O Espelho escrita por CK Bellini


Capítulo 2
A Lebre e o Caçador




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/243918/chapter/2

O tempo mudara de repente, pensou o caçador, enquanto limpava a folha de sua faca de caça afiada e suja de sangue.

— Até que a caçada hoje não foi tão ruim... — Murmurou ele, olhando para os quatro coelhos e os dois esquilos que conseguira. — Falta apenas checar as armadilhas.

O vento uivou sobre as copas das árvores espaçadas. Ele estava no bosque Breciliano, próximo da cidade o suficiente para avistar a fumaça que subia das chaminés. Um trovão ribombou abafado e pingos de chuva caíram logo após. Estavam frios, daquele tipo de chuva que atinge dolorosamente seu corpo. Mas ele ainda precisava checar as armadilhas, senão algum predador certamente o faria e levaria embora a preciosa armadura que custou provavelmente o que ele poderia providenciar em um mês, caçando todos os dias.

Elas estavam perto. Uma alí na frente, abaixo do Gande Carvalho, ponto de encontro de casais e de animais que buscam comer as bolotas que caem com mais frequência na primavera. O caçador caminhou pela trilha, o vento uivando sinistramente enquanto o dia ficava cada vez mais escuro e molhado, visto que a chuva caia com cada vez mais intensidade.

A primeira armadilha tinha um esquilo. “Ótimo”, pensou o caçador, recolhendo a carcaça ensanguentada do animal morto. “Isto basta para o jantar de hoje”. Ele e a família sempre comiam um dos esquilos que ele conseguia capturar. Não era das mais suculentas refeições, mas saciava a fome, pelo menos.

A segunda armadilha ficava mais embrenhada no mato, em uma área onde as árvores eram mais unidas e suas copas mais densas, o que diminuia a iluminação.

Um urso se debatia, agonizante, enquanto tentava livrar sua perna do objeto metálico dentado que se agarrara, raivoso, no pelo castanho do animal e causara feridas profundas e sangrentas.

O caçador sorriu. Sacou a faca e, antes mesmo que a criatura desse conta de sua presença, desferiu um golpe que cortou boa parte do pescoço do animal. O bicho soltou um grito estrangulado enquanto convulsionava. A cabeça pendeu para trás e, como em câmera lenta, a carne que a prendia no pescoço foi esticando e se rompendo, até se soltar e cair no chão molhado com um baque úmido. Sangue esguichava em jatos profusos e constantes, até o coração dar-se conta de que não havia mais um chefe comandando-o, então parou para descançar para sempre, interrompendo os jatos. O corpo sem cabeça do urso se aquietou.

Ótimo!” Pensou o caçador, vitorioso. “Pele de urso é reconhecida pelo calor retido. Posso ficar tranquilo com relação ao inverno”. Ele ajoelhou no chão molhado. A chuva caía pesada agora. Gotas contínuas atravessavam a cobertura de folhas e choviam no corpo do urso e em seu próprio. A faca ainda em mãos, introduziu no estômago da infeliz criatura e, com um golpe firme, rasgou a cobertura de gordura e carne, espalhando as vísceras do animal no chão molhado.

Um soluço atraiu sua atenção. Ele olhou em volta pela floresta escura, mas o único som que era possível ouvir era o contínuo e intermitente “Shhhhhh” da chuva. Dando de ombros, voltou sua atenção ao cadáver, começando a recolher as vísceras em uma sacola de couro. Apenas as mais nobres, é claro, como o fígado, os rins, o pâncreas...

Outro soluço. Desta vez ele viu algo. Um relance de pelagem branca, que se embrenhara num arbusto.

Lebre...” Pensou o caçador, voltando a retirar a pele do animal.

Vinte minutos depois, a carcaça quase vazia jazia no chão. Ossos, vísceras e carne dura das coxas não foram pegas. A lebre apareceu novamente. Era branco-perolada. Alto valor comercial, pelo visto.

— Olá amiguinha. — Disse ele, agachando-se e fazendo sinal com a mão. Se ela caísse e se ele fosse rápido, teria um extra. A lebre, por outro lado, moveu-se para trás, na direção da última armadilha.

O caçador riu maquiavélico enquanto cortava os arbustos e galhos em seu caminho, atrás da lebre, mas encontrou a armadilha vazia. Ao menos nada que lhe agradasse.

