Always Attract escrita por Lena Portela


Capítulo 11
E se ainda houver barreiras... elas serão derrubadas




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Capítulo VII

E se ainda houver barreiras... elas serão derrubadas



Estar perto dela era como se equilibrar em um mundo inclinado, tentando manter-se firme enquanto o chão queria jogá-lo para frente, lançá-lo em uma espiral de qual não havia retorno, somente impacto, e era um impacto desejado, uma colisão doce e atraente.”

Feita de Fumaça e Osso, Laini Taylor.

Minha atenção desviou-se uma segunda vez da conversa que estava se desenrolando entre Lilian, Alexandro e eu; havia algo de errado com Kaio e eu estava muito surpresa por isso não está obvio para todo mundo ver. Ignorei parcialmente a voz de meus amigos e observei enquanto Kaio jogava a cabeça para trás e ria, o som de um tom profundamente atrativo, mas falso. Assim como os olhos falsamente tranquilos e a forma como ele fingia estar a vontade com as costas de Dafne inteiramente recostada em seu peito.

Pisquei uma vez e tudo pareceu apenas coisa da minha imaginação. Será que eu estava mentindo para mim mesma ou minha intuição sobre Kaio era verdadeira?

Diabos, como eu odiava não saber com certeza!

— Vocês não acham que há alguma coisa errada com Kaio? – interrompi o assunto (as provas de Manifestação e Expressão Humana (um nome legal para Artes) que, segundo os boatos, era uma das mais difíceis de todo o semestre) em que Alexandro e Lilian estavam envolvidos, meus olhos ainda presos no grupinho dos populares sentados na área mais chamativa do pátio principal do Lemoine.

Alexandro levantou uma sobrancelha loura. — Além do fato de ele está se esfregando na minha irmã? – questionou enquanto Lilian dava uma risadinha.

Encolhi-me com o tom sarcástico das palavras dele. Homem, eu sabia que Kaio não era um modelo exemplar como o irmão de Dafne e, ainda assim, era duro ouvir essas coisas. — Eles são amigos...? – minhas palavras soaram como uma pergunta até aos meus ouvidos. Eles são amigos, afirmei para mim mesma em um tom duro.

Não são?

Percebendo minha perturbação, Alexandro rodeou minha cintura com um de seus braços e me trouxe diretamente para dentro de um abraço, meio desajeitado, de lado. Sorri quase sem querer quando ele me fez um pouco de cócegas – Porque você está prestando atenção nele quando me tem aqui todo para você? – piscou um dos olhos que, hoje, estavam muito claros, de modo brincalhão.

— Não sei como pude ignorar.

Sorriu. — Sou irresistível.

Ajeitei uma mecha fina de seu cabelo dourado que teimosamente fugia dos fios cuidadosamente alinhados no amontoado brilhante acima de seu rosto. Honestamente, o cabelo dele era como “sexy” elevado à milésima potência. Eu tinha vontade de bagunçá-lo todo, desalinhá-lo, mas aquele visual todo “certinho” servia muito bem a ele. — Não consigo manter minhas mãos longe.

Um sorriso lento se desenhou em seus lábios e, involuntariamente, o imitei. Não durou muito, porém: estávamos gargalhando tanto depois desse momento embaraçoso que metade das pessoas no pátio ergueram suas cabeças para nos lançar um olhar.

— Ok, - eu disse tentando recuperar o ar. Qualquer que fosse o problema com Kaio já estava fora dos meus pensamentos – vamos enfrentar Química III agora.

Rindo, Alexandro deu de ombros, logo depois estendeu um braço para mim e outro para Lilian, que o segurou depois de uma mesura. Eu preferi não chamar mais atenção para mim mesma do que já tinha chamado e apenas tomei seu braço tranquilamente.

— Química não é tão ruim assim, – ele disse enquanto caminhávamos para fora do pátio.

Lilian riu. — Isso é porque você é nerd.

— O Super-Nerd – eu zombei.

Alexandro respirou fundo e estufou o peito, de brincadeira. - Eu sou mais como o Super-Gostosão ou Sexyman.

