The 68th escrita por Luísa Carvalho


Capítulo 3
Burton


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Somos direcionados a uma sala vazia para nos despedirmos de nossos familiares. Como esse não é nosso caso, vou direto falar com Cameron.

O Pacificador que nos acompanha tem uma postura rígida e nos leva até a sala nos segurando pelos braços com uma força desnecessária, e consigo sentir pela primeira vez como é ser controlada pela Capital; como é ser uma de suas marionetes.

– Vocês têm 30 segundos - informa, curto e grosso. Concluo que ele provavelmente nos deu menos tempo por não termos de quem nos despedir, mas de qualquer jeito todo segundo é precioso. Sai então da sala, nos deixando sozinhos.

Quase como se tivesse sido combinado, ambos verbalizamos em uníssono o que devia estar palpitando em ambas as nossas mentes até então:

– Por quê?!

Eu respondo primeiro:

– Quero mostrar ao mundo que a Capital não pode impor seu poder dessa maneira, que nem mesmo as pessoas de lá estão felizes com isso.

Na vez de Cameron, eu me surpreendo:

– Porque não quero te perder.

Mas, nesse momento, o mesmo Pacificador volta e nos separa enquanto me questiono sobre tudo que Cameron havia feito por mim até então.

**

O trem da Capital não vai tão além de minhas expectativas; mesas de mogno, almofadas de couro, taças de cristal e candelabros de bronze que refletem a luz do sol. Não é tão diferente do que eu estou acostumada a ver; pelo contrário, me lembra de minha própria casa.

Sento-me em um dos sofás acolchoados e não demora muito até me encontrar praticamente desmaiada de tão cansada. Minha cabeça dói, meus próprios pensamentos me torturam. O relógio não ajuda em nada: cada minuto equivale a uma eternidade, os ponteiros praticamente não se mexem. A sorte não está nem um pouco a meu favor.

Tudo o que eu quero naquele momento é minha velha cama na Capital e meus antigos pensamentos, que com certeza não envolveriam o fato de provavelmente estar morta em, no máximo, algumas semanas.

Interrompo a mim mesma imediatamente. Não posso agir como se estar aqui fosse uma tortura. Não posso temer o que está por vir porque tudo o que aconteceu foi decisão minha e nada mais.

Não me arrependo de nada que fiz naquele distrito.

Não demora muito até Cameron atravessar a porta que o traz a meu encontro, mas, por incrível que pareça, ele não está sozinho. E o pior é que eu não faço a menor ideia de quem seja aquela pessoa atrás dele.

– June - ele me chama -, esse é Burton, nosso mentor.

Burton. Alto, pele escura, olhos verdes e foscos. Realmente muito forte, olhar decidido e imperativo, como se tivesse tudo sob controle. Sem exceções: tudo; é claro que ganhar os Jogos lhe transmitiu poder. Seu rosto é típica e inconfundivelmente próprio de quem já matou. "Assassino" poderia estar escrito em sua testa e ainda assim não estaria mais explícito que ele o é.

Tenho a impressão de que assisti à transmissão de seus Jogos faz uns dois anos. Se não me engano, não se aliou nem foi de encontro a ninguém. Tinha apenas 13 anos quando foi sorteado, porém não houve voluntários que pudessem arrancá-lo do que estaria por vir. Na Arena, simplesmente se isolou em um local com comida e água, onde permaneceu até o fim dos Jogos, quando matou o tributo feminino do Distrito 10 com uma lança que pegara na Cornucópia no primeiro dia. É incrível como apenas um assassinato quando criança marcou-o tanto. Burton com certeza tem fortes traumas, mas seu permanente semblante controlador passa a informação de que está aqui para fazer com que seus tributos ganhem, nada menos do que isso.

Eu particularmente acho a sua uma ótima estratégia, até o momento em que me dou conta de que não tenho nem o mínimo de habilidades para permanecer viva por nem que seja um dia inteiro; basicamente, sei que não tenho a menor chance contra nenhum dos tributos.

Além do mais, nunca assisti a uma Edição em que os Idealizadores não agissem a respeito de tentativas de isolamento. Deslizamentos, tempestades de raios... Eles sempre davam um jeito de fazer com que o tributo se deslocasse na direção dos demais. Burton fora uma excessão porque provavelmente havia mais preocupações em sua edição fora um jovem de treze anos tentando manter-se vivo. Não acredito que tal ato de piedade - ou desatenção, quem sabe - vá ocorrer de novo, principalmente em meu caso; sei que estou na mira dos Idealizadores, da Capital, do Presidente.

Eu escolhi o caminho da morte certa, e o pior é que não me arrependo.