Apenas o que havia era uma carcaça de um cervo jovem, preso pela pata (ou o que sobrara dela). O cadáver parecia severamente destrinchado, como se um animal selvagem o tivesse atacado. O animal estava com a cabeça separada do corpo, visivelmente arrancada a dentadas. Nacos inteiros de carne faltavam-lhe por toda parte superior do busto dilacerado. Nem mesmo os orgãos permaneceram dentro do bicho.

— Mas que...

A lebre branca voltara.

— Vai ter de ser você então. — Concluiu ele, andando displicentemente em direção a lebre, sacando o arco.

Um choro agudo desviou a atenção do caçador. Ele vinha de um canto escuro, atrás de uma árvore. O homem se esgueirou por entre a vegetação, afastando alguns galhos.

— Quem está aí? — Perguntou.

O choro ficou mais sentido, acompanhado de soluços. Era, obviamente, feminino. Ele continuou seguindo o som. A chuva caía pesada. O vento soprava frio e trovões ribombavam com uma intensidade assustadora. A floresta estava escura e densa, mas ele ainda assim continuou. Precisava ajudar seja lá quem fosse.

— Não tenha medo. — Disse, afastando uma moita.

Tudo o que ele ouviu foi um som de congelar o tutano dos ossos. Um vulto negro pulou sobre ele e o nocauteou, deixando-o largado na lama, inconsciente.

 — / / —

A Rainha descia pela estrada de seu castelo veloz, desta vez oculta por uma capa emprestada de um dos seus criados. Era marrom, esfiapada e com capuz, perfeita para andar sorrateiramente sem ser reconhecida. Bastava arcar um pouco mais as costas e pronto! Uma pobre moribunda em busca de algum conforto.

Só essa maldita chuva!”, pensou, enquanto a chuva martelava em sua cabeça pela estrada nua. “Onde encontrarei uma criança? Preciso de três!”

Então, ao chegar na praça do Mercado, avistou um pequenino menino, cutucando um monte de lama com uma varetinha. Ele tinha o aspecto miserável do pobre e cara de extrema fome. Face encovada, com os ossos salientes, esticados pela pele. Provavelmente estaria sozinho. Uma ótima oportunidade.

A Rainha, então vista como uma simples mulher, acorreu ao garoto.

— Está sozinho, querido? — Perguntou, agachando-se ao lado do garotinho

Ele a mirou assustado, recuando alguns passos.

— Não tenha medo. — Disse ela, estendendo a mão esquerda, num gesto de confiança.

O garoto não se moveu, olhando-a com curiosidade.

— Está com fome? — Perguntou.

O garoto balançou a cabeça.

A Rainha então sacou uma maçã vermelha de seu bolso e a ofereceu ao menino. Era apenas caso ela ficasse com fome, mas vendo a oportunidade de conseguir os desejos do espelho, nada melhor do que adicionar um pouco de sustância ao sangue daquela potencial vítima.

O menino pegou a maçã rapidamente e abocanhou a fruta crocante, mastigando-a sonoramente, desesperado.

— Você está sozinho?

Ele balançou a cabeça, afirmativamente.

— Pobrezinho. Por que está sozinho? O que aconteceu com sua familia? — Perguntou a Rainha, limpando carinhosamente o rosto do menino com as costas da mão.

— Morreram. — Disse, voltando a devorar a maçã.

— Morte morrida?

— Foram mortos.

— Minha nossa! Coitadinho! Mas quem os matou? Diga-me, vou mandar os guardas da cidade atrás dele!

O garoto a olhou mortificado.

— Não se preocupe, querido. Não se assuste.

Ela retirou o capuz, revelando o rosto.

— Pode vir para minha casa se quiser. Posso te dar comida e uma roupa quente. Quer tomar um banho?

O menino encarou-a curioso.

— Posso levar minha irmazinha?

O coração da Rainha deu um pulo de excitação.

— Claro, querido. Tem espaço bastante para vocês dois.

O menino sorriu.

— Tem mais algum amiguinho que também perdeu a família?

— Tenho sim, o Math. A família dele morreu igualzinha a minha.

A Rainha o encarou, pensativa.

— Mas como sua família morreu, querido?

— Uma mulher estranha pediu para passar a noite em casa. Ela era muito bonita. Nos deixamos ela entrar e ela matou meu papai primeiro, depois meu irmão maior e depois minha mamãe.

Ele falava como se comentasse do tempo.

— Minha nossa! Mas como você sobreviveu? — Perguntou a Rainha.

— Minha irmã se escondeu comigo depois que a “buxa” matou o papai.

