O Espelho escrita por CK Bellini


Capítulo 1
A chegada do espelho




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Era uma vez, em um reino distante, uma bela e egoísta rainha, cujo único objetivo era de ser a mais bela. Embora ela ja o fosse, a Rainha nutria um incrível senso de inferioridade, o que a deixava cada vez mais perigosa. O reino era como todos os reinos. O grande palácio onde a rainha depositava sua anca em seu precioso trono de prata; A vila, movimentada pelo mercado de especiarias, o Bosque e o Mar, sem mencionar as incontáveis casas e tavernas ao longo das estradas.

Certa vez, a rainha desceu imponente a estrada de seu castelo dourado, com torres, torrinhas e torrões — sejam de açucar, sejam incrustadas de janelas — e se dirigiu ao mercado movimentado.

Ela era rápida. O nariz em pé e a coroa brilhante de um dourado intenso. Os cabelos negros presos em uma suntuosa trança, com fios de ouro à decorar. A barra da saia voava com seus passos rápidos. O engraçado era que os moradores, quando a viam, se distanciavam. Alguns chegavam a puxar suas crianças para perto ou as mandava entrar em suas casas. A rainha não era famosa por sua tolerância com ninguém, muito menos com crianças.

Um vendedor de pele bronzeada e bigodeira farta se interpôs no caminho da mulher. Ele observou sua coroa e deu uma profunda reverência. A rainha simplesmente o mirou com repugnância.

— Desculpe incomodá-la, sua alteza — disse, ainda curvado— mas tenho um objeto que, talvez, possa ser de vosso interesse.

Ela levantou as sobrancelhas, descrente, mantendo a expressão de nojo.

— Pois então diga-me, senhor, visto que não tem amor à propria vida, mas somente ao dinheiro.

— Um objeto que tenho certeza que irá aumentar a alegria de vossa Alteza. — Disse ele, levantando-se depressa e sorrindo. Era baixo e atarracado, com rosto socado e braços muito compridos.

A rainha ponderou sobre a possibilidade de ser uma tentativa de assassinato, visto que não era amada por seu povo, o contrário era o mais plausível.

— Guardas! — Chamou ela. Imediatamente dois soldados vestidos em armaduras de ferro postaram-se a cada lado da dama. — Acompanhem-me. Este senhor me deixou tentada, mas ao menor sinal de emboscada, matem-no e finquem sua cabeça numa estaca no centro da praça.

Os guardas balançaram a cabeça em concordância, murmurando um simples “Sim, majestade”.

O vendedor então, intimidado pela presença dos guardas com a mão sobre a bainha das espadas, levou os por entre uma travessa escura. A rainha suspeitava cada vez mais de uma emboscada. As paredes eram estreitas e o chão úmido. Estava escuro e eles ja não mais ouviam os sons de vida do mercado, apenas o som de suas respirações unidas e seus passos.

— Deveríamos voltar. — Sugeriu um dos guardas, nervosamente.

— Voltar? Por que? Acabamos de chegar! — Disse o homem. Ele falava engraçado, com um puxão nas sílabas com “a” e ressonava o “r”.

Ele parara na frente de uma porta de aspecto miserável. Uma plaqueta dependurava-se acima da soleira e balançava doentiamente. “Pensão Trovadora”.

— Perdoe-me trazer tão ilustre figura a esse casebre miserável — desculpou-se, reverenciando novamente — mas é o que tem para hoje!

O homem abriu a porta, que rangeu e inundou a viela com bruxuleante luz vinda de chamas. O hall de entrada era miserável, mas ao menos aconchegante. Um balcão de madeira em um canto, encimado por uma bela moça loira, que se equilibrava precariamente sobre a peça de madeira, tentando alcançar a mais alta das garrafas empoeiradas que estavam dispostas em um porta-garrafas de madeira mofada. Ao ouvir o barulho da porta, ela virou o rosto para ver quem entrava e caiu com um estrondoso baque ao avistar a dourada e brilhante coroa da Rainha, que entrava passo ante passo para não se sujar.

— Cuidado, Kelly! —disse o homenzinho, ajudando-a a levantar.

Kelly imediatamente se jogou aos pés da rainha.

— Vossa Majestade em minha humilde pensão! Que honra! Que honra!

— Acredite, gostaria de estar em outro lugar. — Respondeu a Rainha, seca. — Mostre-me, moribundo! Que quer que seja que me trouxe aqui, é bom que valha a pena.

