Os olhos cinzentos de Katniss Everdeen pousaram sobre o céu escuro e chuvoso daquela tarde de outubro enquanto assistia seu pai, e também único parente, a ser enterrado em um ornamentado caixão, selando para sempre qualquer vinculo familiar que existisse entre os dois. Respirou fundo, tentado conter as lágrimas que teimavam em banhar seu rosto. Ergueu um dos braços afastando as gotas salgadas e voltou a encarar o caixão, que já estava bem ao fundo no buraco. 

Em um misto de raiva e solidão afastou-se da multidão, torcendo os lábios para evitar que um grito sôfrego e agudo escapasse deles. Caminhou com tranquilidade para longe das pessoas que cercavam o túmulo deixando que a garoa que caía sobre si lavasse sua tristeza embora. Enfiou um dos braços dentro da bolsa de couro preta e retirou uma cigarrilha do maço, ascendendo-a em seguida. Ao soltar a fumaça do primeiro trago, escutou a suave melodia de um violino. Seu estômago revirou-se mais uma vez, arrastando-a a realidade. Seu pai se fora. Seu exemplo de vida, seu porto-seguro, aquele que nunca a julgara por nenhuma de suas incansáveis armações. Seu coração protestou, batendo com sofreguidão em seu peito.

- Katniss?- chamou Peeta, atrás de si. Quando os olhos de Katniss pousaram sobre ele percebeu o quão devastado ele parecia estar. Seus olhos tão azuis e brilhantes estavam escuros e sem vida, seu cabelo estava em seu usual jeito bagunçado mas molhados pela fina chuva que caía. As mãos tão confortantes, másculas e macias abrigadas nos bolsos do jeans armani. 

- Vou para casa.- murmurou ela, em resposta, dando um ultimo trago no cigarro e jogando-o no chão para apaga-lo com a sola da sapatilha. 

- Mas todos que vieram desejam falar com vo...

- Danem-se eles!- exclamou, trincando o maxilar e lançando um olhar magoado ao Mellark.- Eles não perderam um pai! Eles não entendem...a dor...tenho que sair daqui.

- Vou com você.- falou o loiro, aproximando-se dela.

- Fique fora disso Peeta.- rosnou Katniss, sentindo toda a tristeza presa dentro de si a aflorar sobre sua pele. - Eu já lhe disse que você não é meu namorado!

- Mas sou seu melhor amigo.- disse o Mellark, ignorando as palavras ferinas da mulher.- Sempre estive ao seu lado em todos os momentos, sejam eles felizes ou tristes. Sempre estive aqui para abraça-la.- dizia, abraçando-a enquanto o rosto da mesma repousava em seu peito largo.- para encontrar uma solução quando tudo vai mal. Para faze-la sorrir. E até mesmo para faze-la esquecer.- completou, beijando a testa da morena.

A Everdeen permanecia apática, respirando irregularmente enquanto Peeta lhe afagava os cabelos.

- Este foi o preço por todas as coisas ruins que fiz nessa vida.- murmurou a mulher, afastando-se do Mellark com os olhos marejados.

- Não diga isso.- falou o loiro, repreendendo-a.- Todos nós erramos alguma vez na vida.

- Mas eu fiz tantas merdas...- bufou a Everdeen, mordendo o lábio inferior com raiva de si mesma. Fora tão imatura e prepotente em suas atitudes. Não dera valor as pessoas certas, não retribuira os afetos de seu pai e o pior de tudo era odiada por muita gente. 

- Acontece.- falou Peeta, com um meio sorriso em seu rosto.- Cometo-as diariamente. 

- Aprecio seu consolo.- disse Kat, rindo em meio a lágrimas.

- Não.- cortou o loiro, sério.- Você não aprecia porra nenhuma hoje.

- Tem razão.- disse a Everdeen, erguendo a cabeça e sentindo mais algumas gotas de chuva a caírem em sua face.- O que eu apreciaria na verdade seria um belo Martini.-  completou, voltando a encara-lo. Seus olhos não tão revoltos. 

- Arrumar outro vício para aplacar a tristeza?- zombou o Mellark, revirando os olhos.

- Se está aqui para me criticar pode dar meia volta e sumir de minhas vistas.- resmungou a morena, abrindo novamente a bolsa para pegar mais uma cigarrilha. 

- Desculpe.- murmurou Peeta, mais carinhosamente. Estava perdendo a cabeça ao vê-la tão frágil. Como contar a ele que realmente se importava com sua felicidade? Lembrou-se dos momentos íntimos entre ambos e seu coração pulsou mais fortemente no peito. Amava-a com todo o seu ser mas seu orgulho ridiculo o impedira de revelar suas emoções. Fora um covarde e agora exigia dela algo de que nem mesmo ele conseguira escapar. 

- Preciso sair daqui.- falou Kat, pousando uma das mãos nas têmporas para aplacar a dor de cabeça. Com seus nervos aos frangalhos sentiu-se invadida pela intensidade do olhar do Mellark.

- Deixe-me ir com você.- pediu o loiro, pegando uma das mãos delicadas da mulher e a envolvendo com as suas. 

- Não quero a sua pena.- rosnou a Everdeen, formando um charmoso beicinho de irritação com seus lábios carnudos. 

- Só me deixe cuidar de você.- suplicou o Mellark, vendo que ela já tentava afastar sua mão das dele.

- Porque você faria isso?- perguntou a morena, fuzilando-o com olhar. Seu coração completamente despadaçado incapaz de assimilar o carinho na voz arrastada do rapaz. 

- Porque eu te amo.- murmurou Peeta, aproximando a mão livre da face corada da Everdeen, tocando a delicada bocheca com todo o amor que possuia por ela. 

O coração de Katniss falhou uma batida e por alguns segundos o encarou perplexa. Recordou-se das idas e vindas com o loiro e as tentativas falhas do mesmo de arrancar dela alguma declaração. Estava farta dos jogos e farta de suas inconsequencias. Perdera o pai e arrependia-se pela sua ignorancia de não ter podido passar mais tempo com ele. Agora mais do que nunca sentia-se só e de uma hora pra  outra Peeta vinha e lhe revelava o fim do jogo? Um tanto quanto inapropriado para o momento.

- Que pena.- disse a morena, desvencilhando sua mão das do rapaz e ascendendo, por fim, sua cigarrilha.

Encarou o loiro soltando a fumaça lentamente e arrependeu-se da rudeza pela qual o rechaçara. Os olhos azuis estavam marejados e sua boca repuxada em uma careta de desgosto. Ele sofria. Estava nítido em sua bela face. Desejou que ele a odiasse. Desejou que todo o mundo explodisse. Não esperou por mais e forçou seus pés a se moverem para longe, mesmo que seu coração desgastado protestasse para que ela voltasse e o beijasse com toda a vontade e urgencia que necessitava. 

- Não pode me amar. Eu te proibo.- murmurou a mulher, ao atingir a rua movimentada.- Não quero lhe arrastar para minha escuridão.- completou, soluçando e sentindo seus joelhos fraquejarem.

Estava só. Só neste mundo exaustivo e cruel.

- Pois é só isso que vejo.- sibilou enquanto as lágrimas mais uma vez banhavam-lhe o rosto.- Escuridão.