Dos Diários de Marian Stanford escrita por hgranger


Capítulo 3
Origem - Capítulo 2 - Um dia como outro qualquer




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Marian voltou para casa, preparou o desjejum e contou rapidamente a novidade à mãe. Apesar de não ser velha, a mãe de Marian havia perdido grande parte da vitalidade após a morte do marido e procurava não ser um peso a mais para a filha. Resmungou algumas coisas a respeito das notícias e voltou a exibir o olhar perdido de sempre. Marian suspirou. Não sabia muito bem como fazer a mãe sair daquele estado. Não estava acostumada a gentilezas. Não era carinhosa por natureza.

À vezes achava que a mãe estava, aos poucos, enlouquecendo, saindo da realidade. Mas às vezes esta fazia declarações de inegável lucidez e sabedoria, apesar de amargas. Marian estava acostumada com aquilo, e já não questionava mais o porque de sua vida ser como era.

Após se alimentar, Marian iniciou as tarefas no campo. A prioridade da manhã era cuidar dos animais de criação, alimentar as galinhas, o único cavalo, de tração para o campo, os porcos. Se atrasou um pouco aquele dia, os eventos da madrugada a dispersavam. Voltou para a casa na hora de preparar o almoço. A vila era composta de várias propriedades pequenas, e a dela ficava no alto de uma colina, com uma visão privilegiada do vale e das outras casas, perto da estrada principal. Foi assim que ouvira as vozes no fim da noite, e acordara. Se perguntou se alguém viria avisá-la do que estava ocorrendo, caso não tivesse acordado. Provavelmente o pastor, um dos poucos com quem podia realmente contar.

Preparou o almoço simples, e comeu em silêncio ao lado da mãe que mantinha o olhar distante. Procurou juntar forças para suportar a assembléia vindoura. Sabia como os camponeses podiam se tornar intratáveis, e provavelmente não iriam gostar de sua intromissão em “assuntos de homens” mais uma vez. Cairiam fulminados se sequer suspeitassem que, no fundo, ela apoiava a rebelião. Pegaria em armas, se pudesse. Talvez não houvesse nascido mesmo para ser mulher.

Chegava a hora da reunião. Marian viu, do terraço, os homens e seus herdeiros se dirigindo para a igreja. Esperou o movimento cessar e foi naquela direção. Entrou por último calculadamente e novamente se sentou no último banco. Notou que desta vez alguns homens se voltavam para trás, como se procurando-a. Pareciam muito incomodados.

Discutiram durante mais de uma hora. Uns queriam partir antes dos soldados chegarem, outros queriam lutar. Havia argumentos dos mais variados. Eram camponeses, não soldados. Com o que lutariam? Foices e garfos, facões? Os que estavam dispostos a lutar expunham anos de mágoa contra os pesados impostos da Coroa e se mostravam furiosos ante a perspectiva de virarem escravos nas minas e fábricas. Os mais prudentes, ou covardes, ressaltavam a inferioridade numérica e de armamento do grupo. Alguns sugeriam aguardar o retorno do estrangeiro e seus aliados. Outros preferiam partir imediatamente levando o que podiam carregar.

E assim foi.  Alguns saíram. Dos representantes das dez famílias que compunham a vila, quatro escolheram partir. Um deles, antes de sair da igreja, se dirigiu a Marian:

- Posso levar você e sua mãe, se quiserem.

Marian se espantou com a oferta. Grata, respondeu:

- Eu tenho que ficar. Tudo que é meu e que conheço está aqui. Mas agradeceria muito se o Senhor pudesse levar a minha mãe para longe daqui.

Ele a olhou de forma estranha.

- Está bem. – Replicou. Avise-a de que partiremos de madrugada. Começarei a aprontar as coisas hoje à noite.

Marian sorriu. – Avisarei. Novamente, muito obrigada.

O homem se retirou e Marian se aproximou do altar, onde os homens que haviam resolvido lutar se reuniam junto ao pastor. Ela agradeceu aos céus o fato de que só haviam ficado os mais liberais, que nada tinham contra ela. Todos os conservadores haviam optado por fugir. Chegou perto e ouviu a conversa. Estavam se perguntando que armas usariam. Já pareciam sem esperanças quando um deles virou-se para o filho mais novo, que teria uns sete anos e disse: - volte para casa e aguarde lá com sua mãe. O garoto partiu velozmente. Depois virou-se para o mais velho e ordenou: - Vá em casa e traga o baú.

O menino, de seus quatorze anos, espantou-se enormemente, mas cumpriu a ordem, retirando-se com um “Sim, Senhor” um pouco trêmulo.  Enquanto ele não retornava, o silêncio tornou a incomodar.

Marian se perguntava como seria lutar com foices e facões e machados domésticos. Não fazia a menor idéia. Na verdade a idéia de lutar a preocupava. Imaginava que cairia morta no primeiro golpe de seus inimigos.