— Claro, claro. Sou um viajante. Venho e vou por todos os cantos desse mundo criado por Deus. Ví e ouví coisas inimagináveis. Tenho três artefatos que talvez interessem à Vossa Alteza.

Kelly continuava jogada no chão. A Rainha seguiu o homem, que se dirigiu pelo corredor comprido ao lado da escada. Tinha muitas portas, mas entrou na última. O quarto não era diferente do resto do local. Uma porta que dava sabe-se lá para onde se abria no fundo. Havia uma cama de dossel alto, com travesseiro de palha enfiado numa fronha manchada. Um guarda-roupa ao fundo, encimado por um candeeiro com três velas derretidas.

Três objetos se encontravam no quarto, além de sua mobília costumeira. O primeiro era uma grande caixa de madeira polida, requintada, com teclas de marfim, brancas, e menores pretas por cima. Um banquinho acompanhava tal caixa. O segundo objeto era uma escova de ouro encrustada de rubis, que brilhavam como olhinhos vermelhos sob a luz tremeluzente e sombria do candeeiro. O terceiro objeto era um luxuoso espelho de prata de corpo inteiro. Linhas serpenteavam por entre a moldura. O espelho estava excepcionalmente sujo.

— O que é isso? — Perguntou a Rainha, apontando para a bela caixa de madeira polida.

— Isso, minha senhora, é um instrumento musical a base de cordas estendidas, que levam socos e liberam um maravilhoso som abafado, como anjos cantando num dia de...

— Prove. — Interrompeu a Rainha.

O homem puxou o banquinho, se sentou com cuidado e começou tocar as teclas. A cada toque, um som agudo e melodioso irrompia da caixa. A Rainha ficou encantada.

— Minha nossa! Lindo! — Exclamou ela, aplaudindo. — Quero isso, seja lá o que for!

O homenzinho sorriu e fez uma breve reverência.

— Quero também a escova! — Ela apontou para o objeto brilhante sobre a caixa de madeira.

O homenzinho sorriu e fez uma breve reverência.

— Este espelho está imundo! — Reclamou a Rainha, enojada.

— Perdoe-me, Alteza, mas um simples mercador viajante não encontra material apropriado para polir a estrutura sem macular sua perfeição. — Disse ele, reverenciando novamente.

— Pare de fazer isso, ridículo!

O homenzinho fez um breve aceno com a cabeça, sorrindo.

— O que seria necessário para limpar e polir? — Continuou a Rainha.

— Cetim ou seda. — Respondeu ele. — Mas vossa Majestade pôde observar que, se dispusesse de tais recursos, o espelho reluziria como diamantes.

Ela observou o objeto por um momento.

— Vou levá-lo. — Disse, por fim.

O homenzinho sorriu e fez uma breve reverência.

A Rainha bufou e saiu, intempestiva, pela porta.

— Entregue em minha casa. É possível observá-la de quase qualquer lugar da cidade.

O homenzinho sorriu e fez uma breve reverência. Como retirar aqueles objetos do cômodo ele não fazia ideia.

A Rainha voltou para seu palácio satisfeita. Tinha adquirido um tesouro magnífico.

“Aquela caia de madeira” , pensou consigo enquanto adentrava no jardim repleto de topiarias no dia seguinte, “será um ótimo meio de impressionar a nobreza quando esta o vier jantar em minha casa. Além do que, minha escova dourada ha de deixar meus cabelos belos e brilhantes como seus rubis. E o espelho. Oh! Que belo espelho! Ficará magnífico em meu quarto!”

Vossa Alteza observava as tulipas amarelas, que floresceram aquela manhã, balançar sob uma quente brisa de primavera. Seu jardim estava lindíssimo, com as cores das flores que germinaram.

— Vossa Alteza — chamou uma voz baixa e educada.

A Rainha virou-se e deparou com um de seus criados.

— Um homem acaba de chegar com entregas para a senhora.

— Deixe-o entrar.

— Ele ja se foi.

Um vento frio varreu o jardim e nuvens carregadas apareceram de repente, tapando a luz do sol. Trovões abafados vieram, acompanhados do vento repentino.

— Meu Deus! Que tempo estranho. — Murmurou o criado.

A caixa de madeira estava no Salão de Visitas, exatamente onde Lady Ray pensara em deixá-lo. Isso a intrigou. A escova e o espelho em seu quarto. O espelho continuava imundo.

