Felina escrita por MuriloVonNachtwind


Capítulo 8
As pessoas são ótimas...




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               O leitor vai me perdoar desculpar a maneira como interrompi o último capítulo, meio abrupta e inesperadamente. É que não tinha outra forma de mostrar o que se passou em uns poucos instantes, senão em muitas linhas de um novo capítulo. Não quis quebrar tanto o estilo a ponto de deixar um capítulo híbrido. Eu explico. Aquele capítulo, o anterior, tem um diálogo mais ou menos escorreito. Fui escrevendo e no meio ocorreu uma metamorfose, curiosa metamorfose, que ainda que não valha um Kafka, vale a pena explanar.

               As vozes internas dos personagens iam, a cada linha, falando mais alto que a conversa deles. E já diferia completamente em estilo do começo. Eram como irmãos siameses, tinham a mesma origem, mas estavam aglutinados. E aglutinados de forma comprometedora. Era caso de uma cirurgia delicada de separação. Mas não sendo eu médico especialista, fiz essa operação tosca de simplesmente cortar os irmãos ao meio e torcer para que ambos sobrevivam.

É que às vezes o estilo tem que ser sacrificado – e o texto fragmentado, e o ritmo perdido – em favor da maior clareza de ideias e sentimentos daqueles dois jovens. O leitor há de ter notado que são dois jovens peculiares, e assim sendo, hão de ter capítulos proporcionalmente peculiares. Retomemos então a última fala de Marcinha, que é o marco da separação definitiva daquele capítulo, mais de falas, e deste, mais de pensamentos. Dizia Marcinha:

“Amo esse lugar. Tudo que preciso tenho por aqui. Menos o teatro, de que gosto, mas não tenho condições de assistir sempre.”

               O rapaz não conhecia muito de teatro. Preferia ler romances, crônicas, poesia. Pelo teatro nunca teve grande curiosidade. E mesmo pelo que lia não possuía tanta curiosidade a ponto de ir estudar a fundo a literatura. Era afinal, um estudante de Direito, e como tal, um pusilânime, sem grandes aspirações. Não era em nada magnânimo.

Minto, tinha aspirações e era magnânimo. Queria ser um bom estudante, depois fazer concursos, ser delegado, promotor. Ou quem sabe professor, era bem possível que gostasse de dar aula. E por isso estudava, mantinha boas notas e era monitor de Constitucional. Mas Lúcio não tinha certeza de nada, andava assim, desnorteado. Tinha certeza de que queria terminar a faculdade e dela fazer algo, só. Essa falta de norte era compensada pela magnanimidade religiosa do rapaz.

                Preocupava-se, sim, em ser um bom católico, apesar de não frequentar as missas como deveria. Queria ser bom, e era bom, honesto. E se isso por vezes o trazia felicidade, por outras o feria e machucava. O homem no meio de feras não pode ser um cordeiro. Devia ser fera, como aconselha Augusto dos Anjos. Lúcio não queria ser fera, não por pusilanimidade, mas por livre arbítrio. Sabia perdoar, e de fato perdoava. Perdoava, como Cristo, a quem o cuspia, feria e crucificava.

               Marcinha, por sua vez, conhecia muito sobre teatro. Posto que não fosse bela, não tinha os hábitos noturnos da gente da sua geração. Não era de festas, era de livros. Sabia a um bom livro como a um bom vinho, e pouco a pouco ia sabendo toda escala diatônica das cores da boa literatura. Ia, portanto, se fazendo enóloga do bom Teatro, nas suas mais diversas manifestações: provava de um Sófocles ou um Plauto com a mesma alma que provava um Shakespeare e com o mesmo coração que degustava um Beckett ou um Ionesco.  Com seu paladar apurado, sonhava ser crítica teatral. Gostaria também de ser atriz, mas não tinha cara – literalmente – para isso, mesmo que tivesse algum talento. Amaria escrever, mas com toda sua leitura faltava-lhe sabe lá que arranjo intracromossomial específico para criar. Restava-lhe então a sua primeira opção, e com ela se contentava. Se chegasse a ser metade de um Sábato Magaldi, estaria felicíssima.

               Essa rápida autoanálise era típica de ambos os jovens – traço em comum que eles nem desconfiavam. Levaram nela quase que dois ou três segundos, como já havia enunciado, e nesse meio tempo veio o rapaz com o pedido.

“Uma fritada dupla e dois pingados na mão”

                Pôs o prato na mesa. Era, na prática, o equivalente a dois pães franceses com uma fritada, provavelmente de queijo e presunto. O rapaz se lembrava daquela padaria, flashes da infância. Como sua vó sempre o levava lá, sua tia e até seu pai. Todas as cenas passavam na sua cabeça, doces, salgados, cheiros, cores nada de muito concreto. Às vezes aparecia uma que lhe parecia menos amorfa, e logo se esfumava. A memória era algo esquisito. Bebeu do pingado. Estava muito, muito quente, o que disfarçava o doce absurdo.

