Dos Diários de Marian Stanford escrita por hgranger


Capítulo 2
Origem - capítulo 1 - Inquietação


Notas iniciais do capítulo

O ano é 1760. A Inglaterra está prestes a fazer uma revolução em prol da burguesia. Os campos estão sendo tomados daqueles que tiram deles seu sustento há séculos...



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INQUIETAÇÃO

 

Marian acordou ouvindo vozes ao longe. Vozes de homens. Isso não era comum, de forma alguma. Não àquela hora da manhã... Noite? Ainda estava escuro. Levantou-se apressada. Olhou para o cômodo onde a mãe dormia, certificando-se de que ela estava ali, e dirigiu-se para o terraço da casa.  Ao longe viu homens se dirigindo para a pequena igreja da vila. Isso realmente não era comum. Decidiu ver o que estava acontecendo. Trocou de roupa, vestindo-se apressadamente, e saiu em direção à igreja. Deviam ser aproximadamente quatro horas da manhã.

Aproximou-se do templo e notou, já de longe, pelo zumbido baixo das conversas entre os homens, que o que estava para ocorrer era algo como as assembléias que costumavam ser realizadas para se decidir algo importante na vila. Nem se recordava de quando havia sido a última. Havia, preso perto da entrada, um magnífico cavalo negro, que bufou quando ela passou ao seu lado. Parou na porta rezando para não a notarem e viu, surpresa, o conselheiro da cidade, junto ao pastor, ao lado de um homem com cabelos castanhos longos, caindo livres pelos ombros, alto e imponente, com uma espada pendendo da cintura.

Ele não parecia inglês, não pôde precisar ao certo sua origem, mas supôs que era um homem do norte, de além das fronteiras. Talvez um homem das ilhas. Entrou furtivamente na igreja e sentou-se no último banco. Notou o olhar do estrangeiro sobre ela por um momento, depois desviou os olhos, ao mesmo tempo em que o conselheiro pedia ordem.

O pastor se adiantou e elevou a voz.

- Meu bom povo! Gostaria de lhes apresentar o bravo senhor William McAlpin, do reino da Escócia. Ele tem algumas palavras a dirigir aos senhores. Espero que ouçam com atenção e reflitam sobre o que ele tem a dizer.

O homem deu um passo à frente, e seus olhos passearam sobre os camponeses ali reunidos. Sua presença os magnetizava, o silêncio era absoluto. Ele então iniciou seu discurso, em um tom de voz controlado, mas inflamante.

Marian observou enquanto o estrangeiro expunha os fatos que estavam ocorrendo ao norte, nas vilas próximas a Londres. Os soldados da Coroa estavam tomando as terras dos camponeses, colocando em prática as leis de cercamento dos campos, e levando o povo para trabalhar nas cidades grandes, principalmente Londres, York e Lancashire. Aqueles que resistiam sofriam com a violência dos soldados e viam suas casas queimadas, seus animais e plantações destruídas. E agora os soldados estavam rumando para o sul. Ele estava ali para buscar aqueles que queriam lutar por suas vidas e bens, pois estava disposto a lutar contra as arbitrariedades da Coroa. Aquele que quisesse se revoltar contra a tirania da Coroa inglesa seria bem-vindo a lutar ao lado dele e dos seus.

Quando ele terminou de falar, houve novamente um silêncio, dessa vez aterrador. Ela percorreu os olhos dos chefes de família ali reunidos. Viu medo em alguns, descrença em outros, mas principalmente aquele medo puro, que se origina da expectativa de ver o seu mundo, ao qual você está tão acostumado, se alterar completamente.

Um dos chefes da vila se ergueu e falou:

- A Coroa sabe o que é melhor para nós! Se ela nos ordena a ir trabalhar nas cidades para a prosperidade do reino é isso que devemos fazer! Não há porque se opor ao progresso da Inglaterra!

Os olhos dos outros se tornaram frios, bem como os do estrangeiro. Marian reconheceu o discursante, pertencente a uma das famílias mais tradicionalistas da região. O estrangeiro rebateu:

- Vocês serão arrebanhados como gado e usados igualmente, morrerão em meio à sujeira de Londres ou outro lugar qualquer. Suas terras ficarão nas mãos da nobreza, para sempre estéreis. Suas famílias, suas mulheres e filhos serão explorados para trabalhar nas máquinas e morrerão de doença. É isso que a Coroa ordena. Vai se submeter a isso? - Ele perguntou num tom quase curioso.

