The 68th escrita por Luísa Carvalho


Capítulo 2
Distrito 6


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura (:



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Finalmente saio da cama e piso os pés no chão frio de mármore. Não penso duas vezes antes de colocar minhas calças largas e uma camiseta velha. Não, não iria nunca me render às vontades de minha mãe e vestir aquelas roupas ridículas de palhaço. Desculpe, quero dizer roupas da Capital.

Sempre tentei não ser uma dessas pessoas que passa o dia preocupada com os luxos do dia a dia aos quais o povo daqui parece se render tão facilmente. Pelo contrário, naquela manhã prendo meus cabelos loiros somente com uma fita azul desbotada. Olho para as maquiagens colocadas em cima de minha mesa na noite anterior enquanto eu dormia e simplesmente ignoro. Não adiantaria quantos produtos extravagantes fossem colocados sobre minha cômoda durante a noite; eu não os usaria e ponto final. Pego minha mochila e penduro-a em minhas costas, mas não demoro muito a deixá-la no chão exatamente onde estava. Não precisaria dela hoje.

Já que era o dia da Colheita, todos os alunos iriam para um dos distritos assistir ao sorteio dos tributos, como uma saída pedagógica. Divertido, não é? Yupi, muita diversão padrão Panem.

Ano passado fomos ao 2, um dos distritos onde são treinados os tributos Carreiristas. Como sempre, antes de qualquer nome ser sorteado, dois adolescentes se ofereceram como tributo para entrar na arena e supostamente ganhar os jogos. No meu ponto de vista, isso é um ato de muita coragem; sempre admirei essas pessoas, por mais que estivessem praticamente se rendendo à Capital e não estivessem fazendo isso para nenhum bem maior. Só buscavam o tipo de fama apreciada naquele lugar. Talvez eu os admire porque sempre evitam o que acontece em quase todos os outros distritos: uma criança é sorteada e ninguém se oferece por ela. Então, despede-se da família, a quem promete ver de novo, mas morre no banho de sangue ou, no máximo, depois de poucos dias.

Mas isso não importa. Onde quero chegar é que ver tudo aquilo de perto é simplesmente horrível todos os anos. Pense na expressão de pânico em cada um dos rostos dos adolescentes, no medo dos pais, imaginando o que seria deles se seus filhos fossem sorteados. O pior é que a Capital se diverte com isso. O pânico e o medo sempre foram para eles mero entretenimento feito as novelas extremamente populares da TV Capital. Não é à toa que não pertenço a esse lugar, a esse meu suposto "lar".

Inúmeras vezes já pensei em fugir daqui, simplesmente abrir a porta e correr, quem sabe socar um Pacificador ou dois de for preciso para atravessar a fronteira da Capital. Se me perguntassem para onde estava indo, eu responderia que para qualquer lugar, desde que fosse longe daqui. Como sempre, desisto ao olhar para os rostos de Mathew e Daniel e, com isso, lembrar das pessoas que não merecem ser abandonadas, que precisam de mim para evitar que a hipnose que é a vida na Capital os persuada.

Depois de esvaziar um pouco a mente, calço meus tênis e saio do quarto. Desço rapidamente as escadas e pego um sanduíche de cima da mesa da cozinha, mastigando-o com gosto e pensando nas tantas pessoas que, naquele momento, não podem comer nem sequer uma migalha de pão. Estou prestes a sair pela porta da frente quando ouço uma voz atrás de mim.

– Bela roupa, hein, June?

– Cale a boca, Cameron - respondo ainda com a boca cheia. Cameron acabara de comprar um terno azul piscina e uma camisa com listras coloridas horizontais, e obviamente escolheu usá-los hoje. Seus olhos estão como sempre bem delineados e os cílios postiços que balançam quando ele pisca chegam a me dar aflição. - prefiro morrer a vestir roupas de palhaço como as suas.

Ele me encara com um olhar convencido.

– Isso é com você. Quem sabe algum dia você se canse de ser vista como uma aberração, tampinha.

– Fechado, faço isso quando você deixar de ser tão idiota. Ou seja, espere sentado. E a almofada da cadeira pode até ter glitter, se você quiser. - Eu digo, e ele fica quieto, depois volta a comer seu sanduíche.

Continuo andando, orgulhosa de meu último comentário, mas assim que toco a maçaneta de porta decidida a finalmente sair, Cameron grita e isso me força a dar meia-volta:

– Onde a srta. Quebra-Padrões pensa que vai? Esqueceu que vamos ao 6? Tem que esperar o aerodeslizador como qualquer um, a não ser que você prefira ir andando.