Enquanto ríamos chamando a atenção novamente, senti que mais do que os olhos normais dos meus colegas me seguiam, sabia quem me encarava porque havia aquele calor inconfundível que parecia ser tingindo por âmbar ou amadeirado cor de uísque. Não resisti a uma olhada para trás e confirmei minhas suspeitas. De acordo com que íamos desaparecendo do pátio, suas pilastras monstruosas e as caras curiosas de meus colegas iam ficando no passado, os olhos de Kaio iam ficando mais incisivos. Não em mim realmente, ou em meus olhos que o encaravam e ele não parecia notar, mas nas minhas mãos segurando suavemente o braço de Alexandro.

Por fim, Kaio resolveu me encarar; seus olhos pareciam sussurrar porque está fazendo isso comigo?

Abri a boca, como se tivesse algo a dizer, mas então a mão de Dafne escorregou através do queixo de Kaio, trazendo seu rosto para a altura dos olhos dela e suas bocas para perto demais. Desviei o olhar.

Perguntei-me, pela milionésima vez, o que eu realmente conhecia de Kaio, além das coisas que ele parecia ser, fazer ou dizer.

Afinal era o sábado de uma semana cheia de provas, entrega de trabalhos e comportamentos estranhos de amigos e garotas louras com olhos de gelo. Além dos meus pensamentos e pequenas observações obsessivas – que eram enfaticamente desconversadas por Kaio – havia a expectativa para a noite de covers que acontecia na praia de Índigo todos os anos e tinha o patrocínio do Lemoine, por isso a maioria do pessoal da escola estaria lá. Basicamente era um batalha entre as bandas locais e uma forma de arrecadar fundos para a festa de formatura; o pessoal escolhia uma banda famosa para fazer cover, e o melhor sempre ganhava algo legal como guitarras, baterias ou até mesmo um show todo patrocinado pela escola, era sempre algo diferente.

O que havia de tão excitante sobre isso? Além da música boa, bem, também havia a Asleep. A banda misteriosa que tinha prometido uma vitória sobre os vencedores das duas últimas batalhas, uma banda chamada Jukebox, que sempre fazia um cover espetacular do The Kooks. A Jukebox tinha o apoio da maioria, é claro, mas os novatos estavam anunciando por ai um cover inesquecível dos Strokes. Ah, qual é. Nós todos estávamos em expectativa porque, afinal, ainda era Strokes, e porque ninguém – além, obviamente, da produção do evento. O que não contava – sabia de quem se tratavam as pessoas que compunham a Asleep. No cartaz de apresentação os caras usavam máscaras, como se eles fossem o Slipknot suburbano ou algo parecido. O super clichê das bandas de rock – vejam só o Kiss e tooooda aquela pintura facial -, mas meio que funcionou para atiçar a curiosidade. Agora todos estavam ansiosos para o evento e, com toda certeza, iria ter gente demais já que, no dia seguinte, era Halloween e isso significava mais festa cheia de gente.

É claro que estavam tentando me fazer ir a noite de covers. No entanto, meu humor estava mais para chocolate quente, romances com caras fofos sem camisa e finais felizes. Nada muito ostensivo como um show de rock e gente louca em máscaras de baile.

Só que parecia que isso não fazia a maior diferença para Kaio.

Eu estava sozinha em casa porque mamãe tinha um projeto importante para terminar e Douglas estava fazendo pesquisa de campo e só voltaria um pouco depois das sete. Normalmente, Kaio não podia fazer visitinhas porque, bem... porque ninguém aqui em casa era muito fã do cara. Principalmente Douglas. Minha mãe não tinha muito opinião própria no momento.

Tentei me concentrar na tarefa de arrumar meu closet, organizando as roupas limpas em cabides coloridos de cores sóbrias, mas meus olhos sempre eram atraídos por um piscar daqueles olhos ou o expirar de seu nariz bem desenhado. Kaio estava despreocupadamente deitado em minha cama, as mãos atrás da cabeça, um pouco dos vincos gêmeos de sua barriga à amostra quando ele fazia qualquer movimento e sua camisa subia um pouco demais. Os olhos estavam fechados, a expressão tão serena que me perguntei se ele estava cochilando.

— Kaio? – eu chamei baixinho.

