Paixão Pós-morte escrita por RoBerTA


Capítulo 4
Doce caminhada pela cidade feliz




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Super poderes? Alucinações? Hormônios?

Seria uma blasfêmia dizer que não tive uma boa noite de sono. Na verdade, nem dormi. Passei a noite em claro pensando em possibilidades. Seria possível eu estar louco? Seria possível essa garota realmente ter vindo aqui e só eu tê-la visto? Ela realmente existe?

Balanço a cabeça e afugento todos os pensamentos, me concentrando apenas em sair da cama e ir até a cozinha saquear a geladeira. Empurro o lençol, ouvindo o som suave de sua queda. Espreguiço-me e nem paro em frente ao espelho. Desço, e percebo que só eu estou acordado. Olho para o relógio de parede em forma de flor perto da escada. Eram 08h30min, e num sábado. Isso é comum, praticamente tradição. Ninguém acorda cedo nos sábados e domingos. Mas é óbvio que eu precisava ser a exceção. Olho pela janela e observo como o dia está radiante, e o sol torna as sombras das árvores sólidas. Com uma ideia em mente, pego uma maçã na cesta de frutas e me ponho para fora de casa, com a intensão de caminhar e conhecer melhor meu “novo lar”. Palavras da minha mãe, não minhas.

Enquanto termino a maçã, observo a vizinhança. É surpreendentemente tranquila. Tipo aqueles lugares alegres de histórias infantis, sabe? Paro em frente à escola onde irei estudar. É ao mesmo tempo diferente e igual à minha antiga. De fato, meu inferno particular só mudou de endereço. Continuo andando, até parar em frente a uma padaria onde sou atraído. Não pela comida, mas pela banca de jornal onde uma foto me chama atenção. Aproximo-me, mais e mais, e...

É ela! A cuja dita que se chama Manuela. Mas o que ela estaria fazendo em um jornal?

Aproximo-me mais, observando que o jornal esta datado em semanas atrás. Péssimo estabelecimento. Ignoro meu subconsciente, e leio o título.

“Casal e filha morrem em acidente de carro”.

Não quero ler mais nada, pois não sei em que pensar. Meu cérebro parece ter ficado dormente enquanto tudo se encaixa, e ao mesmo tempo as peças do quebra cabeça parecem ter se espalhado ainda mais. Morta? Mas isso é impossível. Eu a vi. E eu... não a toquei. Então ela seria... Um fantasma?

–Oi.

Dou um pulo e meu coração uma cambalhota quando a vejo parada bem na minha frente. Ela simplesmente... Surgiu. Do nada. Literalmente.

Ela parece perceber que me assustou, pois me encara com pena e arrependimento.

–Sinto muito por agora e por ontem também. Eu simplesmente estou começando a ficar desesperada. A única pessoa com quem fui capaz de manter contato foi você, depois do –ela faz uma pausa, franzindo o cenho e tentando encontrar uma palavra apropriada- acidente.

Acidente, hnm, sei. Mas ela não me dá tempo para responder, pois logo começa a falar de novo.

–Olha, eu preciso muito mesmo da sua ajuda. Eu tenho que encontrar meus pais. Só consigo me lembrar de que estávamos voltando para casa, rindo, conversando, brincando. E então... Silêncio.

Sua voz falha no final. Olho com pena para ela. Seja lá o que estiver acontecendo, é meio certo que ela está... Morta. Mas aparentemente ainda não percebeu. Aponto para a banca desatualizada. Absorvo sua mudança de expressão quando enfim olha. Um misto de choque e incredulidade, seguida por dor e desespero. Todas essas expressões são substituídas por uma máscara de nada.

Uma lágrima solitária rola por sua bochecha. Dou um passo à frente, pronto para consola-la, quando lembro que não posso, nem jamais poderei.

Ela percebe e a limpa depressa, não querendo demonstrar fraqueza, por mais que a situação seja realmente desesperadora. Admiro-a, é uma garota forte, de fato.

Ela ergue o queixo, me olhando nos olhos. Um arrepio percorre minha espinha.

–Então é isso, estou morta, -solta uma gargalhada sem humor, muito assustadora, na verdade- quem diria, estou MORTA!

Ela grita pro nada e pra mim. Suas mãos tremem quando agarra a bainha do vestido branco.

–Mas se estou morta, o que estou fazendo aqui?

Conversando comigo, dã. Mas é claro que não digo isso. Quando
estou nervoso –como agora-- acabo pensando coisas assim. Fico imaginando como estou parecendo para as pessoas que me lançam olhares atravessados. Um louco, provavelmente. Parabéns Felipe, já conseguiu uma ‘boa’ reputação. Penso em uma resposta, abro a boca, mas mudo de ideia rapidamente. Penso de mais um pouco e finalmente falo. Provavelmente eu vá me arrepender mais tarde.

–Não sei o motivo de você estar aqui, mas posso te ajudar a descobrir. Se você quiser, é claro. –Acrescento depressa.

Seu rosto se ilumina e ela me olha com seus grandes olhos. Parece uma criança vendo o Papai Noel, o que é uma comparação horrível, pois nem barba tenho.

