gostavam dela - abaixo, permanecendo desacordada então com o barulho apavorante que sua cabeça fez ao atingir o nada amigável chão.

O leilão composto por duas compradoras fervilhava de insultos, xingamentos, socos, tapas, puxões no cabelo e risinhos de um cara usando cartola. Cada vez o número de soldados oferecidos em troca da escritura da Vernicomidas (a renomada fábrica de biscoitos) aumentava. Cem, duzentos, trezentos, mil, dois mil, mais que nove mil. As ofertas eram tentadoras, mas Raphael tinha um plano em mente desde o princípio, e não abandonaria o mesmo, pois tinha absoluta certeza de que daria certo, como sempre; pois tudo que Raphael pensava de antemão, mesmo que demorasse para acontecer, tinha um resultado satisfatório, no final.    "Os soldados virão, de ambas as partes    ", pensou consigo mesmo. Pediu ordem e disse, calmamente:

- Muito bem, senhoras. – e os ataques que envolviam puxões de cabelos e socos no olho esquerdo congelaram – Proponho, então, um jogo ao invés de um leilão.

- Um jogo? – perguntou Yuri, desconfiada, abaixando o punho direito que se encontrava no olho de Dayse.

- Sim, um jogo. – disse Raphael de trás do púlpito, segurando a escritura da Vernicomidas. – Ambas mandarão exércitos para a fábrica em questão e, o que matar o salafrário, fica com a escritura. Lembrem-se de matá-lo e trazerem o corpo preferencialmente sem muitos danos para mim.

- Mas e de que isso adiantaria? - perguntou Dayse, soltando dos cabelos de Yuri e olhando fixamente para o sorriso de Raphael.

- Para vocês, uma fábrica de biscoitos. Para meus colegas de trabalho, o começo de um fim. Para mim... vingança. – E sorriu.

Ambas, sapa e garota, olharam a escritura e pensaram ter entendido apenas a parte que tinha relação com uma fábrica de biscoitos. Era o suficiente para mandar o exército todo e mais um pouco, ainda. Raphael, por outro lado, tinha um pequeno medo que não queria que nenhum ser jamais soubesse: ele poderia não estar lá. O maldito do travesseiro poderia ter sido substituído por outro, ou simplesmente não ter ido, covarde como era. “Mas a esperança e o estilo são os últimos que morrem, antes de mim, claro.”, pensou Raphael.

O silêncio reinara por muito tempo depois de Kellyn ter explicado todo o caso para Takeso, mesmo que a contragosto. Estavam agora cada um cuidando de seus próprios pensamentos, quando a porta do banheiro se escancarou e Erick apareceu, ofegante, carregando Rod nas costas e com as pernas bambas. Descera 119 degraus de 3 em 3 e correra toda a extensão da fábrica com um garoto consideravelmente pesado nas costas, com medo de um cara com uma tesoura sem ponta e um travesseiro.

Desabou no chão em seguida. Não teve tempo se quer pra dizer uma palavra. Apenas caiu, desmaiado com o cansaço, Rod estatelado sobre ele. Kellyn e Takeso estavam ainda aparvalhados com a repentina entrada espalhafatosa de ambos, mas logo Kellyn levantou-se para ver se tudo estava bem. Ambos estavam respirando, embora Rod estivesse frio e ainda menos colorido que o normal. Kellyn percebeu o sangue empapado no tênis de Erick, e o pouco de sangue que também havia na calça branco-cinzenta de Rod. Passou imediatamente a ficar preocupada, pensando que talvez algo pudesse estar atrás de ambos e que logo mais esse “algo” faria uma visitinha a um banheiro de uma privada e nada mais. Olhou acusadoramente para Takeso, que se recusava a fazer sequer uma cara de pena, por que passara por coisas tão ruins quanto a poucas horas e recebera um tapa no lugar de atenção. Não que ele quisesse atenção daquela menina que fingia ser moleque e que era mais sem-educação que ele mesmo. Só não queria levar um tapa. Só isso.


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