– Cuide da sua vida, Cameron. Se bem que deve ser tão inútil quando parece, já que você aguenta cuidar da minha também.

Apesar da determinação, acabo sendo forçada a esperá-lo como a Mathew e a Daniel. Quando os três estão finalmente prontos, saio e vou andando até o ponto onde o aerodeslizador escolar aterrissaria e nos levaria ao 6. Os gêmeos seguram minhas mãos e Cameron vai um tanto mais atrás, pouco se importando com a presença dos três e continuando com suas piadinhas sem graça.

Na hora em que o aerodeslizador aterrissa, entro e me sento em uma poltrona, sozinha. Apoio a cabeça na janela e tento dormir para fazer o tempo voar assim como o veículo. Depois de alguns minutos, adormeço, sem mais nem menos.

Em meu sonho, estou no distrito 6, no lado esquerdo do palco com o resto dos alunos, observando a mulher de roupas coloridas - e ridículas, portanto concluo que vieram da Capital - fazer seu típico discurso anual.

Tempo vai, tempo vem, um grupo de Pacificadores traz uma dupla de bolas de vidro nos quais estão os nomes dos adolescentes - meninos e meninas - a serem possivelmente sorteados.

– Primeiro as damas - diz ela. Naquele momento, faço algo que nunca me veio à cabeça antes: me levanto e grito o mais alto que posso.

– Parem! Eu me ofereço!

E depois que todos os olhares são direcionados a mim, respiro fundo e termino, dessa vez menos ofegante:

– Eu me ofereço como tributo.

Acordo com um susto. Por sorte foi só um sonho e eu não teria que passar a próxima semana me preparando para entrar em uma arena e lutar até a morte. Imagine se tivesse sido real?

Bom, se bem que não seria uma má ideia; Se fosse possível - uma coisa que eu não sei se realmente seria -, eu poderia finalmente mostrar à Capital que nem todos estão felizes com suas decisões, nem mesmo a mais improvável das pessoas. É, não é uma ideia nem um pouco ruim. Até que é boa.

Na verdade, perfeita.

É disso de que preciso. É isso o que faria, ou melhor, pelo menos tentaria fazer.

**

Quando aterrissamos, dessa vez no distrito 6, desço as escadas e me deparo com uma paisagem vazia, sem vida. Lá, são fabricados os meios de transporte utilizados em maior parte na Capital. Não demora muito até eu avistar pessoas chegando na praça principal, onde seria realizada a Colheita. A maioria ofega, chora, grita e esperneia. Outras apenas expressam horror e pavor, e algumas mal conseguem andar, têm as pernas paralizadas.

Acho que nunca estive tão certa em toda minha vida, está definitivamente decidido. Naquele momento, nada, nem mesmo um Pacificador me apontando uma arma, poderia me fazer voltar atrás. Eu seria um tributo, mostraria o que eu penso. Ver aquela expressão de pavor nos rostos das pessoas... é horrível. Se ninguém ia parar tudo isso, eu pararia. E faria isso sozinha.

– Aqui, alunos! - exclama a Sra. Maine, com o típico sotaque da Capital - Aproximem-se, a Colheita já vai começar!

Seguida de um grupo de quatro Pacificadores, ela conduz os alunos mais novos para as cadeiras da frente, localizadas no lado esquerdo do palco.

Espero até a Sra. Maine voltar pela quarta vez, dessa vez conduzindo os alunos da minha idade, então sigo-a um tanto distraída como todos os outros. Depois de alguns minutos, todos fazem silêncio - ou melhor, a Sra. Maine tenta fazer com que isso aconteça - e a mesma mulher de roupas coloridas de meu sonho e da Colheita do ano anterior no distrito 6 chega dando passos curtos, expressando um largo sorriso no rosto; uma típica palhaça.

Tropeça levemente ao subir as escadas que levam até o palco e bate três vezes no microfone. Vendo que estão ligados, ela diz numa alta e clara voz, como se não houvesse microfone algum à sua frente:

– Sejam bem vindos... - ela se interrompe com uma pequena tossida, como se sua voz ainda não estivesse no tom desejado, então repete - Sejam bem vindos à edição 68 dos Jogos Vorazes! A hora finalmente chegou para que selecionemos dois corajosos jovens para a honra de representar o distrito 6 esse ano.

Depois de mais algumas - muitas - palavras e do vídeo narrando a história dos jogos, como o distrito 13 foi exterminado do mapa e, obviamente, como crianças e adultos estão extremamente alegres com a suposta "paz" estabelecida em Panem. Ela continua assim que a insígnia da Capital anuncia o fim do pequeno filme:

–Bom, vamos começar. Primeiro as damas!