— Hmm – abriu os olhos. Esverdeados na luz clara que atravessava os vidros de minha janela e tão menos perturbados do que eu estava acostumada a ver por esses dias. Enquanto ele esperava pelo que eu tinha a dizer, o silêncio suspendeu um questionamento e uma respiração nossa. Nossos olhos se encontraram e, de uma vez só, estávamos nos encarando. Pensei que minhas dúvidas viram à tona, que minhas acusações borbulhariam para fora de minhas pálpebras, molhando meus cílios, escorrendo por meus olhos. Ao invés disso, só havia sentimento e essência, a emoção que enchia as nossas pupilas, que suspirava por minha boca. Soltei uma respiração entrecortada e senti meus pés caminhando pelo chão. Ele se levantou em uma posição sentada – as pernas abertas, seus pés pousados no tapete próximo ao colchão – nunca me poupando de seus olhos, de seu calor, de suas emoções. De alguma forma, eu tinha seu rosto no meio de minhas mãos espalmadas, suas mãos em minha cintura – um aperto forte, de dedos cravados em minha carne – e meu corpo no meio de suas pernas.

– Qual era o seu problema no outro dia? – eu sussurrei.

Ele suspirou; um som doloroso demais – Minha mãe morreu em um dia como aquele.

As pontas dos meus dedos passearam por seu rosto, prescrutando por sua dor, tentando absorvê-la através de minhas digitais. — Sinto muito. - eu disse, sincera. – Se eu pudesse...

— Eu sei – Kaio virou o rosto para que seus lábios pousassem na palma de minha mão. Pensei em roubar aquele toque fugaz. Trancá-lo dentro do meu punho e à noite, quando todos estivessem em seus sonhos, silenciosamente fazendo suas preces por aquilo que desejam, eu derramaria seu beijo em meu coração e não teria que sonhar ou pedir aos céus por nada mais. — Você faz melhorar.

Sai de meus pensamentos ferozes, um tanto surpresa – Faço?

Kaio me lançou um olhar, por baixo de seus cílios. — Sempre tão perdida dentro de seus pensamentos, suas histórias. Sempre tão sonhadora... - deu de ombros – sei que não posso te seguir, mas cada vez que me perco, encontro um pouco de mim mesmo em você.

Aproximo-me um pouco mais, encarando seu rosto muito perto, descansando minha testa na sua. — Isso é loucura.

— Eu sei, - move os lábios em um sussurro quase inaudível.- mas eu não posso evitar: a loucura é tudo que preenche meus sonhos. A loucura é o que me faz sentir vivo, como nada sã e normal faz.

Respiro o ar que compartilhávamos, tentando não me aproximar demais e roçar acidentalmente meus lábios nos seus. Seus olhos queimam. Bom Deus, eles me queimam, como o calor do sol ou o fogo nunca faria; pois nestas chamas eu me jogaria livre e espontaneamente, com um sorriso em meus lábios. Gosto de como queima.

— De que são feitos esses seus sonhos loucos? – pergunto sem fôlego e nem um pouco envergonhada. Com Kaio não há barreiras ou constrangimento ou lembranças do mundo. Só há eu, ele e um monte de emoções preenchendo o ar. Suas mãos em minha cintura me apertam, puxando-me até que eu estou quase sentada em seu colo. Seus lábios pousam em meu queixo, os dentes saindo por um segundo, mordendo-me apenas um pouco e logo ele está respondendo a maldita questão.

— Desejos. – Kaio responde roucamente. — Atualmente eu tenho perdido o sono desejando, desejando, desejando... não estar assim tão quebrado, que não fosse tão impossível. Desejando ser tudo o que alguém precisa. Desejando ser desejado. Desejando algo que não posso ter.

Ao som de sua voz rouca, alimentada por seus olhos febris e sua boca voraz, minhas mãos rastejam por seu rosto, seguram seus cabelos macios, sedosos, em punho apertado. Minha boca sopra um pouco de meu fôlego e os olhos de Kaio se fecham automaticamente, suas sobrancelhas franzidas como se ele estivesse sentindo algo doloroso. — E quem disse que você não pode ter?

...

