Conversando Com Os Anjos escrita por glassmotion


Capítulo 7
Capítulo 7




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Capítulo sete

“I’m not living, I’m just killing time

Your tiny hands, your crazy kitten smile...

Just don’t leave... don’t leave...

And true love waits, in haunted attics

And true love lives, on lollipops and crisps…

Just don’t leave... don’t leave...”

[True Love Waits - Radiohead]

~~

            Bert veio tomar café com Gerard.

            Bert é um bom amigo. Ele esteve ali todo o tempo. Ele ajudou, ele se dispôs, ele ofereceu um ombro e um punho. O que Gerard precisasse, Bert estaria ali para fazer. Ajudá-lo com a mochila, amarrar os cadarços de poliéster barato, inventar apelidos ridículos saídos de contos de fada para fazer Gerard rir e esquecer, mesmo que por uma fração de segundo, que ele estava vivendo um pesadelo.

            Bert estava preocupado com Gerard. Não só com a maneira como ele negligenciava o próprio corpo, esquecendo os remédios num momento, tomando doses massivas em outro. Mas Bert também estava preocupado com a saúde mental do amigo, que vinha conversando sozinho com freqüência. Tendo completas discussões e gargalhadas com o que assumia ser o fantasma de Frank.

            Gerard também estava preocupado. Acordara diversas vezes durante a noite, tentando ver alguma coisa no escuro, chamando por Frank - quando a voz quieta do outro perguntava o que havia de errado, Gerard dizia que nada, só por favor não vá embora, e rendia-se aos efeitos dopantes dos remédios mais uma vez. Preocupado de medo, imaginando se um dia iria acordar e Frank teria partido. Já bastava o acontecido; se Frank fosse embora, Gerard provavelmente perderia a cabeça de vez. Se Frank não fosse embora, entretanto, Gerard talvez viesse a fazer uma besteira, tentando tocá-lo ou algo do tipo classificado não-faça-isso. Não sabia o que fazer e não poderia pedir ajuda a ninguém sem soar louco. Tinha medo de ficar parado e sua falta de ações trazer mais eventos ruins no futuro. Estava de mãos atadas.

            Era um beco sem saída.

            Os três garotos estavam sentados na escada à entrada da casa dos Way, uma caneca de café quente com Gerard, outra com Bert, nenhuma com Frank.

            “Quer dizer, é perto, menos de duas horas,” dizia Gerard, mantendo o café perto do rosto para tentar aquecer a ponta gelada de seu nariz. Ainda era outono, mas estava parecendo que o inverno já tinha chegado à Jersey, um vento frio constantemente assombrando as ruas e destruindo penteados. “Nós podemos ir sexta depois da escola e voltar no domingo.”

            “E como você pretende achá-la?” Perguntou Bert, que deslizava os dedos pela borda da caneca com um olhar distante.

            “Bem, nós estávamos - quer dizer, eu estava pensando, pelas roupas dela, ela freqüentava a igreja.” Tomou um gole do café. “Nós podemos ir lá e mostrar a foto, vai ver alguém reconhece.”

            “A foto é antiga, Gerard.”

            “Polaroids são tão mais legais que câmeras digitais,” Frank pensou alto de seu cantinho, apoiando o queixo na mão de forma entediada. Ele vinha fazendo isso bastante.

            “Vale a pena tentar, Bert. Por Frank.”

            “Não, eu sei, é só que-”

            “E Belleville é pequena, afinal de contas,” interrompeu Gerard, ajeitando o posicionamento da perna engessada nos degraus. “Uma igrejinha católica em Belleville e as protestantes de Jersey são duas coisas completamente diferentes.”

            “A mesma merda pra mim,” reclamou Bert, que tinha pavor dos imensos corais e doações das igrejas que via ao seu redor.

            “Eu digo em questão do número de pessoas,” explicou Gerard, e Frank deu uma risadinha zombeteira. “Vamos lá, Bert, não podemos desistir assim tão fácil. O mínimo que eu posso fazer é achar a mãe dele...”

            “E se ela não quiser ser achada, Gerard?” Bert questionou rápido, seu tom subitamente mudando para algo quase ríspido. “Ou você esqueceu que ela deu o menino?”

            “Hey!” fez Frank, levantando a cabeça de repente, suas sobrancelhas bonitas quase unidas em revolta.

            Foi como se Gerard tivesse levado uma bofetada no rosto, o tapa ardendo e a realidade voltando a ele. E se ela não quiser Frank? Nenhum deles sabia o motivo. Talvez ela tivesse o largado lá. Talvez ela fosse uma daquelas garotas que são criadas pela avó dentro da igreja, se rebela aos dezessete, engravida, joga o filho na porta de um orfanato dentro de uma caixa e foge para Los Angeles. Mas talvez... talvez ela tivesse sido forçada a doá-lo porque não tinha condições de criá-lo, e ela pensava nele e rezava por ele todos os dias e ficaria absolutamente furiosa ao saber que Gerard havia matado seu menino precioso.