– Bom - começa Burton -, vejo que os dois se voluntariaram na Colheita, não é? Assisti ao que aconteceu no 6, e confesso que fiquei impressionado.

Fazemos que sim com a cabeça, retomando sua última pergunta - que, na verdade, fora retórica, noto eu. Não sei se Cameron também, mas eu estou certa de que o que seguiria a fala de Burton seria algo como "Agora é bom se matarem de treinar, a não ser que queiram morrer na Arena, filhinhos de papai" ou algo que nos insultasse e encorajasse ao mesmo tempo. Realmente me parece típico dele.

O que ouvimos, porém, é algo um pouco diferente de minhas expectativas.

– Não acho que vão conseguir. Desejo muita sorte a seu favor. - Ele se interrompe por alguns segudos, mas volta a dizer algo que parece ser mais direcionado a ele mesmo do que a nós - Não que sorte seja capaz mudar alguma coisa no caso de vocês, é claro.

Então, tendo finalizado o discurso, simplesmente se retira da sala enquanto pega um bolinho de chocolate de cima da mesa. Cameron e eu nos entreolhamos. Bom, talvez ele seja controlador e decidido, mas confesso que errei em dizer que estaria determinado a fazer-nos ganhar os Jogos.

– Não foi a sorte que te ajudou? Na sua arena? - Sinto uma extrema necessidade de mencionar isso. Não sei por que, mas naquele momento a única coisa que quero é tirar a razão de Burton.

Ele para no meio do caminho e vira-se para mim. Então, espera acabar de mastigar seu bolinho para me responder. Olhe só, pelo menos ele tem bons modos.

– Não estou dizendo que não acredito em sorte - ele contesta, enfim. - Só penso que nada, nem mesmo as forças do Universo, vão ser capazes de ajudar vocês.

– Se as forças do Universo não conseguiriam, por que você não tenta? Sabe, é isso o que mentores costumam fazer, até onde eu sei.

Ele parecia extremamente calmo até então. Depois de meu comentário, porém, deixa claro em sua expressão que está de saco cheio.

– Quer saber - começa, e vejo que está falando sério quando deixa o bolinho que mordia de forma atenciosa sobre um balcão ao seu lado -, achei o que você fez muito corajoso, loirinha, de verdade. Você foi extremamente corajosa, pode até ter chance. - Fico surpresa. Não pensaria duas vezes antes de mudar minha concepção a seu respeito de não fosse pelo resto de sua fala - Não posso dizer o mesmo de seu irmão. Ele só foi estúpido mesmo. Por isso, e só por isso, vocês dois juntos acabam construindo o próprio caminho para a morte certa. Feliz Jogos Vorazes.

Burton é um completo canalha. Chega a ser ridículo. Ele caminha quase orgulhoso em direção ao corredor onde ficam os quartos no trem.

– Espere um minuto! Ele não pode simplesmente te insultar e ir embora - afirmo, mais decidida que nunca. - Um mentor deve nos manter vivos, certo? Os dois. Eu não acho que isso vá dar certo, considerando que o máximo que ele poderá fazer será enviar-nos um bolinho de chocolate antes de morrermos. - Cameron abre a boca para fazer um comentário qualquer, mas ainda não acabei, e deixo que ele o perceba. - Isso não está certo. Não podemos deixá-lo agir assim enquanto temos nossas vidas em jogo.

Cameron espera alguns segundos antes de começar a falar, provavelmente para ter certeza de que eu havia posto para fora tudo o que tinha a dizer.

– Eu sei, June - concorda, por fim. - Posso até ter me ofendido com seus insultos. O grande problema é que ele me dá medo. Aqueles olhos... Parece que estarão fixos nos meus na Arena enquanto ele estiver enfiando lentamente uma lança em meu peito e sussurrando algo como "aproveite sua morte".

De certa forma, sinto que Cameron está certo. Seu olhar controlador e postura rígida de fato são capazes de me fazer estremecer. Porém, apesar de todas as primeiras impressões, fui capaz de enxergar uma pequena brecha em seu olhar, em sua atitude. Poderia fazê-lo perceber que, mais do que poder estar do nosso lado, Burton deveria estar.

**

Chegou a hora do jantar e já estamos na metade do caminho. A mulher colorida que nos acompanhava já havia se sentado, e eu e Cameron fazemos o mesmo. Estranho quando Burton não aparece na primeira meia hora, mas depois imagino o porquê: ele só aparece quando são servidos os bolinhos.

Então, quando uma Avox - discreta, como sempre - traz uma bandeja com pequenos e cheirosos muffins enfileirados, Burton entra imediatamente, acomoda-se na cadeira e começa a devorá-los, sem dar a mínima importância para o fato de que fala ao mesmo tempo em que mastiga. E todo aquele esfarelamento de grãos de chocolate é nojento. Arrependo-me de ter dito, ainda que sarcástica, que pensava que ele tinha modos.