Já estávamos bem próximos à Índigo e eu ainda continuava me perguntando como fui parar em um carro com Kaíque quando já tinha me prometido algum tempo atrás que manteria minha distância do irmão mais velho de Kaio. Talvez o motivo fosse a garota ruiva sorridente sentada no banco da frente, ou talvez fosse o fato de que eu estava evitando ter de precisar da ajuda de Douglas desde as férias passadas.

Qualquer que fosse o motivo, tinha colocado Kaíque, Lilian e eu juntos no caminho de Índigo. Não podia reclamar da vista, ao menos. Tirava o fôlego. A beleza daquele lugar estava em cada partícula, cada cor e pequeno pedaço; até mesmo nas rochas monstruosas que assustavam a qualquer um – uma mistura de cores e de tons que dificilmente seriam associados às rochas, como os azuis e os verdes vivos. Ou as ondas furiosas que ameaçavam nos alcançar. Respirar era mais fácil ali e, ao mesmo tempo, mais difícil porque, com todo aquele clima tropical da costa, o ar estava carregado de umidade, e ela penetrava-nos os poros e pesava em nossos narizes. Fazendo com que cada respiração fosse uma mistura entre os novos cheiros, vento fresco e o ar pesado.

Assim que o carro parou no estacionamento do lugar que estava sediando a noite de covers, já dava para ouvir a Jukebox animando o pessoal que não tinha se atrasado – diferente da gente. Suspirei pousando meus pés protegidos apenas pela rasteirinha fina que eu usava. Hoje, prevendo o clima tropical, eu tinha escolhido um vestido longo de tecido leve, florido em vermelho claro e branco. Um acessório charmoso que imitava uma coroa de flores vermelhas mantinha meus cachos soltos e selvagens longe de meu rosto, e dava-me um ar de quem pertencia ao clima praiano. Tinha sido um presente de Alexandro para essa noite e embora Kaio tivesse feito a ideia da noite de covers soar tentadora, foi o garoto de cabelos solares que me convencera a vir.

— Me atrevo a dizer que o mistério em seu vestido longo e as flores em seu cabelo caem muito melhor a você do que a saias curtas e maquiagens pesadas. - disse-me a voz contida de Kaíque ao pé do ouvido. Ele respirou suavemente em meu pescoço uma vez e inclinou-se um pouco para o lado (talvez para abrir a porta para Lilian?). — Não que eu seja contrário a certas exibições de um pouco de pele... ou muita exibição de um pouco de pele...

Continuei de costas para ele e respondi coisa alguma a sua provocação. Kaio tinha me contado um pouco sobre o irmão, incluindo a sua tendência a brincar com as pessoas como se elas fossem seus gatinhos. Sempre soube que alguma coisa na beleza excessiva de Kaíque era boa demais sem um pacote de malicia para contrastar. Não que ele tivesse tentado algo comigo mais do que ofensas veladas ou galanteios ocasionais – como se ele não soubesse que partido tomar quando estava lidando comigo. Se era melhor ser agressivo ou charmoso. Acredito que, por estar em dúvida, decidiu seguir os dois caminhos.

Honestamente, com o histórico da família dos garotos, já era de se esperar que algo assim acontecesse. Não que as tragédias que permeavam a vida dos garotos Skyker fosse uma desculpa para qualquer que fossem seus erros ou seus vícios; entretanto, era inegável que se tornava mais fácil compreendê-los depois de conhecer o passado da família.

— Parece que você já foi avisada sobre mim, hã? – ele murmurou enquanto Lilian tentava tirar alguma coisa da bolsa que ela “esqueceria” no carro de Kaíque. Embora estivesse claro (ao menos para mim) que essa era uma técnica para tentar ficar sozinha com ele em algum momento – quando ela convenientemente se “lembraria” que esqueceu bolsa no carro dele, - ou para vê-lo novamente, fazendo a coisa de esquecer, só que dessa vez tentando fazê-lo ir levar a bolsa para ela no outro dia. Kaíque ainda segurava a porta do carro aberta e eu me perguntei se Lilian não conseguia ouvir nossa conversa. Só que eu sabia que não. Talvez isso lhe colocasse alguma prudência na mente e ela enxergasse que Kaíque não valia o esforço.