            Oh Deus, por favor não.

            “Bert, será que você pode por favor não me deixar ainda mais nervoso?” Gerard pediu, uma ponta de desespero em sua voz. “Eu quero e preciso fazer isso. Se você não quiser me ajudar, eu arranjo outro jeito.”

            Robert bufou. “Eu não quero ser idiota aqui, é só... nós temos que começar a lidar com a possibilidade das coisas não irem nada bem. Não quero ver você se decepcionar de novo.”

            Gerard fez um bico e balançou a cabeça. “Já estou no fundo do poço.”

            “Não acho que esteja, e definitivamente não quero ver você chegando lá.” Pressionou a palma da mão contra a testa. “Eu estou meio preocupado com você, Gerard. Na verdade, preocupado pra cacete, você fica o dia inteiro em casa enfiado no quarto - sua mãe me falou então nem vem.”

            “Se eu estivesse vivo, ele diria isso num outro tom,” Frank pensou em voz alta.

            “Bert, não precisa se preocupar, é sério.”

            “O que você fica fazendo que nem me deixa vir pra cá?”

            Conversando com Frank sobre coisas idiotas, assistindo TV com Frank e fazendo comentários idiotas, reclamando como uma criança mimada. “Não sei, acho que eu durmo? Por causa dos remédios, sabe, eu fico sonolento.”

            “Eu posso ficar aqui se você quiser,” Bert ofereceu, desesperado para poder monitorar um pouco melhor o comportamento estranho do amigo. “Meus pais nem vão notar minha ausência.”

            “Nah, não precisa. Quem fez a merda fui eu, as pessoas não precisam lidar com as conseqüências mais do que já estão.”

            “Certo,” disse Bert de forma decepcionada, encarando o café.

            “Ele devia dar mais atenção ao Quinn,” Frank sugeriu de seu cantinho, seu rosto agora virado para cima ao que ele observava o céu cinzento.

            “Você devia ir ver o Quinn,” Gerard disse a Bert, aceitando a dica de Frank. “Ele parece gostar muito de você.”

            Bert balançou a cabeça. “Foi ele que sugeriu que eu devesse passar mais tempo com você.”

            Gerard franziu o rosto. “Estranho.”

            “Você que anda estranho, Gerard,” Robert confessou de repente com a voz de quem vem estando sob pressão. “Você - Jesus. Você estava tendo uma conversa completa ontem na quadra, e com quem eu não faço idéia, porque você estava sozinho lá em cima enquanto eu conversava com Quinn.”

            “Não conte a ele,” Frank avisou rapidamente, sua voz séria.

            A sensação de ser descoberto fazendo uma coisa errada invadiu o estômago de Gerard, que pareceu gelar o café ingerido rapidamente. Ele detestava aquela sensação. “Não... não é nada de mais, Bert.”

            “Imagina.”

            “É, imagina mesmo. É só... eu gosto de imaginar como seria conversar com Frank, é só isso. Às vezes eu esqueço e falo alto. Todo mundo faz isso. É só.”

            “Como se isso fosse boa coisa, Gerard.”

            “Bem, pelo menos eu não estou louco, okay, então pare de me tratar como se eu estivesse.” Teve vontade de jogar a caneca no chão. Não o fez, era sua preferida. Talvez estivesse louco e sabia disso, mas preferia acreditar na teoria de Frank, Frank o anjinho perfeito eterno e doce.

            Bert balançava um pé compulsivamente, o coração apertado. Não queria ser um babaca com seu melhor amigo, especialmente agora que uma coisa tão horrível acontecera. Mas que era estranho, era. Gerard vinha falando sozinho e não foi só uma vez. Mas hey, pensou Bert, se essa é a forma que ele achou de lidar com a coisa, então que seja. Qualquer coisa para que ele não sofresse tanto. O jeito que Gerard agiu no hospital na manhã após o acidente havia partido o coração de Bert, que teve que pedir licença e ir ao banheiro, chorando contra sua jaqueta úmida por quase quinze minutos. Não se julga esse tipo de coisa. Se ele quer imaginar conversas com Frank, deixe-o imaginar. Desde que não esteja afetando ninguém de forma negativa. Não estava.

            “Okay,” disse Bert. “Okay, me desculpe, eu surtei,” declarou, passando um braço ao redor dos ombros de Gerard e beijando seus cabelos. Balançou o corpo dele levemente. “Vamos, estamos nos atrasando para a escola.”

            Levantaram-se e Bert correu para dentro da casa, pretendendo devolver as canecas e pegar as mochilas deles lá dentro. Gerard ficou encostado ao muro, ao lado de Frank.

            “É melhor se você não contar, Gerard,” Frank disse baixinho, como se Bert pudesse ouvi-lo.

