Felina escrita por MuriloVonNachtwind


Capítulo 1
Flechas nos olhos




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Marcinha não era bonita. Não aos olhos da maioria dos homens, que a achavam um tipo esquisito. Tinha, sim, um nariz particular, umas bochechas que eram só dela. Mas neles os outros – não só os homens, as mulheres também – não conseguiam enxergar um pingo de beleza por um átimo de segundo.

Justiça seja feita, tinha também uns cabelos sedosíssimos. Lindos mesmo. E as mulheres decerto invejavam suas longas madeixas negras. Além delas tinha uns olhos profundos, inquisitivos, que pareciam flechas. Minto, eram flechas. Mas Marcinha, talvez por aceitar a opinião pública e, portanto, se crer inferior, não as atirava. Não as atirando, ficava com um olhar profundo, baixo e perdido. Seu olhar era uma fossa abissal, portanto.

Lúcio era um apaixonado daqueles patológicos. Não podia ver uma pequena que encontrava nela beleza. Tinha, dessa forma, o gosto mais bizarro do mundo – para a opinião pública, é claro. Às vezes namorava pequenas com tratos, como disse, “particulares”. Achava, por exemplo, que olheiras eram qualidade para uma mulher. Uma mulher com olheiras tinha um olhar mais profundo, mais delineado, de uma Cleópatra.

Acresce que Marcinha tinha olheiras de Cleópatra. Foi a primeira coisa que Lúcio reparou nela, quando se encontraram, por acaso, numa rua de Olaria. Marcinha andava de bicicleta, ia de um lado para outro da rua, mascando chicletes. Era noite. O rapaz era um distraído e atravessava a passo largo, sem olhar, e a menina o atropelou.

Caído no chão, Lúcio se sentiu envergonhado. Mas levantou os olhos e deu com os olhos de Marcinha. A cena foi bíblica: Lúcio era Jacó e Marcinha, Raquel. Amor à primeira vista. Amor, paixão talvez. O mais importante é que os olhos de Marcinha brilhavam. Olhou a menina. Não era bonita. Mas tinha uns olhos divinos.

E a divindade dos olhos foi se expandindo como um Napoleão ou um Alexandre Magno.  Com a ajuda das olheiras, foi conquistando o nariz, as bochechas, os cabelos e toda a figura da menina. Divinos olhos! Iluminada pela meia-luz de um holofote capenga, que em nada diminuía a grandiosidade do momento, toda Marcinha era bela, linda aos olhos de Lúcio. E Lúcio era o único homem do mundo capaz de ver essa beleza.

Ele se levantou de pronto. Fez questão de ajudar a menina, ainda meio atordoado pelo tesouro de beleza que encontrara no subúrbio carioca. Sabia que seus amigos não aprovariam, que o tachariam de louco – e não são todos os apaixonados loucos? – assim pensava nosso rapaz.  Se os outros não viam a beleza que ele via, pior para eles; melhor para ele. E se ela não enxergava a própria beleza cabia a ele o fardo de revelar à pobre menina o quão grandiosa era.


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