O Utópico das Borboletas escrita por Sebastian


Capítulo 1
O Casulo


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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                                                         PARTE I

                             A metamorfose

                    

I

O Casulo 

 

Ele olha para o relógio quadrado, com bordas de madeira, pendurado na parede branca, com uma listra pintada em um tom de verde gasto. Ouve os ponteiros fazendo aquele barulho exasperado, enquanto sua mãe está ao seu lado. Encara a mulher loira de olhos castanhos profundos, com uma expressão cansada e envelhecida, aflita por estar ali. O menino analisa a porta branca de madeira que contém uma pequena placa metálica escrita "Dr. Dunney". O relógio bate 14h em ponto.  A porta do consultório se abriu e de lá sai um adolescente, que não aparenta ter problemas, assim como ele e mais uma vez pensa que tudo isso não passa de um terrível engano. 

— Mary Juliet Davis — fala a secretária do doutor Dunney.

Uma mulher se levanta, um tanto desconfortável com o silêncio do ambiente. Prontamente entra na sala. O garoto olha para trás e observa as poucas pessoas sentadas nas cadeiras, pondera novamente e simplesmente não entende o motivo que o levou até ali, Vira-se para sua mãe e pergunta:

— Por que ainda estamos aqui?

Ela o olha séria e não responde, apenas coloca os braços em volta do menino e lhe dá um forte abraço.

Na verdade, o motivo pelo qual estão lá é um pouco intrigante. Alguns fatos que ocorreram ao longo dos últimos meses, além do evento na escola há uma semana, que fez a mulher ter pesadelo durante dias. Sara Walker  não está aí porque quer, mas por uma dúvida que ronda sua cabeça desde o dia em que seu filho foi concebido e pela influência de uma mulher completamente abatida pela tristeza, que o culpa por uma tragédia, a qual, talvez, tenha sido acidental. 

TRÊS SEMANAS ATRÁS

 

Ele estava sentado em um balanço e, lentamente, ia para frente e para trás, com os pés ainda apoiados no chão. Ouvia o barulho irritante do ferro enferrujado rangendo a cada movimento. Ele observava as outras crianças brincarem no pequeno parque da escola — que continha uma caixa de areia de tamanho médio e um escorregador pequeno, além de algumas que até brincavam diretamente na neve.

Toda sexta-feira, quase no final da aula, Srta. Johnson levava as crianças para brincar. Contudo, duas delas ficavam paradas observando as outras: Ele e uma garota. Bem no começo, ela até tentava algo com os outros pequenos alunos, mas alguma coisa estava tirando-a da realidade e a levando para algo paralelo.

Hoje não passava de uma sexta-feira qualquer, mas, desta vez, a menina foi em direção ao balanço vazio, sentando-se à direita dele. Estava na mesma condição que o menino: ia para frente e para trás, devagar, sem tirar os pés do gramado, até que finalmente suas mentes saíram do silêncio. Ele deu a primeira palavra.

— Por que não fala com as outras crianças? — Olhou-a com mais foco.

Após minutos de um silêncio suspeito, ela finalmente disse alguma coisa. Depois de observar cada movimento dele com um olhar paranoico, a menina parecia entreter-se dentro da alma do garoto.

— Por que você não fala com as outras crianças? — Ela lhe devolveu a pergunta, ainda olhando para o menino.

— Não sou muito de falar... — Ele olhou para o gramado coberto de neve. — E você? — Ele voltou seu olhar para ela.

— Não sei... — Ela falou com a voz meio abafada.

— Annabel Mitchell?

— Você é muito curioso. — Ela o fitou.

— Minha irmã sempre me diz isso — Ele deu de ombros.

— Eu bem queria ter irmãos ou irmãs... — A menina comentou, desviando o olhar para seus sapatos. — Qual é o nome da sua irmã? — Voltou seu olhar para o garoto.

— Você é muito curiosa — ele retrucou em tom de desforra.

— Ora, não seja bobo — disse Annabel, franzindo o cenho.

Os dois ficaram em silêncio, o pequeno assunto parecia ter morrido. Então, de repente, Annabel virou a cabeça para trás e seus olhos se arregalaram, um medo tomou conta dela por dentro. Viu um homem alto, extrema e assustadoramente alto. Seu traje era todo negro e um capuz cobria sua cabeça. Seu rosto era apenas um espaço vazio, uma sombra sem expressão, e isso a assustava ainda mais.

Annabel Mitchell teve seu primeiro surto de esquizofrenia. Ela estava saindo da realidade e entrando nos seus delírios, acreditando no seu mundo paralelo. Aos oito anos, essa doença em estado grave pode ser muito mais difícil de ser tratada, pois, em uma criança, as coisas podem ser ainda mais confusas, principalmente se forem descobertas tardiamente. Seu nível de loucura ainda não era muito avançado, mas, em alguns quadros, conforme os surtos vão surgindo, mais grave se tornam, variando de um caso para o outro. Sua família ainda não tinha conhecimento deste mal. Mitchell olhou para o garoto apreensiva. Ela ficou paralisada, tentando gritar.