“Se fosse café” disse.  “Todo esse açúcar ia estragar o sabor. Mas acho que no cappuccino e no café com leite o doce é essencial. Não concorda?”

               Ela ri. O rapaz tinha um jeito de falar diferente do que estava acostumada a ouvir, mas mais acostumada a ler. Parecia todo ele um personagem saído de alguma crônica dos anos quarenta ou cinquenta. Talvez sessenta. Era uma figura anacrônica, portanto. Mas isso era algo, para ela, atrativo. Ela não sabia como era ser cortejada na realidade, posto que nunca tivesse sido, mas o jeito dele parecia coisa de conto, de romance, não da realidade. Pelo menos era totalmente diferente do que ela via acontecer. Podia ser também que ele não gostasse dela. Mas então qual o propósito de toda aquela cortesia? Poderia ser o jeito do rapaz, ora essa. O rapaz podia ser o último romântico. Não parecia com “O Último Romântico” do Roberto Rodrigues. Tinha olhos baixos, mas não de tristeza. Eram olhos que investigavam a tudo, e talvez a ela. Esse último pensamento fez com que ela sorrisse involuntariamente.

“Concordo.”

“Você é o máximo” disse ele, assim, de supetão. “Quero dizer que você tem um sorriso lindo. Lindo mesmo.”

                Ela sorriu mais abertamente. Não foi forçado, mas natural, afinal ela não estava acostumada a galanteios. Mesmo que fossem desses que são óbvios e clichosos.  O que importava era que ele reparava nela, e ela se sentia bem. Bem, mas com uma taquicardia e uma leve náusea, sintomas da ansiedade que advém de um primeiro encontro. Encontro ao acaso sim, mas ainda assim primeiro. E aos olhos dela, um encontro, num sentido que nunca antes tinha cogitado usar a palavra.

                Lúcio aceitou o sorriso como sinal de que causava boa impressão. Mas era uma questão de tempo até que seu anacronismo pusesse tudo a perder, por isso foi tão incisivo. A incisividade não era do seu feitio, era do tipo mineiro, apesar de carioca, que preferia ir cercando a menina como um cão cerca as ovelhas. Um cão, não um lobo. Mas nesse caso era preciso ser lobo. A menina cedia, mas aos bocadinhos. Não se tratava propriamente de uma resistência, mas provavelmente de um medo de se envolver e se machucar. Lúcio não tinha a intenção de machucar a menina, então era caso de envolvê-la, tomar dela a confiança e, enfim, talvez ter um futuro a dois com aquela menina.

“Como eu ia dizendo” Disse Lúcio. “Estou cada vez me sentindo mais em casa aqui no bairro. Gosto do ambiente, das pessoas. Principalmente das pessoas.”

                Marcinha cogitou estar interpretando mal a frase. O rapaz disse pessoas, não disse mulheres, nem moças, nem Marcinha. Mas talvez quisesse dizer exatamente isso. Não era possível ter certeza, mas ela daria qualquer coisa para ter. Talvez o rapaz pensasse que um lugar que, como ela disse, bastava em si mesmo, fosse o ideal para ele.

                Na verdade Lúcio teve ambos os pensamentos. Concluía, sim, que Olaria ser um bairro bastante em si mesmo era um ponto positivo. Mas as pessoas de quem falava eram resumidas em Marcinha. Só Marcinha interessava. E ele precisava dar a entender que estava, de fato, interessado. A menina teria, ele sabia, dificuldades para aceitar que alguém a pudesse amar. Mas era fato que ele gostava dela, e exatamente pelo que fazia que outros a rejeitassem. Ele precisava fazê-la compreender que havia beleza nela.

“As pessoas são ótimas...”

                Ia dizer mais alguma coisa. Mas parou quando percebeu que a irmã aparecera. Não atinava para o que esse rapaz via em Marcinha, mas não era certo que eles se conhecessem ontem e hoje tomassem café juntos, enquanto a família esperava que a menina lhes trouxesse o pão e o queijo do café da manhã. A família estranhava o atraso. Laís teve de ir pessoalmente à padaria ver o motivo da demora. E nunca confessaria, mas tinha uma repulsa daquele rapaz. Um rapaz que conseguisse amar Marcinha? Não era possível. E pior que o rapaz não parecia um golpista, nem Marcinha um alvo de golpe. Se fosse um aproveitador ela entenderia. Mas um admirador não lhe cabia na cabeça.


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