De repente meu coração dispara. É essa a hora. É agora que eu devo provar a mim mesma que tenho coragem, que sei perseguir meu sonhos. Cada segundo passa a valer uma eternidade, e a eternidade torna-se de extrema importância. Será que eu teria uma eternidade, afinal?

Mastigo com aflição meus restos de unhas enquanto a mulher revira lentamente o recipiente contendo os nomes; Eu tenho pouco tempo. É agora ou nunca.

Quando finalmente um dos papéis é selecionado, ela abre um sorriso no rosto antes mesmo de abrir o papel. Eu me levanto ainda sem dizer nada. Todos os olhares são direcionados para mim como o previsto. Sem pensar duas vezes, grito:

– Parem! Eu me ofereço!

Segundos - ou talvez minutos, já que perco totalmente a noção do tempo - se passam e ninguém murmura uma palavra sequer. E, exatamente como em meu sonho, eu suspiro e paro de ofegar. Então, confirmo:

– Eu me ofereço como tributo.

No momento em que pronuncio exatamente essas palavras, todos os meus pensamentos externos vão embora com o vento que começa a soprar sobre mim; a Arena, os Jogos, a Capital... essa seria minha vida agora, era nisso que eu deveria pensar.

Como é ser um tributo?

A mulher colorida, que havia denunciado sua perplexidade em sua expressão facial momentos antes, se vira e entra numa sala aberta atrás do palco, na qual os Pacificadores também entram. Eles então se envolvem em uma discussão calorosa que eu, infelizmente, não consigo ouvir de longe.

– June.. - A Srta. Maine murmura de uma cadeira mais à frente. Parece extremamente envergonhada pela falta de disciplina de sua aluna. Poxa, que pena– Sente-se, pelo amor de Deus.

Eu não a obedeço.

– Tenho odireito de me oferecer se quiser, e é isso o que eu quero - afirmo ainda de pé. Meu coração dispara como nunca antes, mas eu me sinto.... Poderosa. Será? Deve ser assim que as pessoas ficam quando fazem a coisa certa. Ou melhor, assim espero.

Então Maine se levanta e vem até mim. Consigo ver em seus olhos e no jeito de que anda - batendo os saltos finos no chão rachado - que está furiosa.

– June Haylon, uma garota da Capital não se pronuncia na Colheita de forma nenhuma, sob circunstância nenhuma! Trate de voltar àquele aerodeslizador e conversaremos mais tarde. Ligarei para o diretor agora mesmo e pedirei para que chame seus pais para uma conversinha.

Escolho ignorá-la novamente. Jurei a mim mesma que nada me impediria se meu pronunciamento pudesse ser aceito. Permanecerei determinada até que alguém realmente me impeça.

Sabe quando sabemos que o chão está estável, mas sentimos como se estivesse desmoronando, nos engolindo lenta e vorazmente? Sabe quando, mesmo que tenham nos ensinado que o mundo gira sempre, ele parece subitamente girar além da conta? Acredito que essa sensação tenha sido só minha, mas talvez seja o que qualquer um que tenha se tornado um tributo nos Jogos Vorazes sente.

Olho em volta à espera de alguma reação ou ao menos de um escândalo. Logo percebo o valor do ditado "um olhar vale mais que mil palavras", já que cada uma das pessoas ali presentes me fuzila com um olhar diferente, e eu tento decifrar cada um deles como se estivesse lendo mil palavras. Em meio a tantos, um par de olhos especificamente me chama a atenção; um par de olhos azuis.

O par de olhos de Cameron.

Ele já havia me fuzilado com o olhar inúmeras vezes, mas dessa vez parece tentar transmitir algo diferente. Não é sarcasmo, ignorância ou qualquer coisa desse tipo. É diferente; parece... preocupação, talvez?

Posso jurar que vejo uma lágrima escorrendo naquele momento, mas ele passa a mão no rosto para enxugá-la, tentando parecer mais forte. Então balanço a cabeça ignorando qualquer pensamento secundário.

Seja realista, June, Cameron nunca choraria por você.

Por mais que não pareça, o tempo ainda passa, rapida porém preciosamente. Cada segundo é rico, cada olhar é necessário. O que eu fiz para me olharem daquela maneira indecifrável? Eu salvei vidas, não?

Um silêncio contínuo paira no ar. Ninguém se mexe, ninguém expressa reação alguma... mas sempre há de existir alguém para quebrar o silêncio. Naquele momento, eu preciso desse alguém. Eu preciso saber o impacto de minha ação.

Por sorte, a mulher colorida finalmente abre um sorriso falso e assume ser esse alguém.