Ela não tinha me dado ouvidos quando tentei avisá-la sobre o que Kaio me dissera. Lançou-me um olhar de soslaio e me perguntou o que havia de tão diferente entre Kaíque e Kaio, afinal. Se ambos eram frutos de traumas e relações problemáticas, o que fazia Kaio melhor do Kaíque? Eu não tive resposta para aquilo – ainda não tinha – e aposto que continuaria a não tê-la por um bom tempo. Foi assim que Lilian se convencera de que estava apaixonada por Kaíque e que eu, como um obstáculo que era, só estava um pouco invejosa pela atenção que Kaíque concedia a ela.

Quem me dera fosse só isso.

Não que Lilian não fosse digna do interesse repentino de Kaíque. Homem, ela era linda. Como atrizes de cinema antigo. Pequena, ruiva, curvilínea e de olhos claros e brilhantes. Os cílios cor de morango lhe davam um ar inocente e as sardas pontinhando a pele de suas bochechas e nariz só a faziam mais e mais charmosa. Só que agora que sabia que Kaíque não tinha nenhuma intenção de valorizar qualquer sentimento que minha melhor amiga viesse a ter por ele, isso fazia com que o fato de Lilian ser tão adorável só tornasse tudo pior porque o bastardo iria se divertir um bocado durante o percurso – qualquer que fosse – que eles tomassem.

— Fique longe de Lilian, Kaíque – murmurei, logo lançando um olhar raivoso por cima de meu ombro para o irmão de Kaio, que parecia extremamente satisfeito em conseguir alguma reação da minha parte. Seu sorriso era um insulto a minha capacidade de pensar sozinha.

Ele deu de ombros. — Eu gosto dela. Tão doce... muito menos desconfiada do que você.

Irritei-me. — Você só quer brincar com ela, seu cafajeste!

— Oh, claro, - com o verde intenso dos olhos de Kaíque me impelindo a refletir com ele, eu conseguia ver pontos de sinceridade em sua voz, nas linhas de seu rosto, na forma como seus olhos se cerraram. Ele parecia se importar. - isso tudo porque meu irmão te contou algumas histórias...

— Que eram absolutamente verdadeiras. – Interrompi, virando-me para ele de uma vez. Meus braços se cruzaram, minha postura se tornou defensiva.

Ele suspirou, desistindo do que quer que fosse dizer antes. — Olhe, - disse fazendo uma pausa até que eu estivesse encarando-o nos olhos. Pareceu satisfeito depois disso. - eu era jovem e imbecil e cheio de dor. E, ao contrário de Kaio, eu nunca tive toda a atenção para mim mesmo. Ninguém nunca se preocupou em me pagar um terapeuta ou me contar histórias para dormir. Já tinha idade o suficiente, já era velho demais. Eu tive de enfrentar meu medo do escuro sozinho, ficar amigo dos monstros debaixo da minha cama porque, afinal, minha mãe tinha morrido, não tinha? — Soltou o ar pelos lábios abertos como se lhe causasse dor admitir isso. — Eu sei que eu tive mais tempo com ela e eu sei que ele me culpa, mas...

Suzy? – uma nova voz masculina interrompeu o fluxo das confidencias de Kaíque. Não tive de me virar na direção da voz para saber que era Alexandro. Seu tom macio, alegre e jovial eram o suficiente. Ainda olhando nos olhos verdes de Kaíque, tentei pedir que ele continuasse com o que vinha depois do “mas”. Ele balançou a cabeça e mordeu os lábios, olhou para seus próprios pés e depois me encarou uma vez mais.

– … eu já me culpo o suficiente por nós dois.

Não estendemos a conversa. Alexandro logo me alcançou, percebendo o clima tenso, mas decidindo não questionar nada. Deixei que ele segurasse minha mão, que me guiasse pelo caminho, embora tenha lançado um último olhar para Kaíque, que não me encarava. Parecia perdido em seus pensamentos, o franzido em suas sobrancelhas me fez questionar-me se ele realmente queria ter me contado sobre aquele detalhe ou se fora uma confissão por puro impulso. E quando Lilian finalmente resolveu sair do carro, ele sorriu. Um sorriso singelo; sem charme, sem intenção.

