Felina escrita por MuriloVonNachtwind


Capítulo 6
Entre o sonho e o pão doce




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No dia seguinte Lúcio acordou cedo. Não era novidade, posto que acordasse sempre antes das sete, normalmente às seis e meia. Não fazia isso por gosto, mas por hábito. Ainda que fosse dormir tarde, seu corpo habituado ao levantar-se cedo o fazia acordar, quando sua mente queria mesmo era dormir e cumprir às oito horas mandatórias de sono.

Pôs-se de pé e viu que sua tia dormia. Não sabia muito bem dos hábitos dela, então achou melhor não acordá-la. Silente pegou das chaves e saiu. Tinha fome e precisava do seu café. Ia à padaria que ficava a poucos metros dali. Toda manhã era a mesma coisa: seu cérebro ainda não estava ligado, ia ligando a cada passo, mas só estaria totalmente operacional depois do café.

Chegou à padaria sem muitas reflexões, portanto. Em lá chegando se depara com Marcinha. Marcinha tinha hábito de acordar cedo também, pensou. Era essa a fonte das olheiras. Concluiu disso que toda mulher deveria acordar antes das sete para ser Cleópatra. Marcinha de manhã parecia mais Cleópatra, de olheiras mais delineadas e sem maquilagem que as disfarçasse. Tinha uma pele boa, visivelmente boa.

Marcinha estava escolhendo doces em uma vitrine. Vestia um vestidinho simples, mas usava um cinto que delineava bem sua silhueta. Lúcio era detalhista em relação às mulheres, dificilmente algum detalhe feminino lhe passaria despercebido. Achava mesmo que o vestir-se bem era quase que uma obrigação feminina. E achar uma menina que tivesse cuidados tais no subúrbio era mesmo surreal. A cada novo detalhe Marcinha parecia mais bela, mais ideal.

A elegância da menina era sem igual naquele ambiente. Destoava, portanto, de toda a atmosfera suburbana daquela padaria. Mas o jeito da menina – o jeito imperativo, mas quase submisso da menina, por desconhecer sua própria majestade – e sua forma de andar eram Olaria completa. Um lugar que é imponente, mas inocente da própria imponência. Ou, como diria um outro Rodrigues, “um peixe cego, mas que tem luz própria”. O rapaz, ainda meio entorpecido do sono e da paixão, foi falar com ela.

“Oi.” Disse, de uma voz grave, como a de um Vincent Price. “Que temos de bom aí?”

A menina não esperava um “oi”. Não tinha muitos amigos que pudessem estar acordados àquela hora, então não esperava que hora homem algum lhe dirigisse sua voz grave. Ademais estava distraída escolhendo entre o sonho e o pão doce. O pão doce parecia que era do dia anterior e podia mesmo ser, considerando que era cedo. Tinha optado pelo sonho, quando um “Oi” barítono a assusta. Depois do susto viu que era o rapaz do dia anterior. O reconheceu. Sim, escolhia o sonho – ou era um sonho. Tinha tanta esperança no amor do rapaz que acreditava que era tanto possível que o pão doce fosse dormido, quanto o rapaz sonhado.

“Marcinha, não?” A menina ainda sem fôlego fez que sim com a cabeça. “Me lembrei que não cheguei a me apresentar. Não gosto de saber o nome das pessoas sem que elas saibam o meu. Lúcio, prazer.”

“Prazer.” Disse ela quase sem voz

“Que coincidência, não?” Ri. “Às vezes acho que a vida tem um roteirista que tem obsessão por coincidências. Depois me lembro de que tenho livre arbítrio e isso é besteira.”

A menina ri. O rapaz Lembrou-se do Dr. Odorico Quintela, do seriado que a Globo havia feito e ele assistira posteriormente, em um DVD, “Engraçadinha: Seus amores e seus pecados.”. Dizia o personagem insistentemente “Deus está nas coincidências”. E estava inclinado a acreditar que Deus guiava os homens, não como marionetes, mas como um rebanho. As coincidências então eram parte da economia divina, que é pai pródigo e nunca abandona seus filhos. Percebeu então que seu cérebro estava ligando. Bom. “Deus está nas coincidências!”. Efetivamente sua vida era um emaranhado delas. Marcinha era mais uma que assomava. Enquanto pensava isso não falava. E como Marcinha não falasse, se dava um silêncio. Uns chamariam de constrangedor, mas não. Era um silêncio confidente. Na ausência de palavras, não as diziam, estaria faltando com a verdade se eu dissesse que não havia comunicação. Pelo menos enquanto os olhos de um estavam no outro.

“Deus está nas coincidências, não é verdade?” Disse o rapaz, para quebrar o gelo. Tentou, mas não pôde deixar de imitar o Paulo Betti. Sua tentativa disfarçou a imitação e a frase até que saiu original. A menina só repararia se tivesse visto a minissérie.

“É verdade.”

“Não vamos desperdiçar um pequeno milagre desses, então. Toma café da manhã comigo?”

A menina ri. Pelo visto não conhecia o Odorico Quintela do Paulo Betti. Menos mal. A primeira impressão era a que ficava, e a de ontem aparentemente tinha sido boa. Era caso de não errar na segunda impressão, nem na terceira, e, de preferência em nenhuma. Mas o rapaz se conhecia, tinha um jeito peculiar, meio anacrônico, que cedo ou tarde poderia pôr tudo a perder. Era o caso de não errar até ela se apaixonar. Os apaixonados perdoam todos os defeitos.

“Tomo.” Disse, cabisbaixa.

“Opa!” Disse, se voltando para o rapaz no balcão. “Sai uma fritada, meu chapa?”

“Simples ou dupla?”

“Dupla. Capricha, rapaz. E me vê um café grande, por favor.” Depois, para Marcinha: “Você bebe café?”

“Pingado, ou com leite, sim. Puro, depende. Sou meio chata com café.”

A menina morava ali. Era criteriosa com café. Conhecia, portanto, o café da padaria, e sabia que não era bom. Ele, que também gostava de café, e também era um tanto quanto criterioso decide mudar o pedido. Um pedido igual aproximaria mais os dois, além disso. Se bem que as coincidências já estavam fazendo muito trabalho útil, como fossem os dois protagonistas de uma novela das oito.

“Ó bom, suspende o café e põe dois pingados no lugar.”

“Certo, chefia. Uma fritada dupla e dois pingados no capricho.”

“Tem uma mesa ali. Está boa pra você?” O rapaz aponta.

O rapaz queria estar com ela. E era diferente dos seus amigos. Seus amigos não tinham olhos profundos, negros, que a engoliam como fossem restos de uma estrela morta. Ele talvez gostasse dela. E era fato que seria uma graça de Deus nunca antes ocorrida. Era caso de aproveitar. “Deus está nas coincidências”. Recusar uma graça é pecar. Marcinha faz que sim com a cabeça e ambos foram àquela mesa apontada.


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