– Bom, parece que temos uma voluntária! - ela aponta para mim, então faz um sinal com a mão dobrando os dedos. Está profundamente sem graça, percebo - Suba aqui, querida, apresente-se ao mundo!

Seu entusiasmo é claramente forçado, mas não a culpo. Eu mesma ainda estou parada em meu lugar com o coração quase pulando para fora do peito e minhas pernas tremendo tanto que não ficaria surpresa se subitamente se quebrassem.

– Não pode ser possível! - grita a Srta. Maine, protestando mais uma vez.

A mulher colorida suspira.

– Eu realmente queria que não fosse, querida. Quer dizer, não faz o menor sentido, considerando o propósito dos Jogos e tudo o que ele representa. Mas, tendo conversado com meus superiores e com a equipe organizadora... Não achamos nada escrito que impeça essa garota de fazer o que quer. Se não está nas regras como proibido, devo oficializar. Sendo assim - ela olha em meus olhos, confusa, perplexa, porém rendida -, suba aqui, querida.

Mas antes que eu possa sequer pensar em me dirigir ao palco, alguém grita em contradição:

– Está louca?! Vai deixar uma garota da Capital se voluntariar porque ninguém escreveu nessas regras estúpidas que isso é inaceitável?! Como pode ser possível que...

E ele continua gritando indignado.

Chega a soltar palavrões que ouvi poucas vezes na vida.

É Cameron.

Um dia, quando era criança, jurei para mim mesma que nunca deixaria Cameron com a última palavra. Esse juramento nunca foi quebrado, e não seria agora - quando tudo parece dar certo ao menos uma vez em toda minha vida - o momento de fazê-lo.

– Não vê que é isso o que eu quero? - grito, expondo para todos o que sinto - Você não pode consertar tudo sempre, nem tudo pode ser como você deseja! Se é que não está claro o bastante, o mundo não gira em torno de Cameron Haylon. Eu estou aqui, me oferecendo como tributo, e se alguém tiver de me impedir pode ter certeza de que não vai ser você.

Ele então senta-se de novo, e definitivamente algo escorre de seus olhos. Dessa vez ele não liga em deixar transparecer que está preocupado. Chego a considerar ter passado dos limites.

É isso o que você quer, June, não desista.

– É isso o que você quer? - ele diz como se tivesse lido meus pensamentos - Mas acho que você não percebe, não é? Não mede as consequências.

O que raios ele está dizendo? Continuo sem entender enquanto vejo seu rosto ficar cada vez mais vermelho, provavelmente resultado de uma junção de raiva e desespero em seu coração, de pingos de suor e lágrimas em suas bochechas rosadas e cheias de maquiagem. Quando começo a entender, percebo que ele não acabou.

– Você faz o que você quer se oferecendo como tributo, e eu, mamãe, papai, Mathew e Daniel, sua família que não fez nada a não ser te amar, perdemos você para sempre, e não acho que alguém queira isso.

Um silêncio paira no ar enquanto Cameron sai de vista e corre para longe. Mas antes de perdê-lo de vista, eu e todos que estão lá ouvimos mais algumas de suas palavras; dessa vez, mais decididas do que arrependidas:

– Ah, e se o que June está fazendo for possível, eu também gostaria, se me permitem. Eu também gostaria de me oferecer como tributo.

Então, depois de mais silêncio, a Sra. Maine se aproxima da mulher colorida e sussurra em seu ouvido, sem perceber o microfone ainda ligado:

– Isso não é possível... não pode ser possível.

– Senhora, eu já deixei mais do que claro que não há absolutamente nada que possamos fazer para impedi-los. Agora, com licença, preciso fazer meu trabalho e anunciar os tributos desse distrito. Saia do meu palco, por favor.

– Mas... - Sra. Maine enxuga uma lágrima - são só crianças...

A mulher colorida balança a cabeça, claramente lamentando-se, e diz num tom de voz mais claro:

– Sendo seus meninos ou não, crianças vão à arena todos os anos, só não da Capital. Bem vinda aos Jogos Vorazes, senhora, eu realmente preciso que saia do palco.

A Sra. Maine caminha em minha direção com um olhar de reprovação. Sinto um calafrio na espinha; a ironia em sua voz penetra mais do que meus ouvidos.

– Parabéns, June, conseguiu o que queria. Divirta-se na arena.







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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Mudei bastante esse capítulo agora em 2014, senti que faltava muita explicação, que esse começo poderia ser bem mais explorado. Então esse foi o capítulo como deveria ser desde o começo (: (ou não, porque hoje, 02/12/2014, eu o rescrevi. De novo. É tão legal discordar de mim mesma)



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