— Você... Vo... Você... Está vendo? — Ela gaguejou. — Está aqui. Ele está aqui. Ele quer me levar... Ele quer me levar... Não deixa ele me levar... Não deixa ele me levar! — Ela disparava ao falar e Eric a olhava sem entender nada, percebeu que o lábios dela tremulavam e seus olhos nadavam em lágrimas.

— Não chora — Ele falou ríspido, segurando seus ombros. — Se você chorar, eu vou estar encrencado, a srta. Johnson vai pensar que eu fiz alguma coisa com você.

— Você não vê? — Annabel não conseguiu segurar o choro. — Tem um homem de capuz me observando, ele está se preparando para me pegar.

Ele olhou para trás e tudo o que viu foram os arbustos secos cobertos por neve e o grande muro branco. Então respondeu:

— Sim, claro que estou vendo. — Não via nada, mas precisava assegurar Annabel de que era uma pessoa confiável e que fazia parte do mundo dela.

A menina o olhou menos desconfiada, então sentiu que não era um pontinho branco em meio aos pontos pretos, sentiu que alguém podia entendê-la e que, principalmente, não era louca.

— Eric Walker? — Ela disse, virando a cabeça para frente e tentando esquecer que estava sendo observada.

— Isso. — Ele abriu um sorriso apagado que logo se desfez ao ver a professora se aproximar. — Ah, não.

— Annabel! — gritou Senhorita Johnson, indo em direção aos dois. — O que aconteceu? — disse a mulher preocupada.

— Nada. — respondeu Eric, rápido e direto. — Está tudo bem, Srta. Johnson.

— Annabel? — A professora a olhou torto. A garota olhou para trás, visualizou a figura assustadora novamente e começou a chorar, repetindo as mesmas falas. — Annabel? — indagou novamente. — Você está bem, querida?

— Eu... Eu quero ir para casa, srta. Johnson — disse a garota entre soluços. — Eu estou com medo.

— Medo? — A mulher franziu o cenho. — Walker? — Redirecionou-se para o menino, que se encontrava parado, observando Annabel.

— Eu não fiz nada, srta. Johnson, eu juro.

— É verdade? — A professora a olhou torto e a menina assentiu. — Certo, vamos para diretoria, vou ligar para sua mãe. — A professora segurou a mão da garotinha, tentando consolá-la.

O garoto ficou para trás espiando o muro, como se a figura assombrosa fosse despontar dos tijolos.

Annabel faltou às aulas durante três dias, quando finalmente apareceu, para surpresa de Eric, ela se sentou ao seu lado no refeitório, pediu desculpas pelo ocorrido de sexta-feira e logo puxou um assunto aleatório, algo com tirar coelhos de cartolas, "eu tenho um coelho e estou há dias treinando esse truque de mágica", afirmou e, mais tarde, Eric declarou que conseguia resolver um cubo mágico em um minuto. A partir deste dia, Annabel e Eric passaram a conversar todos os dias. Começaram a formar um vínculo amigável, em que ele entendia todas as loucuras dela e ela compreendia todas as esquisitices dele.

Numa sexta-feira, todas as crianças saíram da sala, menos os dois. Ele tentava convencê-la que não tinha ninguém lá fora a esperando para matá-la. Senhorita Johnson só os observava, ela já tinha percebido o que estava acontecendo. Naquele dia mesmo, decidiu que na hora da saída teria uma conversa séria com a mãe da garota.

— Vocês dois! — exclamou a professora — Venham rápido, não posso deixá-los aqui.

— Annabel, não há ninguém lá fora. — Ele sorriu — Eu já vi, lembra? Eu também posso vê-lo.

— Eu não acredito em você.

— Não confia em mim? — Ele estendeu a mão. — Venha.

Annabel o olhou e segurou sua mão. Ele a conduziu pelos corredores e foram direto para o lugar que sempre ficavam, para os balanços. Ele começou a empurrar o balanço dela como sempre fazia, mas esse dia não seria como os outros. Annabel estava apreensiva, estava perto do seu segundo surto.

Ela olhou para trás e viu novamente o homem sombrio. Seus olhos se arregalaram. Olhou para Eric e ele olhou para a mesma direção que ela. Desta vez, Annabel não ficou parada, ela simplesmente correu em direção a seu delírio. Eric foi atrás dela.

Senhorita Johnson estava distraída, pois lia um livro. De vez em quando, olhava o movimento das crianças.

Ela correu rodeando a escola, seguia o vulto negro, até que chegou a uma porta entreaberta. A porta os levava para uma escada. Annabel começou a subir os degraus rapidamente, quase tropeçando. O fim dela revelava o terraço do edifício de dois andares. O lugar estava vazio, o ar encontrava-se frio e a garota simplesmente andava mais e mais para a ponta do prédio. Eric seguia cada passo dela.

— Annabel! — gritou. Ela se virou e o olhou séria. Ele andou em direção a ela.

Vozes ecoavam pela sua cabeça, deixando-a ainda mais confusa.