Subitamente ele havia perdido a frieza, suas palavras eram quentes e firmes. Ele mostrava claramente sua crença, e ela percebia que os outros estavam seduzidos por seu discurso.

- Sim, irei - respondeu o homem, relutante. E irei neste exato momento. Vocês morrerão se ficarem e lutarem.

Assim dizendo puxou seus filhos pelos ombros e deu as costas para o altar onde o estrangeiro se colocara. Enquanto saía da igreja sentia o olhar de todos sobre ele. Dirigiu um olhar de desprezo a Marian enquanto se retirava. Ela se encolheu perante o olhar duro. Ouviu novamente o estrangeiro:

- Eu não espero uma resposta de vocês agora. Dar-lhes-ei um tempo para decidir o que irão fazer. Retornarei amanhã no início da noite e quero uma resposta. Vocês têm um dia para decidir. Ficar e morrer de indignidade nas mãos da Coroa ou lutar por suas vidas.

Novamente o silêncio.

Marian viu o magnetismo que exalava dele se intensificar, ganhar vida. O estrangeiro desceu do altar e atravessou o corredor que levava à porta. Todos os olhares estavam fixos nele. Ele parecia ainda mais imponente do que antes. Ao passar por Marian lhe dirigiu outro olhar. Acostumada a sustentar os olhares dos homens da vila, ela o encarou por algum tempo, mas o peso da aura que ele emanava a fez baixar a cabeça, respeitosamente. Sem mais palavras, ele saiu da igreja e só o que se ouviu foram os passos do cavalo, que logo se pôs em galope, cada vez mais distantes, até cessarem.

Marian ouviu a voz do pastor:

- Bem, meus bons senhores. Creio que devemos nos reunir para decidir qual será nossa postura perante os fatos. Haverá uma nova reunião à tarde, duas horas após o meio-dia. Espero que todos os senhores compareçam. Enviarei agora um mensageiro até as vilas próximas, para sabermos se teremos ou não apoio nesta empreitada.

Assim dizendo, olhou para um jovem sentado em um canto e o mesmo saiu em disparada pelos fundos. Logo se ouviram também passos de cavalo.

Após isso, um a um os chefes de família se levantaram e deixaram a igreja. Passavam por Marian e finalmente notavam sua presença. Alguns olhavam com desprezo, como sempre; outros a cumprimentavam silenciosamente com a cabeça. Ela podia ler o medo em seus gestos. Em todos eles.

Quando todos saíram ela se dirigiu ao altar.

- Bom dia, reverendo.

- Bom dia, querida filha.

- Bem, vejo que temos novidades.

- Sim. Se for verdade o que disse o estrangeiro, em breve haverá guerra no sul. Infelizmente muitos não irão resistir e se entregarão à Coroa.

- Eles são tolos, reverendo. Não vêem o que lhes irá acontecer se não lutarem pelo que lhes pertence.

O pastor a olhou com ternura. De certa forma a admirava e achava que ela tinha mais coragem do que muitos homens daquela vila. A ajudava sempre que podia. Mas era difícil vencer os preconceitos da época, e não podia estar a seu lado o tempo todo. Marian Stanford era órfã – seu pai morrera de doença há alguns anos, e sua mãe não se casara novamente. Assim, coube a Marian o sustento da mãe e o trabalho no campo, algo que, naquela região, era considerado um insulto aos homens.

Ela também não se casara, apesar da insistência das senhoras da vila em lhe arrumar um marido a quem obedecer. Marian se recusou a viver de favor sob a guarda de um dos chefes de família, e era visto como uma espécie de proscrita devido a essa atitude. Alguns a respeitavam por sua ousadia, mas os mais tradicionalistas a desprezavam profundamente.

- Marian, Marian... Vá para casa e cuide de suas obrigações e de sua mãe. Esteja aqui no horário da reunião. Que a paz de Deus esteja com você.

- Obrigada, reverendo.

Marian o saudou e deixou a igreja. O dia nascia, era hora de voltar a seus afazeres.

 


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