— E onde está sua irmã agora?

— Tentando encontrar comida e abrigo para passarmos a noite.

— Mas então... Quando isso aconteceu?

— Ontem.

Billy!— Gritou uma voz assustada.

Uma menina magrela correu entre o menino e a Rainha. Tinha a mesma face encovada e os traços famintos do irmão.

— Deixe-o em paz! — Gritou.

— Calma, Nana. Ela é boazinha! Ela até nos convidou para irmos ao palácio dela e me deu uma maçã!

— Ela o que... Você comeu toda a maçã e não guardou nenhuma parte para mim? Seu guloso! Agora eu vou ficar com fome por sua culpa!

— Desculpe Nana...

— Acalmem-se vocês dois! Tem muito mais de onde essa veio! — Interveio a Rainha, prevendo uma confusão entre os irmãos.

— Mamãe disse que você é uma bruxa e que é para ficarmos longe de você! — Gritou Nana, puxando Billy para longe da mulher.

A Rainha sorriu maternalmente.

— Mas sua mãe morreu, não é mesmo?

— Como sabe disso?

— Seu irmãozinho aí me contou.

— Foi... Billy! Não falei para não falar com estranhos?

— Desculpa, Nana...

— Ora vamos, menina! Vou levá-los para meu palácio para vocês tomarem banho, trocarem de roupa, comer alguma coisa e depois tentar encontrar a “buxa”.

Nana encarou-a, desconfiada.

— A senhora não quer nada em troca?

— O que poderia me dar em troca, querida? É só uma criança.

— Eu sou... Bem... Menina.

— O quê? Nada disso, vamos direto para minha casa para sairmos dessa chuva. Onde está o amigo que seu irmãozinho me disse que vocês tinham?

— Math? Ele está alí atrás. — Ela apontou para um monte de barris. — Vem cá, Math. A Rainha vai nos dar comida! Ela não é uma bruxa! Ela é muito boa!

Um meninho loiro olhou por entre os barris.

— Venha, querido. Vamos tirar essa roupa molhada. — Disse a Rainha, estendendo uma mão, num gesto de amizade.

      — /  —

Julia fazia seu afazeres quando seu marido irrompeu pela porta da casa.

— Ainda bem que chegou, querido. Trouxe os...

Ela derrubou a bandeja de xícaras. Nichol estava ferido. E muito. Sangue descia profuso pela ferida no pescoço. Um naco de carne faltava.

— Ju... Julia.

— Meu Deus, Nichol! O que...

— Demônio, Julia... De-demônio. — Gaguejou ele, cuspindo sangue.

Uma batida na porta e um grito agonizado.

— Minha nossa! Disse ela, levantando-se para espiar por entre a janela.

— De-demônio... — Gaguejou Nichol. Estava pálido como papel.

Julia correu no armário e pegou dúzias e panos limpos e os pressionou sobre o ferimento do infeliz. Outra batida.

Ajude-me, por favor! — Gritou uma mulher. Ela parecia apavorada.

Julia fez menção de se levantar, mas a mão de Nichol segurou seu braço.

— Não se preocupe querido. — Disse ela, trêmula. — Vou ver o que é.

Os olhos de Nichol brilharam, em pânico.

— N.. Na... — Ele engasgou com mais sangue.

— Pare de falar! Vai acabar morrendo! Agora pressione este pano!

A porta foi alvo mais bordoadas.

— Me ajude! — Gritou a mulher de novo. — Ele vai me achar!

—Oh, meu Deus!

Julia correu para a porta e abriu.

Nichol não conseguiu enxergar, mas ouviu três gritos distintos e ao mesmo tempo. Primeiro foi o da besta que o atacar. Depois foi o da mulher, que pedira ajuda. Por fim o de sua esposa.

Julia caiu, fechando a porta com força. Estava trêmula. Do lado externo, o último grito da mulher fora ouvido, seguido por um nauseante som de mastigação.

— De... Demônio. — Murmurou, enquanto gorfadas de vômito lhe subiram pela garganta.

Três toques na porta. Excepcionalmente fracos agora.

— Me... Ajude... — Suplicou a voz da mulher.

— Oh, meu Deus! — Gritou Julia, levantando-se depressa, limpando o vômito que lhe subira pela garganta.

Ela abriu a porta.

— Entre, rápido!

— / / —

Julia e seu marido, Nichol, nunca mais foram vistos depois deste dia.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Espelho" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.