A Jukebox terminou sua apresentação com Naive, as pessoas que lotavam o espaço reservado para a noite fizeram um coro de gritos apreciativos e logo todos estavam cantando junto com a banda. Não via como a Asleep poderia bater isso. A energia selvagem com a qual os caras alimentavam a multidão estava correndo solta, suada e satisfeita ao fim da apresentação e, assim como eu, muitas outras pessoas estavam convencidas de que a Jukebox reinaria como sempre o fez.

Eu ainda não tinha visto Kaio em lugar algum.

— Eles são bons, - disse Alexandro, sua voz alta para vencer o barulho. Eu tinha conseguido um lugar entre o primeiro e o terceiro andar do lugar onde o show acontecia e passara a maior parte do que restara da apresentação encostada à grade de proteção, com Alexandro às minhas costas, os braços segurando as barras da grade e me protegendo da multidão.

— Duvido que a Asleep tenha chance, - falei alto.

Ouvi o riso divertido de Alexandro atrás de mim. — Não sei não, hein. Os caras parecem bons.

Dei de ombros. — Talvez eles são tenham um bom designer para esses cartazes misteriosos.

Alexandro gargalhou. Ele se afastou repentinamente e eu não sentia mais o calor do seu corpo próximo ao meu e, instantaneamente, eu senti os empurrões das pessoas meio bêbadas e felizes demais ao meu redor. Franzi as sobrancelhas. Como Alexandro conseguira aguentar aquilo por tanto tempo?

Virei o pescoço para olhar para ele, ainda mantendo minhas mãos firmes na grade de proteção. Só por precaução. — O que foi?

Alexandro correu as mãos pelo cabelo sempre impecável. Nas luzes baixas do lugar, os fios dourados pareciam quase metálicos, os olhos verdes e azuis de uma textura granulada. Senti um arrepio na espinha. Os olhos de Alexandro as vezes eram estranhos demais. Bonitos demais. Ele se vestia casualmente; camisa leve, azul. de manga comprida, calças jeans escuras e tênis brancos. Ainda assim, chamava atenção como uma banda em marcha.

— Preciso ir ao banheiro.

Assenti brevemente. — Se você se perder, me ligue – eu disse.

Ele sorriu. Os dentes brancos brilhando na escuridão. — Eu não me perderei. – Inclinou-se para me beijar na bochecha. Um contato mais longo do que estávamos acostumados a ter. Percebi a maciez de seus lábios, a pele impecavelmente barbeada do queixo e o cheiro de seu perfume. Percebi um arrastar a mais de sua boca, uma pressão a mais em seus lábios. Meu rosto esquentou e eu poderia ter perguntado qualquer coisa sobre isso, se ele também sentiu a estranheza, mas ele tinha ido embora antes mesmo que eu tivesse a chance de abrir a boca.

Dez minutos e muitos empurrões depois, a Asleep subiu ao palco.

Contive a vontade de dar risada da impossibilidade da situação; os garotos estavam realmente impossíveis de serem reconhecidos. Trajados com máscaras de baile, uma variedade entre ternos, coletes, smokings e chapéus elegantes, eles pareciam mais prontos para uma festa de gala do que para um show de rock. Bem, exceto o que parecia ser o vocalista, que vestia uma camisa escura e um colete de seda brilhante. No lugar dos sapatos caros que dois deles calçavam, ele usava um coturno. Não é como se todos eles estivessem usando o pacote completo. Depois de uma olhada mais cuidadosa sobre eles podia-se perceber a aleatoriedade de elementos do vestuário de bandas de rock; allstars, bandanas, camisas de banda debaixo do terno e até uma jaqueta de couro. Entretanto, todos os componentes usavam máscaras de baile, uma de cada cor e modelo, mas ainda não dava para reconhecer qualquer um deles.

Por algum motivo, quem apresentou a banda foi o baterista, não o vocalista (o que me fez pensar se ele não seria muito conhecido para que, se falasse, as pessoas reconhecessem). Para ser sincera, a voz do vocalista só foi ouvida quando os acordes de You Only Live Once ganharam forma. A voz do homem com a máscara negra de aparência acetinada era um pouco menos rouca que a voz do Casablancas, por isso os tons eram mais suaves e agradáveis, embora ele ainda seguisse a linha original. Era um ótimo cover.