– Posso tentar ajudá-los, se quiserem.

Não se desculpa, não se mostra arrependido. Talvez esse seja o máximo que sua máscara de "mentor durão" possa cair - o que eu tinha certeza que aconteceria -, o máximo que uma dose de semancol pode fazer. Fico ligeiramente grata, mas a verdade é... Como assim "se quiserem"?! Somos tributos vindos da Capital, é óbvio que precisamos de ajuda.

Mas também é óbvio que não abro a boca para falar nada disso. Por outro lado, pergunto simplesmente:

– Pode tentar conseguir patrocinadores, não é? - Mantenho a dúvida no ar apesar de saber que esse é seu trabalho como mentor e, querendo ele ou não, Burton teria de realizá-lo sem sequer abrir a boca em contestação.

– Exato - ele concorda e, apesar da resposta um tanto óbvia, sinto como se as coisas estivessem começando a se encaixar. Evito olhar diretamente em seus olhos, espantando de minha mente a visão de Burton e a lança em meu peito que Cameron, infelizmente, havia gravado em mim. - Se forem com a cara de vocês, os patrocinadores podem mandar coisas de que estejam precisando na Arena, ou talvez apenas objetos para direcionar seus pensamentos, entendem? Que façam vocês perceberem o que precisam fazer para ter o que precisam.

Tanto eu quanto Cameron parecemos confusos naquela última parte, mas não damos importância e ele prossegue:

– Então - segue, mastigando o último pedaço de seu terceiro bolinho ao mesmo tempo em que fala -, que arma sabem usar?

Nesse momento, ponho em dúvida qualquer esperança de que Burton pudesse entender nossa leve fragilidade por sermos da Capital. Ele aparentemente nos enxerga como meros tributos que mantiveram contato com armas durante toda a vida até então.

Consequentemente, eu e Cameon nos entreolhamos mais uma vez. Como algum dia poderíamos imaginar que precisaríamos saber usar uma arma, ou ao menos algo próximo de uma? Confesso que o máximo que fiz foi usar facas com ponta para cortar pães e outros alimentos inteiros, o que a primeira vista não seria muito útil - a não ser que eu queira fazer um sanduíche a um Carreirista antes de morrer. Então, faço a primeira coisa que me vem à cabeça: cito uma arma aleatória tentando parecer convincente; já que estou pensando exatamente nela, por que não?!

– Facas - escolho, tentando esquecer a visão do sanduíche para os Carreiristas. - Sou ótima com facas.

Maravilha; agora tenho uma semana para aprender a, com uma faca levemente mais pontuda do que o normal, tirar a vida de outras pessoas sem tirar a minha.

Depois de um tempo perdida em meu próprio conflito interno, lembro de que Cameron ainda não disse qual seria sua arma, e instantaneamente fico ainda mais aflita, considerando que ele é, vamos dizer, um típico "frangote".

– E eu sou muito bom com lutas corpo a corpo. Não me dou bem com armas - ele responde, e tenho que me conter para não enfiar o rosto entre as mãos, já que ele se deu o trabalho de escolher a pior arma possível para ele e que, na verdade, não é nem mesmo uma arma. Mas o que me preocupa é sua confiança ao dizer aquilo; ele realmente levou a sério, como se soubesse que conseguiria aprender a matar alguém desse jeito. Mas, analisando as circunstâncias, como iria convencer Burton de que era capaz?

Cameron é magricelo e alto, parece tão frágil a ponto de ser aparentemente possível quebrá-lo em dois sem o menor esforço. Burton certamente percebeu seu físico gritante, mas Cameron agora estaria determinado a provar para ele que não foi tão estúpido ao se oferecer.

Vamos dizer que eu não sou a melhor pessoa para quem se pode entregar uma faca, mas sei que tenho mais chances de aprender a usar uma do que Cameron tem de matar alguém com sua força, se é que essa ao menos existe.

Por que Burton precisou provocá-lo, induzi-lo a essa ilusão, em primeiro lugar?!

Mas em segundos a confiança de meu irmão se mostra ausente quando me lança um olhar confuso. Esse expressa claramente:

"O que fazemos agora?"

Talvez eu estivesse errada a respeito de sua possível determinação, mas a verdade é que nesse momento não estou muito diferente. Tato de resumir minhas próximas palavras também em um só olhar, e por sorte ele as parece entender.

"Não sei", são elas.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? Mudaram de opinião sobre o Cameron? Deixem reviews que a autora gosta haha ♥ (capítulo rescrito e corrigido em 02/12/2014)



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