Pérola Carmim escrita por Gii


Capítulo 4
Primeira Bíblia




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Não acreditei que aquele fosse seu nome, mas não liguei. Na verdade nem tive tempo de me incomodar com a mentira, minha cabeça ainda estava sobrecarregada demais com os últimos dez minutos para ligar para qualquer outra coisa.


– Vamos sair daqui, o porteiro já deve ter chamado a policia.



– Policia? – Deus, como eu estava lenta.



– Alguém com certeza ouviu os tiros.



– Claro – me fingi de entendida.



Entramos no elevador, a musica que enchia aquele cubículo nunca fora tão cruel com minha ansiedade de chegar logo no andar desejado. Musica clássica, sempre odiei.



Foi inevitável olhar de esguelha para o porteiro. Mas tudo que vi foi o homem baixinho e gordinho que cobria o turno noturno me mandando um educado sorriso que me esforcei em retribuir.



A rua estava vazia. Nada além das pessoas passando apressadas pelas calçadas bem iluminadas. Nenhum carro cortando o asfalto, e pior, nenhum táxi passando por nós.



Ficamos esperando sinal de movimento por menos de três minutos, mas eu sinceramente não estava me importando nunca fui apressada. Olhei para William ao meu lado na calçada, o sapato preto fosco batendo sem parar nas pedras do chão. Era necessário tanto nervosismo?



Estúpida.



Era óbvio que era necessário. Por um breve e tolo momento deixei de lado a imagem de Andressa correndo pelas paredes nos olhando com aqueles olhos opacos e raivosos, me fitando, me queimando. Só a lembrança já me fez voltar a tremer.



Finalmente, como que conjurado, um táxi passou por nós. William o chamou, praticamente pulou em seu caminho.



Ele não abriu a porta para mim, fui burra em esperar que ele fizesse isso.



Sentei-me no banco de trás enquanto ele se sentou ao lado do motorista. Com certeza tinha feito isso para evitar minhas perguntas por mais tempo.



A viajem foi um pesadelo de borrões turvos. Tudo através do vidro da janela suja daquele carro era um mundo distorcido e mergulhado em um silencio abafado por meus pensamentos atordoados.



O táxi parou. William tinha dito onde iríamos para o motorista?



Olhei para o lado de fora da janela fechada, um grande prédio branco de entrada em dourado. Lembrei-me de lá, eu mesma já tinha passado por lá.



William abriu a porta, não por educação, mas porque sabia que eu sozinha demoraria a fazê-lo. Estendeu-me a mão também, incentivando-me a sair do táxi, o motorista parecia estar de cara amarrada para minha lerdeza.



Subimos o pequeno lance de escadas e entramos pela entrada dourada. Reconheci o lugar, o recepcionista e os uniformes que os outros dois homens no final do saguão usavam. Era um hotel. Eu já estive em muitos hotéis, sabia de cor como eram as típicas recepções dos grandes hotéis.



Sentei-me, ou melhor, me joguei em uma das poltronas ultra fofas da recepção. Depois disso nada me veio mais a cabeça, somente a sensação de que o chão tinha me deixado. Tinha eu desmaiado ou caído no sono? Não, tinha que lutar contra isso. Não queria voltar a dormir tendo inúmeras chances de acordar sozinha em um quarto qualquer daquele hotel sem minhas queridas explicações do lado.



Olhei em volta, procurando o homem de preto. Lá estava ele, pegando a chave com um rapaz do outro lado do balcão.



Pegamos um quarto grande, grande o suficiente para ter duas camas, mas pelo meu tormento só havia uma cama no quarto. Uma cama de casal.



Sentei-me na cama e ele fez o mesmo, longe de mim, claro.



– O que quer saber? – perguntou ele, seco e direto. Quebrando o silêncio como uma agulha invisível perfurando meus tímpanos já esquecidos de como era ouvir.



Minhas mãos estavam tremendo, precisava me acalmar de algum modo para organizar a enxurrada de perguntas que pulsavam em minha cabeça.



Abri a bolsa preta de Andressa sem cerimônias. Me senti mal por isso. Peguei o maço de cigarros e o zippo dourado.



Só me restavam cinco cigarros. Droga.



– O que aconteceu com Andressa? – perguntei, acendendo o cigarro que pendia em minha boca. – Não se incomoda que eu fume, né?



Ele fez um gesto negativo para minha pergunta.



