Dragonheart escrita por pensamento_azul


Capítulo 4
Capítulo 4 - Asas Quebradas




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Não sei quanto tempo se passou.

Acordei com um urro em dor, pontadas finas e profundas em minhas asas que pareciam me partir ao meio, minhas costas quentes com o que, logo percebi, era meu sangue escorrendo. Estava amarrado, com a mesma rede de aço que me derrubara; meus pés e mãos atados com correntes de prata, minhas asas quebradas e presas ao chão com lascas partidas das lanças dos soldados que eu matara.

Enxergava de um olho apenas. E vi o Caçador, triunfante, banhado em sangue. Meu sangue.

Eu devo ter sido brutalmente atacado após perder os sentidos. Embora seja quase impossível arranhar sequer levemente minhas escamas, é muito fácil mirar a parte desprotegida entre elas. Isso só pode ser feito, claro, se eu permitir ou estiver incapaz de reagir. Sentia pontas de lanças e flechas na carne, e ainda sangrava. Mas meus algozes talvez me julgassem morto, pois comemoravam tranqüilos e não montavam a devida guarda sobre meu corpo. Não deviam estar acostumados ao vigor de uma dragão antigo. Pelo que vi em suas mentes, até aquele dia apenas filhotes e pequenos dragões desgarrados haviam sido suas vítimas; todos haviam deixado este mundo muito antes de sofrerem os tormentos que eu sofrera até ali.

Concentrei-me em permanecer quieto, ouvindo, dando o máximo de mim para não chamar atenção até recobrar o suficiente de minhas forças para escapar. Conhecia pouco da língua rude daqueles humanos, o que queria dizer que eles vinham de muito longe. Li em suas mentes o que não conseguia entender de sua fala e compreendi que eles pretendiam me sacrificar. Acreditavam que seu deus-animal bárbaro lhes daria minha força e magia se eles usassem minhas escamas, garras e presas como troféus, se banhassem em meu sangue e devorassem minha carne.

A ferramenta da minha destruição estava pronta. O Caçador tinha em mãos a lança que usara na batalha, toda marcada em runas de morte e cheia de feitiços de dor. Ele se aproximou de mim triunfante e o acampamento se calou. A única iluminação vinha de fogueiras alguns metros distantes, acesas em círculo ao meu redor. Ergueu a lança sobre minha cabeça, seus poderosos músculos contraídos, seus olhos arregalados, a respiração acelerada. Olhei para ele, soube o que se seguiria. Retesei meus músculos, preparando uma última reação; se tivesse que morrer, explodiria em chamas, levando todos comigo.

Foi apenas uma respiração antes do golpe final. Ele se distraiu e segurou seu ataque e eu sobrevivi. Todos ouviram o som agudo de sangue jorrando e corpos caindo; era inconfundível e o Caçador conhecia aquele som melhor que a maioria e logo se voltou para ver o que acontecia. A algumas dezenas de metros seus guerreiros formavam um semi-círculo ao redor de uma figura assustadora. Brianna estava entre eles, os cabelos soltos e desgrenhados, o vestido que pertencera a uma rainha rasgado. Grandes manchas pretas no veludo azul – sangue. Não era dela.

Aos pés de minha guerreira contei cinco, dez, doze corpos, e parei.

Ela havia emboscado um dos soldados, matando-o com as mãos nuas. Tomara sua espada e agora caminhava resoluta, cortando qualquer um que se aproximasse dela. Ela caminhava na direção do Caçador. Tentei alcançar sua mente, dizer-lhe sem palavras que fugisse, salvasse a si mesma; desisti no momento em que vi seus olhos. Eram os olhos de um dragão.

 

# # #

 

O primeiro erro dos Caçadores de Dragão foi atacar o Vale. O segundo foi acreditar que ela era uma simples humana indefesa. O terceiro e último, desconsiderar a minha presença.

Brianna logo se viu cercada e com mais do que poderia lidar. Embora o Caçador a tivesse enfrentado de igual para igual, logo ficou claro que os soldados não iriam assistir impassíveis. Eles xingavam e cuspiam e jogavam pedras – era desnecessário. Ainda que Brianna fosse muitas vezes mais forte do que era no dia em que lutamos e muito mais forte do que qualquer fêmea humana que eu conhecera antes ou veria depois, o Caçador era um adversário temível, um matador frio e um louco fanático. Em poucos momentos ele a desarmou e derrubou, encostando a lança contra sua garganta. Ele não a mataria rápido – queria-a viva para satisfazer sua legião bárbara.

Brianna sorria. Ela confiava plenamente em mim.

Fiz toda a força que pude, em um único golpe, um único urro. O chão tremeu e se quebrou sob meu corpo, mas a rede de aço e magia não cedeu; estendi minhas asas e elas se rasgaram sob as estacas. As correntes afrouxaram.

Posso cuspir fogo, fumaça ou magia com a mesma facilidade. Uma vez, reunindo toda a força de minha magia, cuspi um feitiço de ferrugem em Brianna que destruiu sua espada e sua armadura e a deixou nua e indefesa, mas intacta, aos meus pés. Não fui tão clemente com o Caçador; avancei contra ele apenas o bastante para que ele visse em meus olhos sua própria destruição. Soprei morte e fogo, e ele se desfez, sua carne derretida, seus ossos calcinados. Acabou. Brianna correu até mim, jogou-se sobre meus ombros feridos. Os soldados restantes olhavam cheios de dúvidas, com seu líder morto e o grande dragão ancião livre. Mas eu estava ferido e isso poderia enchê-los de coragem; decidi não lhes dar essa chance.