Não demorou muito para que a Asleep conseguisse conquistar até aos mais céticos dos participantes da noite de covers. Depois de mais cinco músicas escolhidas a dedo – Last Nite, Someday, Hard to Explain, Reptilia e Under Cover Of The Darkness (esta que foi performada de modo espetacular) – a Asleep terminou o show com uma sinfonia de gritos e aplausos. Os meninos vestiam sorrisos sedutores em seus rostos e suas mãos cansadas passavam ligeiramente pelas peles de jovens admiradores. Os olhos, parcialmente ocultos, carregavam mil sussurros e segredos, e a promessa de um regresso não mais oculto pela capa da originalidade das bandas que eles performavam, porque o talento transbordava pelas bordas das músicas cantadas, tornando-os mais reais e verdadeiros.

Sem máscaras.

Depois de quebrado o encanto da música boa e do ambiente carregado de excitação, comecei a me preocupar pelo fato de que Alexandro não estava de volta. As pessoas estavam dispersando já que a banda já tinha ido embora com o prêmio da noite e uma legião de admiradores. Assim era mais fácil transitar pelas escadas e salões que era aquele grande espaço reservado para os eventos. Tentei encontrar um pouco do cabelo louro ou as costas cobertas por tecido azul por onde eu passava, mas não estava tendo muita sorte.

No andar de baixo, onde ficavam a maioria dos banheiros, ainda havia pessoas transitando. Segui pelo caminho de pedras que eu sabia levar até uma área de onde dava para ver a parte baixa da costa e suas monstruosas pedras. Estava silencioso, entretanto ocasionais sons de riso vinham da praia, um pouco ao longe dali. Olhei para o meu celular pela décima terceira vez. Nenhuma mensagem ou ligação.

Onde Alexandro estava?

É interessante como depois da separação dos meus pais, da fase rebelde do meu irmão e da presença constante de Kaio em minha vida – trazendo consigo sentimentos dos quais eu queria distância -, me tornara sensível demais para o que acontecia ao meu redor. Nunca admiti que odiava a solidão, mas a notava sempre nas luzes apagadas de casa quando eu chegava, nos soluços da minha mãe – menos frequentes do que no começo -, no rosto duro do meu irmão. Nunca admiti que ser observada me assustava, só que eu vivia fugindo de pessoas interessadas e conversinhas inquietantes. Nunca admiti que estava apaixonada por Kaio, no entanto, os lábios dele foram os únicos que eu beijei.

Embora sempre soubesse conscientemente do que me fazia mal e, na maior parte dos casos, conseguisse evitá-lo antes que me consumisse e me fizesse perder quem eu era, nunca consegui manter Kaio verdadeiramente longe de mim. Ele estava sempre presente de alguma forma, derrubando minhas barreiras, seja por sua história triste ou pela ternura de seu sorriso de sol. Não importava o quanto dissesse a mim mesma que eu me importava tanto assim com ele porque, afinal, ele sabia coisas sobre mim que ninguém mais sabia. Kaio me conhecia, dentro e fora, partes quebradas e inteiras, segredos, verdades e anseios. Kaio me entendia.

Ele era meu melhor amigo, ele sabia disso.

Por isso não vou dizer que a forma como ele prendeu meu coração em suas mãos não foi intencional. Ele me tornava sensível, frágil, sem nenhuma barreira para me ocultar. Ele me via tal e exatamente como eu era.

Encurtar os passos que nos mantinha longe naquele lounge vazio nunca passou pela minha cabeça. Escondi-me dele e, pela primeira vez desde que o conheci, ele não notou a minha presença. Pude ver a forma como ele sorriu para a senhorita de gelo, Dafne. Um sorriso afiado, diferente de qualquer um que eu já tenha visto ele esboçar..

— O que há entre você e Suzanna? – a pergunta foi dela.

— Ela é uma amiga, - ele disse, dando de ombros.

Dafne riu desdenhosa. — Não. Ela é mais.

— Não importa.

Dafne franziu as sobrancelhas louras como as do irmão; as dela eram bem-feitas, finas, delicadas. Como todo o seu corpo. — Você está apaixonado por ela. – Fez-se silêncio depois dessa afirmação a qual ele, surpreendentemente, não negou. Me sentia estupefata, o coração dando pulos de excitação e medo. Deus, parecia que eu sabia exatamente o que estava por vir. — Você tem sentimentos por ela...

