Dragonheart escrita por pensamento_azul


Capítulo 1
Capítulo 1 - Deus Escamado




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Lembro-me da Era Dourada, quando éramos milhares. Riscávamos o céu com fogo e trovão e gelo e relâmpago, supremos e invencíveis. O mundo era nosso campo de caça, nosso covil e nós, mestres absolutos de tudo até onde nossas asas e o vento pudessem nos carregar – e lugar nenhum, acima ou abaixo do solo, escapava ao nosso toque.

Vivíamos no céu, no topo das montanhas mais altas, onde as nuvens não nos alcançavam. Vivíamos nos campos, em prados verdejantes varridos pelo vento cortante, banhados pelo sol da savana. Vivíamos nas florestas, em meio às gigantescas sequóias que nem mesmo dez gigantes de Urdu juntos poderiam abraçar. Vivíamos nos vales, nos rios e até mesmo sob as ondas, em covis inundados, respirando a água e o sal tão bem quanto vocês respiram o ar.

Ah, claro, havia tua raça. Humanos.

Nós nascemos do fogo e da terra, da água e ar. Somos luz e trevas e som e toda a força Elemental, criados do Eterno e tementes somente a Ele. Somos espíritos vestidos de ossos, carne, escamas e fúria, imortais, inquietos, eternamente à espreita.

Humanos... humanos eram gado. Frágeis e de vida curta, eram pouco mais do que animais que caçavam animais mais estúpidos para comer-lhes a carne e roubar-lhes a pele para se aquecer no inverno. Rimos quando se uniram em pequenos bandos, vivendo juntos, construíram para si cabanas toscas de lenha e palha. Rimos ao pensar em incendiá-las apenas por diversão e muitas vezes o fizemos; caçamos e matamos por esporte, pois ao contrário do que podes pensar não nos alimentamos de humanos. Sua carne é suja e macilenta, dura e pouco saborosa. Porcos são melhores.

O mundo mudou. Sou velho, mas há aqueles que são mais velhos do que eu e vivem no Poço Sem Fundo e eles dizem que foi o sopro do Eterno que mudou o ar. Dizem que os humanos respiraram o Sopro e receberam a Fagulha do Infinito, ganhando o direito de se erguer acima das feras. Os mais jovens e nós os matavam, os mais velhos se recolhiam em seus covis e para dentro de suas cascas de poder imensurável e eu simplesmente não me importava. Recolhi-me então às montanhas que sempre foram meu lar desde que meu ovo foi abandonado lá e dormi.

Despertei com o som das vilas e o barulho ensurdecedor de milhares de seres humanos vivendo próximos e descobri que era tarde demais – o mundo já não nos pertencia.

 

# # #

 

Confesso: poderia viver séculos sem ser incomodado e sem jamais me incomodar com aqueles pequenos seres vivendo nas sombras da minha montanha. Sua orgulhosa “vila” era pouco mais do que um aglomerado de casas de barro e pedra mal-feitas e mal-acabadas, cercadas por vários quilômetros de fazendas de trigo e alguns criadores de gado.

É preciso que entendas que era a minha terra, logo era meu gado e minhas plantações; e a mim somente deveriam vir suas preces e súplicas. Contive meu impulso primitivo de descer dos céus como um deus vingativo e queimar sua cidadezinha miserável até as fundações, marcar a terra de tal modo que a mente dos sobreviventes enlouqueceria de medo e horror e suas gerações futuras nomeariam a região de “desolação do dragão” ou algo assim. Sozinho no escuro de meu covil ouvia suas conversas e pensamentos, lentamente aprendendo sua língua e costumes e planejava. Então decidi não destruí-los.

Sempre fui mais paciente que meus irmãos e irmãs, mesmo alguns dos mais velhos. Algo em meu nascimento, na mistura de meu sangue talvez, permite que eu me controle o bastante para conter meu ímpeto destrutivo. Por eras imaginei que fosse apenas por ter sido abandonado ainda no ovo, crescendo e vivendo sozinho nas montanhas; mas todo dragão abandona sua cria cedo ou tarde, e alguns enlouquecem e se dedicam apenas a destruir e mutilar, queimar com fogo e feitiços, rasgar com garras e presas. Eu não sou assim. Raramente perco o controle. Raramente.

Podia ouvi-los, mesmo estando a dias de viagem montanha acima. Podia farejá-los e até sentir-lhes o gosto, às vezes. A trilha até meu covil, para eles, deveria parecer um caminho de tormento no qual a morte espreitava a cada passo – rochas soltas, abismos sem fundo e desmoronamentos eram todos muito comuns naquelas montanhas – então nenhum deles jamais me descobriu até que eu decidi me revelar.

Em uma manhã de verão desci a eles em glória, minhas escamas vermelho-douradas reluzindo ao sol. Suas mulheres gritaram em desespero, seus varões acovardaram-se ou lançaram-se contra mim em uma coragem furiosa que só nasce do desespero de quem saber não ter nada a perder; seus filhotes, estranhamente, me contemplaram fascinados. Não havia guerreiros verdadeiros ou capazes ali; apenas camponeses com ferramentas frágeis que logo se partiam sob minhas garras ou ao chocar-se contra escamas mais duras que armaduras de aço. Em menos de cem respirações, a vila estava aos meus pés e todos os seus aldeões de joelhos.

Falei-lhes em sua própria língua. Mas a voz de um dragão é como o arranhar de aço contra rocha e eles tremeram e se encolheram. Todos, exceto um.

Era uma fêmea jovem, forte de corpo e espírito, voz firme e decidida. Ela falava aos seus, incitava-os contra mim, incitava-os a se erguer e me enfrentar. Enfrentar a mim! Há! Ri. E mais assustador do que a voz de um dragão é seu riso sincero. Falei aos aldeões novamente e selei o destino da jovem. Eu não os mataria naquele dia, não os incomodaria por muitas estações, mas eles me pagariam tributo em gado e preces e um sacrifício. Decidi que a melhor punição para a pequena rebelde seria ser traída por aqueles a quem tentava defender e falei-lhes para enviá-la a mim, montanha acima, para que eu pudesse desfrutar de sua morte. Era isso ou morrer queimados nas minhas chamas.

Jamais imaginei seriamente que a veria no meu covil. Longe disso, pensei que ouviria seus gritos de longe, que seus pares a matariam em sacrifício para me aplacar ou que mesmo que ela subisse a montanha cairia e morreria no caminho em alguma rocha solta ou desabamento. Mas ela não morreu.


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