–Você faria isso? De verdade? Por mim?

Quantas perguntas para a mesma resposta. Poxa, depois sou eu que falo demais.

–Acho que sim né, já que me ofereci e tudo mais.

Ela estreita os olhos.

–Você está sendo sarcástico?

–De modo algum. Existe uma linha tênue entre o sarcasmo e a ironia.

Ela bufa e rola os olhos.

–Vai me ajudar ou não?

–Que saco, eu já disse que sim. Para de ficar perguntando a mesma coisa.

–Credo ta de TPM?

Olho emburrado para ela. Por que precisava dificultar tanto as coisas? Já era tremendamente difícil assimilar o fato de que eu estava prestes a ajudar uma fantasma a encontrar, sei lá, seu propósito ou despropósito, tanto faz.

–Isso, continua falando assim que eu chamo os caças fantasmas.

–Nooossa, que medo.

Então nós ficamos nos encarrando, porque não sabíamos o que fazer ou dizer em seguida.

–E agora? –pergunto meio incerto.

–E agora o que? Foi você quem me ofereceu ajuda. Agora se vira. E é melhor achar uma solução, caso contrário, eu tenho a eternidade para te assombrar- ela me dá um olhar malvado- Tenho certeza que ambos seremos beneficiados. Te vejo de noite, tenho assuntos inacabados para resolver.

E assim ela some, com um tchauzinho alegre, me deixando boquiaberto. Tento reformular meus pensamentos, muito confusos no momento, sem sucesso. Ok, vamos por partes. Eu, um cavaleiro, bem feitor e todas essas coisas boas e etc, ofereço ajuda, e ela tem a audácia de se aproveitar de mim? E como assim me assombrar? E eternidade, ela tem a eternidade sim, mas eu vou morrer muito antes disso. E que história é essa de assuntos inacabados para resolver? Ta certo que se você é fantasma, é porque tem algum assunto inacabado, acho. Mas com ela pretende resolver sozinha e invisível assim? Fazendo as pessoas ficarem com frio?

Percebo que ainda estou parado em frente a banca de jornal, quando vejo um atendente e chamo por ele.

–Quanto está o jornal?

–Pode levar, nem precisa pagar. É velho.

O homem de meia idade me dá um sorriso amigável.

Por que tudo nessa cidade tem que ser agradável, feliz e perfeitinho? Estou começando a sentir saudade do sorriso banguela e carrancudo do padeiro de onde eu morava.

–Obrigado.

Ele acena e volta ao trabalho.

No trajeto de volta para casa, vou lendo sobre o acidente. E realmente, foi um trágico e infeliz acidente. O pai de Manuela nunca teve problemas com transito, nunca, nem mesmo uma multa. Parece que também ninguém continha uma única gota de álcool no sangue. O carro estava ok, recentemente tinha passado por uma revisão. O problema, não eram eles. Era um suicida que estava esperando um carro passar para se jogar na frente. E foi justamente o carro deles que ele escolheu. Mas o pai dela viu a tempo de desviar, e esse desvio, não foi só da estrada, mas também da vida.

O carro bateu de frente numa árvore, e não houve sobreviventes.

Entro em casa e percebo que não só já haviam levantado, como também estavam fazendo o almoço juntos.

Meu pai estava de costas para mim, virado pra o balcão, cortando pepinos.

Quando me viu, abriu um sorriso.

–Oi filh...

Mas não deixo que termine a frese, jogo o jornal na sua frente, e minha mãe se aproxima para saber o que está acontecendo.

–Você sabia, mas não nos contou. Por que?

Ele parece surpreso e envergonhado quando abaixa a cabeça e olha para os pés. Minha mãe ouve atentamente sem interferir.

–Talvez vocês não quisessem vir morar aqui se soubessem que os antigos donos haviam morrido. Eu nunca teria outra oportunidade como essa no emprego.

–Então é isso, não é? Tudo se resume ao seu emprego. E que se dane a família. Mas eu nunca pensei que você fosse mentiroso também.

Com isso subo para meu quarto lindamente rosa. Tranco a porta e me jogo sobre a cama, sem fome para pensar em almoçar. Sei que o melhor para meu bem-estar é me manter bem longe da minha mãe por enquanto. Ela parecia bem chocada lá embaixo, mas logo começaria a discutir com papai. Ela pode ser a mulher mais doce do mundo, e a mais assustadora também. Resolvo tirar um cochilo, e descer quando as coisas estiverem calmas por lá. É, minha família não é perfeita, nem um pouquinho.

***

Droga, onde estou? Olho para aquele monte de rosa e coisas afeminadas e solto um muxoxo. É claro que estou aqui, no meu quarto. Com um fantasma me encarrando de forma divertida.

–Você fala enquanto dorme.

Droga.

–Não adianta pedir, porque não vou contar. –Ela emprega uma postura e expressão profissional, e um pensamento me atinge em cheio: to lascado-- Agora, vamos aos negócios.

Eu já mencionei como estou lascado?


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