"Jogue-se e se livrará de tudo isso". "Jogue-se e vamos deixá-la em paz". As vozes assustadoras gritavam na sua mente.

— Eu vou me livrar dele para sempre. — Ela sorriu.

— Você vai morrer! — Ele gritou. — Olha, uma hora vão se dar conta de que nós dois sumimos. Vão nos procurar, vão nos achar aqui e então seremos castigados. A senhorita Johnson... Ela... Ela já sabe que você é louca. — Isso escapou da boca dele sem querer.

— Eu não sou louca! — Ela gritou — Eu não sou louca! — Em meio àquilo, aquelas vozes perturbadoras sussurravam na sua cabeça. Annabel foi para ponta do prédio e virou-se de costas. — Eu vou me livrar para sempre... — Essa foi a última coisa que disse antes de quase cair. Eric segurou sua mão fortemente.

Naquele momento contemplou seus olhos deprimidos, medonhos e desequilibrados, ocorreu-lhe que não sentiria falta de Annabel, e se partisse agora, não choraria por ela. Seria como perder um dente de leite, indolor e insignificante, sem demora encontraria alguém para ocupar seu lugar. De repente, os olhos da menina se arregalaram, ela pareceu cair em si novamente. Ela olhou para Eric, que fazia todo o esforço para segurá-la firmemente, ao mesmo tempo que todos os pensamentos dele se voltavam em vê-la cair.

— Salve-me. — disse ela, quase uma súplica.

Não demorou muito para que uma roda de crianças curiosas se formasse abaixo deles, logo as cabecinhas abelhudas emergiram das janelas com olhares de pânico, algumas já até choravam e gritavam pela garotinha; os professores, a diretora da escola, todos se puseram a assistir a cena e discutir o que deveria ser feito, alguns diziam "segurem firme, crianças" ou " vou chamar o corpo de bombeiros!" e outro retrucava, "não seja tolo, não dará tempo!". Johnson estava azul de nervoso, foi quando decidiu bancar a heroína para curar a culpa por não ter olhado as crianças e acabar com toda aquela discussão que não levaria a lugar nenhum.

— Você que ir para o céu, não é? — Ele indagou, após espiar todo o reboliço abaixo dos pés dela. Sua mão já suava, ficando cada vez mais escorregadia e a dor nos seus bracinhos magricelas começava a se instalar como intrusa.

Annabel lhe devolveu um olhar confuso, as vozes, os choros e súplicas, deixavam-na cada vez mais perturbada, não obstante os ruídos na sua cabeça. Quando encarou o chão, os pés de altura que se encontrava abaixo, sentiu medo e desejou que Eric a puxasse, não queria morrer.

— Eric, eu não quero cair — sussurrou ela. — Não me deixe cair.

— Me desculpa, Anna, não consigo mais, meu braço está doendo.

— Eric... — A garota o olhou pela última vez cheia de melancolia.

Então a mão dele foi se soltando da dela lentamente. Ele a deixou cair por pena ou por impulso? Srta. Johnson chegou tarde demais, tudo o que viu foi o garoto parado na ponta do prédio. Eric virou a cabeça para olhá-la e, apesar de tudo, o emocional dele não parecia nem um pouco abatido, mantia sua expressão indiferente usual. Ele começou a andar de volta para o andar de baixo, para o lugar onde o corpo de sua amiga caiu.

Não havia mais crianças do lado de fora, apenas espreitando pela janelas, aflitas, somente os adultos viram de perto a cena horrorosa, não havia reação para tamanha tragédia. Todo seriam punidos, principalmente Ambrose Johnson, a irresponsável que por um descuido permitiu que aquilo acontecesse e o nome da escola iria aparecer nas manchetes dos jornais de toda a cidade. Haveria revolta.

A garota caiu de maneira desajeitada, seu corpo afundou na neve e parecia estar todo despedaçado. A cabeça estava virada para o lado, como se estivesse fora do lugar e inclinada para cima. Os joelhos se encontram dobrados para o lado direto, enquanto seus braços apresentavam-se esticados. O sangue já começava a aspergir do nariz, escorria de forma repugnante, atravessando um caminho longo pelas bochechas e terminava no lóbulo da orelha, pingando como gotas em orvalho. O líquido rubro saía por trás de sua cabeça, alastrando-se lentamente e manchando a neve.

Ele olhou o para o cadáver, aquela imagem não saía da sua cabeça, cada detalhe até da sua vestimenta — o sobretudo acinzentado que chegava até seu joelho, a meia calça preta espessamente grossa e as botas de mesma cor. Não estava assustado de forma alguma, encontrava-se, na verdade, em um estado de admiração. Espiava os olhos da menina vidrados para o céu nublado, os flocos de neve caindo em cima dela, em cima da negritude de seus cabelos. Ela estava ali, morta, para se livrar de um sofrimento silencioso, que apenas um louco entenderia. Achava-se como uma boneca de porcelana quebrada, frágil e intocável.

Naquele dia, algo havia mudado dentro dele, como uma lagarta Eric entrou no seu casulo à espera de sua soturna metamorfose. 

 


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