Minha voz parece o arranhar de metal contra as rochas; meu urro, em sua própria língua, prometia-lhes uma morte mais horrível do que a que seu líder tivera. Eu queimaria seus corpos mas aprisionaria suas almas e eles não morreriam, sofrendo uma eternidade em chamas. Eles acreditaram.

 

# # #

 

 

Perdi os sentidos novamente pouco depois que os bandidos debandaram. Jurei mentalmente caçá-los um a um assim que me recuperasse. Quando acordei o sol já despontava, aquecendo meus velhos ossos, sarando minhas feridas. Um de meus olhos estava ferido a ponto de ser quase irrecuperável; não sabia então se voltaria a enxergar, ou voar. Minhas asas estavam quebradas, rasgadas.

Brianna chorava, abraçada a mim.

“Então é assim que termina”, eu disse, enfim. “Tenho ainda algo a pedir-te”.

Lembro que ela tentou me fazer calar, não queria ouvir. Ela sabia o que eu diria. Não tinha forças para ouvi-la, pois se o fizesse certamente desistiria. Mas eu precisava fazê-lo. Foi apenas com a força da minha mente dentro da dela, reforçando minhas palavras com imagens turvas que eu consegui me fazer entender; estava fraco demais para falar.

“Deixa-me e volta para os teus”, disse. “Volta a tua vila e a teus velhos companheiros. Ensina-os, como eu te ensinei. Usa o conhecimento que te dei para melhorar tua vida e a vida dos teus. Casa-te e reproduz-te; pois tua linhagem carregará força e poder tais quais não se verão neste mundo novamente por muitas eras”.

“Senhor”, ela respondeu, “muito tempo já se passou desde o momento em que eu ainda poderia deixar-vos sem graves conseqüências para minha alma e meu coração. Sois cruel de me pedir isso, pois sabeis que jamais poderia faze-lo sem perder a mim mesma”.

Sentia suas lágrimas escorrerem entre minhas escamas. Ela estava certa e não me deixava opção.

Fiz uma última mágica, com o pouco de força que me restava. Entrei em sua mente e seu coração e distorci-os. Apaguei a lembrança que ela tinha de mim, de nossos momentos juntos. Tornei-me um fantasma em sua memória, suas lembranças do que vivemos algo etéreo e distante, como um sonho. Ela viveria para sempre com a dúvida e o vazio de ter algo no coração sem saber o que era; carregaria o conhecimento e poder que eu passara a ela, sem saber de onde ele viera.

Mas ela viveria. Por muitos e muitos anos, com seu povo, a quem daria uma nova vida. Na alvorada, eu a vi se afastar pelo Vale, completamente esquecida de mim.

Anos se passaram antes que eu voltasse meus pensamentos e minha mente para ela, antes que eu a buscasse. Ocasionalmente pensava nela, sim, mas jamais deixava meus sentidos chegarem a ela, evitava sentir seu cheiro, ouvir sua voz, seus pensamentos. Quando finalmente o fiz a vi como em minhas visões, uma líder de seu povo, a líder de um grande clã. Bruxa, curandeira, guerreira, matriarca – ela se tornara tudo que eu sempre soube que poderia ser. Não me revelei, não me aproximei, temendo estragar tudo que ela fizera, tudo que construíra.

Deixei meu antigo covil, onde meu ovo fora abandonado tantos séculos antes; fui para longe, primeiro rastejando e deixando uma trilha vermelha de meus ferimentos, depois caminhando lentamente e finalmente correndo pelos campos abertos sob a lua nova, quando nenhum humano poderia me ver e sentiria apenas o deslocar do vento à minha passagem. Um século se passaria antes que eu pudesse voar novamente, mas meu olho esquerdo fechou-se para sempre.

Cacei os Caçadores, como prometera a mim mesmo. Quando matei o último deles muitos anos haviam se passado; ele fora apenas um jovem no ataque, mas quando o encontrei ele já era um velho de cabelos brancos. Havia tido sucesso na vida, fora o senhor de muitas terras e tinha uma família grande. Matei-os a todos, também. Destruí sua terra e apaguei do mundo as lembranças de sua existência.

O tempo da minha amada Brianna passou, também. Minhas asas já estavam recuperadas, e ela morrera há anos quando finalmente sobrevoei o mausoléu de pedra que sua família construíra para ela. Ela era reverenciada e lembrada com carinho. Retornei para meu covil, agora distante das montanhas, carregando um peso no espírito que os dragões normalmente desconhecem.

Mas ainda estou aqui. E minha história ainda não terminou.

 

Continua...?


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Notas finais do capítulo

Bom, é apenas uma amostra, eu sei. Um conto rápido, escrito para um desafio que me pareceu interessante. Mas me apaixonei pelo tema e, havendo interesse e idéias, quero escrever mais sobre o assunto.
Quem sabe Brianna e o Dragão não voltam em novas aventuras? Ou então teremos um novo herói escamado, dessa vez um dragão jovem e impiedoso menos nobre e mais violento?
Dêem suas idéias, sugestões e apoio. Aguardo vocês.



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