– Ela morreu.



Me irritei com a resposta inútil e estúpida. Mas a fumaça densa se dissipando em meus pulmões de algum modo me acalmou, me impediu de explodir.



– O que estava atrás dela?



Ele olhou para mim com aqueles olhos grandes e castanhos. Tinha se rendido, finalmente.



– Você é religiosa? – perguntou, pondo o assunto em mesa.



– Não – resolvi ser sincera. – Nunca fui. Na verdade nem batizada sou.



– Sabe a história de Lúcifer pelo menos?



Mesmo não sendo religiosa, estremeci quando ouvi aquele nome. O incidente com Andressa me fez ser menos cética.



– Não muito...



– A história que a bíblia católica conta é que ele causou uma rebelião no céu, sedento por poder, diz-se que essa foi a primeira e única rebelião. Mas antes do surgimento dessa bíblia outra existia, uma que os senhores do catolicismo acharam conveniente esconder do povo. Essa bíblia continha os nomes dos principais anjos, coisa que a Igreja não permitia, não queriam o povo louvando os anjos e esquecendo de louvar Jesus, Maria, ou qualquer outro ícone que lhes era mais importante. Constam também histórias em que anjos não eram incorpóreos como a Igreja pregava...



– Foi um anjo que fez aquilo com Andressa? – perguntei atônita, não tive como evitar, a pergunta simplesmente saiu.



Ele me repreendeu com o olhar antes de continuar. Eu assenti, como que em pedido de desculpas.



– Antes da rebelião que vocês conhecem houve outra. Uma bem maior. Uma legião de anjos seguiu Azazel para a terra e aqui desfrutaram dos prazeres pecaminosos que no céu não existiam. Foi Azazel que trouxe a guerra, as armas e instruiu a matar, ele foi a origem do mal aqui na terra.



Meu cigarro já estava pela metade, eu não o tinha parado de sugar nenhum segundo sequer enquanto ele falava.



Podia eu acreditar naquilo que ele estava me dizendo? Logo eu que nem na bíblia acreditava?



– Então... – tentei formular algo. – Azazel – estranhei falar aquele nome tosco e fora dos padrões modernos. – E os anjos que o seguiram fora expulsos do céu?



– Não. E isso é que o faz pior que Lúcifer. Ele e os outros anjos que desfrutaram dos pecados dos humanos deixaram o céu por conta própria para viverem entre os da terra. Dá para imaginar isso? Deixar o céu para viver aqui, o “depósito de lixo de Deus”? Eles, esses anjos que deram as costas ao céu, tiveram filhos na terra, verdadeiros demônios, esses sim desprovidos de carne, loucos para possuir uma vida, um corpo. Cabe aos anjos, não digo “de Deus” por que estaria mentindo se dissesse, proteger os humanos que nada tem a ver com essa guerra.



Deixei o cigarro que estava entre meus dedos cair no chão do quarto, sobre suas próprias cinzas. Já estava acabado mesmo.



Meu corpo estava cansado, latejando e implorando sono, mas eu sabia que não conseguiria dormir com tantas coisas na cabeça.



– Pode dormir, eu não vou sair daqui – disse ele, o tom pela primeira vez dócil.



– Não – lutei contra meu corpo sonolento. Eu precisava ouvir mais, saber mais. – Por que Andressa?



– Ela era vulnerável – explicou ele como se fosse óbvio. – Era uma pessoa boa, mas cheia de pecados. Os anjos já tinham desistido dela, ela estava sozinha.



– Mas ela tinha se matado... Como pode ter sido possuída após a morte?



– No último segundo – contou ele. – Quando já está quase feito, sua alma já condenada por ser suicida, é aí que se abre uma brecha para acontecer...



Senti medo de deixar minhas pálpebras esconderem meus olhos, medo que continuou impregnado em mim até que o sono chegasse. Tentei lutar contra esse sono, tentei mesmo, o máximo que pude. Mas estava além de mim e acima do meu medo.



– Vai estar aqui quando eu acordar?



Ele assentiu, os olhos castanhos não esboçando segurança no gesto. Mas já era tarde demais para lutar contra o sono. Meus olhos já tinham se fechado, meu corpo já estava deitado na cama larga do hotel, a cabeça sobre o travesseiro e meu cabelo ruivo em um leque ondulante sobre o cetim.

Teria ele posto alguma coisa no cosmo que bebi na boate? 



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