O garoto retornou arrastando um pesado baú em questão de minutos. O pai correu para ajudá-lo. Todos olhavam a peça antiga, forrada.  O pai olhou com tristeza, puxou uma chave do bolso e abriu o cadeado que a trancava.

Quando abriu o baú, todos olharam com admiração para seu interior. Dentro, aninhado como se envolvido em um sono profundo, jazia um conjunto de armas medievais, sobre uma armadura completa. Nas peças, um brasão revelava a origem nobre das armas. Ou seu proprietário pertencia a uma família ilustre ou havia furtado o baú. Não parecia um ladrão. O que teria acontecido?

Marian observou o Senhor retirar as peças uma a uma e distribui-las entre os restantes. Uma arma para ele, outra para seu filho. As outras foram entregues a outros chefes de família. O pastor guardou uma pequena adaga. O clima era tenso. Eles se despediram nervosamente e prometeram que voltariam à noite para ouvir o estrangeiro.

Nisso o mensageiro voltou e sussurrou algo no ouvido do pastor. Este virou-se para o grupo:

- As vilas ao redor irão participar. Muitos já ouviram as notícias e não ficarão imóveis perante a invasão dos soldados.

Neste momento Marian percebeu que a guerra era mesmo inevitável. Já não era mais somente uma vila. Estavam se reunindo.

Os homens saíram, Marian e o pastor conversaram mais um pouco e depois ela voltou para casa. Entrou e se dirigiu à mãe.

- Eu vou arrumar seus pertences. Você partirá amanhã.

- Nós iremos partir? – Perguntou ela.

- Você irá. Eu vou ficar. – Em seus olhos havia dor e tristeza.

A mãe ficou em silêncio.

- É para sua segurança – disse Marian.

Silêncio.

- Não quero ver você morrer. Nem que você me veja morrer. Não assim – disse com a voz angustiada, quase chorando.

Mais silêncio. Marian desistiu de argumentar e começou a arrumar as coisas da mãe, embrulhando em uma sacola seus poucos pertences. Quando estava quase terminando, ouviu as palavras, cheias de amargura, vindas do outro cômodo:

- Como é que eu posso refutar as palavras do homem da casa, não é mesmo?

Aquilo a atingiu com força. Não era para ser assim, não era para estarem se separando, não daquela forma. Por uma das poucas vezes amaldiçoou sua vida e a forma como tinha que ser. Ficou em silêncio durante o resto do tempo que gastou arrumando a bagagem. Depois preparou o jantar, alimentou a mãe e a fez se deitar novamente. Descansou alguns minutos e se preparou para voltar à igreja.

Quando se pôs na estrada o sol já havia desaparecido há muito. Andou sem pressa colina abaixo, vendo já ao longe as tochas acesas e movimentação na construção antiga.

Chegou em frente à igreja e se deparou com uma cena que em outra situação a amedrontaria: O estrangeiro havia voltado, e trazido outros com ele. À esquerda dele se encontrava um grupo de homens altos e corpulentos, que Marian julgou serem homens do norte, ou talvez aquilo que diziam ser os Bárbaros, um grupo de cinco ou seis. Todos eles vestiam túnicas grossas de couro, com alguns adornos e armas complementando o traje. Todos tinham longos cabelos e barbas cerradas. Pareciam ferozes e animalescos, e conversavam entre si em uma língua que a ela mais pareciam rosnados incompreensíveis.

Ao lado do estrangeiro um dos bárbaros se sobressaía. Seu tamanho era espantoso, bem mais alto que o escocês, e seus olhos brilhavam com uma inteligência primitiva. Ao lado dele aguardava um grande cão negro, que ela jurava ser um lobo. Um lobo enorme. Eles conversavam com um outro homem, um cavaleiro numa armadura que a ela era desconhecida. Não parecia como as que já ouvira descritas ou como vira no baú. Este também tinha algo de notável... E o cabelo estava cortado curto, algo que ela raramente vira antes. Ele parecia bem mais civilizado do que todos os outros.

Os três conversavam em língua de rosnados, até que o estrangeiro William notou o olhar curioso de Marian. Cumprimentou-a e fez menção que se aproximasse. Apresentou os dois homens: o mais alto se chamava Hans, e o cavaleiro era conhecido por Augustus. Hans respondeu à saudação com mais um rosnado, enquanto Augustus a cumprimentava polidamente, como se ela fosse uma dama nobre e não apenas uma simples camponesa. O lobo, como lhe foi explicado, pertencia a Hans e se chamava Stone.

William a encarou e perguntou:

- E então, Miss Stanford, irá se juntar a nós? Estaremos partindo hoje para uma das vilas ao sul.

- Me encontrarei com vocês amanhã em torno de meio-dia. Já havia conversado com o reverendo. Tenho que providenciar a partida de minha mãe da cidade.

Ele a olhou com compreensão nos olhos.

- Muito bem. Nos vemos lá amanhã então. – E assim dizendo cumprimentou-a novamente e voltou a conversar com os dois companheiros.

Marian voltou para casa e demorou para dormir.

 

 


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