— Limpe isto com este lenço. — Ordenou a Rainha à criada mais próxima, atirando o lenço de seda roxa em sua direção. A criada imediatamente começou a limpar.

Ao menor toque da seda na superfície de vidro do espelho, a sujeira se desfez, caindo como água. Isso assustou a criada.

O espelho brilhou fantasmagoricamente.

Vossa Alteza viu isso? — Perguntou a criada, assustada.

— Ví. És uma excelente limpadora!

— Obrigada, majestade. — agradeceu, com uma leve reverência — mas creio que o espelho esteja com defeito ou limpei muito forte.

— Ora, qual seria o motivo, então. Visto que vós apenas tocaste a superfície e toda a sujeira saiu como água. Ele parece perfeitamente normal para mim.

— Perdoe-me, Alteza, mas este espelho não tem reflexo.

Era verdade, observou a Rainha. A superfície vítrea do espelho permanecera opaca, como se fumaça houvesse grudado no vidro. Ela chegou mais perto, tentando enxergar qualquer resquício de sujeira que por ventura não dissolvera. Era impossível dizer se era sujeira ou simplesmente o espelho em sí. Lady Ray estendeu a mão e, com três dedos, tocou a superfície.

Um grito varreu o quarto, sobressaltando a Rainha.

A criada jazia morta. Seu pescoço dilacerado e seus olhos derretidos numa poça de sangue escarlate no chão. A Rainha mirou, atônita, o fluxo de sangue seguir em direção ao espelho, subir quatro degraus e encostar na parede, onde um tênue filete escarlate escalou a parede, tocou no metal prateado e preencheu suas linhas em relevo. E assim foi, até não restar nenhum sangue no corpo da criada nem mancha alguma no chão. O corpo da infeliz estava branco e flácido.

Um inscrição mostrou-se sobre o arco decorado no topo do espelho:

Speculum Vinculis

Na opacidade do centro do espelho, letras cursivas excepcionalmente floreadas, mas claras o suficiente para qualquer um que soubesse ler, foram escritas como por uma mão invisível, quebrando o perolado vítreo e mostrando suas curvas no escarlate do sangue da mulher morta no chão.

Quicumque opaca fenestram

vultus pro mundi

Bestia suscitat laevisomnus.

Tres optata

Tres innocentes probatum est sague

Fine Tertii Ordinis

bestia est liberum

Et mundi periit

A Rainha continuava atônita. Suas mãos tremiam enquanto seu olhar percorria do corpo inerte da criada ao espelho opaco com a mensagem em sangue. “Latim”, pensou. Ainda apavorada, mas ligeiramente curiosa, Lady Ray continuou a observar as palavras, tentando buscar significado para elas. Poderia simplesmente chamar o padre, mas ele queimaria o espelho como prova de bruxaria.

Não, ela não faria isso. Tentaria compreender sozinha.

— Quicumque opaca fenestram... Não, não faço ideia do que isso signifique, tampouco o segundo e terceiro versos. Tres optata... optata igual a opção. Tres, obviamente, so pode ser três. Três opções... Três desejos! — Concluiu então com um estalo de seus dedos, completamente indiferente ao cadáver que ocupava seu chão e que começara a cheirar estranho. A ferida aberta tornara-se negra e negros tornaram-se as órbitas vazias de seu crânio.

— Mas isso não daria simplesmente três desejos, senão a criada continuaria viva... — Continuou ela, contornando a boca com o polegar e indicador, num gesto de raciocínio. — Tres innocentes probatum est sague... Três novamente. Innocentes poderia significar inocentes, obviamente. Probatum igual a prova ou... Três inocentes provarão este sangue. — Concluiu por fim a tradução do verso. Sague só poderia significar sangue, visto o comportamento vampírico do espelho, o qual consumiu até a última gota do líquido do corpo da pobre desgraçada.

Mas por que não o meu?” perguntou-se a rainha, agora realmente se interessando pelo artefato. “Talvez queira que eu seja seu mestre. Talvez queira me servir como todos o querem no meu reino.”

Ela sorriu. Um sorriso sádico e sinistro.

— Preciso de três crianças para três desejos. — Cantarolou, esquecendo do resto da inscrição. Ela mandou um beijo para o espelho, que refulgiu com um brilho metálico. A inscrição escrita com sangue se apagou, tornando o espelho novamente opaco.







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