— Sim, eu tenho. Não estou negado. Mas, como eu disse: não importa. – Kaio disse, interrompendo Dafne.

A irmã de Alexandro parecia tão confusa quanto eu me sentia, só que, no caso dela, a confusão estampada em seu rosto parecia extremamente adorável. — Você é apaixonado por ela, Kaio. - repetiu, como se quisesse reiterar. Como se ele já não tivesse ouvido da primeira vez. E admitido. — Normalmente isso é sinônimo de fidelidade e compromisso eterno e essas coisas altamente diabéticas.

Kaio fechou os olhos, um momento depois um riso seco escapou-lhe os lábios. Ele estava encarando os olhos de Dafne quando falou novamente. — Você não entende isso, Dafne? Eu já passei por isso! – ele disse entredentes. — Eu já vi isso um milhão de vezes. A queda, a doçura e toda a dor que vem junto. – As mãos dele seguraram mechas dos cabelos, sua aparência de alguém louco ou desesperado. Ou ambos. — Eu pensava que poderia fazer isso. Sobretudo quando percebi que estava me apaixonando. Pensei que poderia ser normal novamente, inteiro. Com ela, eu pensei que podia. Comecei a sonhar com isso. A desejar isso. – Piscou. - Foi quando eu me lembrei: eu não sou normal. Eu não estou inteiro.

— Kaio. – A voz de Dafne era frágil, ela estava lamentando.

— Ela queimou todas as minhas pontes, penetrou em minha pele, me fez sentir novamente como nenhuma outra coisa me fez sentir. – Suspirou saudoso, os olhos perdidos em algum ponto onde eu não poderia segui-lo. Minhas mãos apertavam tanto o canto da parede, que me escondia parcialmente da visão deles, que meus dedos doeram. — Só que ela me machucou com a mesma intensidade. Me fez sentir ciúmes e raiva e tristeza. E eu não quero isso. Eu não quero arriscar uma queda. Não vou me enviar voluntariamente para a porra de um abismo ou uma corda ao redor do meu maldito pescoço. Ela não vale a pena. Ela não vale o preço de mais uma cicatriz, de mais uma ferida.

Ela não vale a pena.

Todo mundo diz que há uma primeira vez para tudo; quedas, beijos, sexo, notas ruins, brigas... E talvez as pessoas achem que essas pequenas experiências são a essência da vida. Só que eu particularmente acho que elas nunca pensam nas coisas verdadeiramente ruins que você pode experimentar pela primeira vez. Como a perda de um ente querido, como a separação, a luta infinita ou ter seu coração despedaçado. É desorientador e é revoltante. Te faz sentir morto embora você esteja vivo. Pequenas experiências dolorosas, você já pensou nelas? Eu já. Estava esperando há muito tempo porque já sabia. Honestamente, vi isso em meu futuro. Em meu futuro com Kaio.

Não importa o quanto eu tenha previsto e esperado, doeu em um tipo intensidade totalmente inesperada.

Na solidão de meu esconderijo, nunca pensei que encontraria qualquer conforto porque eu era culpada disso tanto quanto Kaio tinha me matado por dentro. Só que é verdade que quando você deixa as máscaras caírem, suas barreiras desmoronarem, suas pontes queimarem, há a certeza que o inimigo vai invadi-lo e destruí-lo. Embora se você tiver amigos fieis, eles verão por trás da farsa e te ajudarão a levantar.

Ele me percebeu na escuridão, escondida, chorando silenciosamente. Segurou uma de minhas mãos e caminhou comigo, seus braços me protegendo de qualquer tipo de frio, seus passos firmes me dando uma direção. Não percebi muita coisa além de ocasionais toques hesitantes de suas mãos – como se tentando se convencer de que eu estava bem. Alexandro me trouxe de volta em segurança. O tempo passou e me machucou, mas a noite terminou com um abraço de um amigo, sua voz em meus ouvidos entoando um “vai ficar tudo bem”.

Eu não duvidei dele nem por um segundo.


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