            “É, eu sei.” Sabia mesmo. Se Bert viesse a ele contar que andava conversando com um anjo, Gerard o mandaria fazer uma tomografia, ou um exame psiquiátrico. Mas era ruim mentir para seu melhor amigo, porém era ainda pior a idéia de estar negando Frank.

            Frankie fez um bico com os lábios por um momento, encarando a calçada suja. “Eu sei que eu enchia o saco às vezes, com ciúmes de Bert... mas eu fico feliz que ele esteja aqui. Foi ele que me tirou do carro, sabia? Eu não sei se teria coragem.”

            Gerard meneou a cabeça rapidamente. “Eu vi. Mais ou menos, mas vi.”

            “É...” apoiou um pé na parede. “Ainda bem que ele está por perto. Ele se preocupa muito com você.”

            “Não devia, eu não mereço.” Soou como quem quer se fazer de vítima; notou isso e repreendeu a si mesmo. Cale a boca, Gerard, pela madrugada.

            “Não aja como se você tivesse me espancado até a morte, Gerard, que coisa. Já falei milhões de vezes. Eu te segurei, eu causei isso.”

            “Não era seu pé no acelerador.”

            “Era só minha cara na frente da sua.”

            “E minha teimosia.”

            “Fraqueza minha.”

            “Frank - ugh,” ralhou Gerard, impaciente, lançando ao outro um olhar bravo.

            “Você estava me defendendo, não há motivos pra ficar se martirizando!” exclamou, batendo as mãozinhas nas coxas.

            “Eu teimei com todo mundo e fui atrás de Kevin naquele carro, Frank, você me pediu que não fizesse isso, mas eu fiz e você acabou atravessando o pára-brisa, e olha só,  ha-ha, agora você está morto debaixo da terra.”

            “Não, eu estou aqui.”

            Gerard o encarou boquiaberto, balançando a cabeça. “É impossível conversar com você.”

            Frank riu. “Irônico como o motivo disso não é eu estar enterrado.”

            “Não, é você ser cabeça dura desse jeito,” disse Gerard, irritado como uma criança, cruzando os braços.

            “Você que é teimoso.”

            “É isso que eu estou tentando dizer a você faz dias.”

            Frank continuava a sorrir. “Eu queria te dar um tapa, bem agora, menino pirracento.”

            Suspirou. “É, eu também queria.”

            O barulho de Bert voltando chamou a atenção dos dois, que viraram para vê-lo aproximar-se com as mochilas. “Essa conversa não acabou, mocinho,” Frank avisou antes que eles entrassem no carro de Robert.

            Durante o caminho para a escola, para variar, o assunto não era Frank. Era Quinn. Gerard tentou agir da forma que era antes de tudo acontecer, quando ele e Bert conversavam como duas garotas sobre namorados e casos. Não havia muito o que dizer, considerando que eles começaram qualquer coisa na mesma noite do acidente e tudo havia se focado ali desde então. Mas havia o fato de que Bert estava caído por Quinn há semanas, então cada pequena ação dele continuava a, no fundo, encantar aquele que se passava por inconseqüente sem coração.

            “Quer dizer, não que eu fique, você sabe, de frescura igual você e o Frank,” dizia Bert distraidamente, as mãos deslizando pelo volante com naturalidade. “Mas às vezes...” - mordeu o lábio inferior, tentando segurar um sorriso. Frank estava empoleirado entre os dois bancos, ansiosamente esperando pelo resto da fala assim como Gerard.

            “Às vezes...?”

            “Às vezes ele ri de alguma coisa... assim, daquele jeito tímido, e o cabelo dele cai na testa, e os olhos dele... ah, nem sei.” Tinha um sorriso besta apaixonado no rosto, o olhar perdido como se Quinn estivesse bem ali à frente dele. “É a melhor coisa do mundo.”

            Gerard só teve que mover o olhar alguns poucos centímetros para ver o rosto de Frank, que olhava para Bert com olhos sonhadores cheios de simpatia. “Eu sei bem o que você quer dizer,” declarou Gerard, atraindo o olhar de Frank. Fitaram um ao outro por alguns segundos, palavras sendo dispensadas pelo sentimento quase palpável que pairava entre eles. Virou-se de volta para frente. “Entendo perfeitamente.”

            **

            Gerard queria seriamente agarrar o pescoço de Kevin e torcê-lo como Donna torcia as toalhas que lavava.

            “Não se deve louvar esse tipo de coisa,” insistia o professor de história, Sr. Newton. Ele tinha cabelos cacheados grisalhos emoldurando seu rosto gorducho, o nariz batatinha apoiando óculos redondos e a pele vermelha de exaspero pela discussão infrutífera com Kevin, dito o imbecil, dito o maldito, dito o retardado preconceituoso que Gerard estava prestes a atacar.

            “Mas ele era foda,” Kevin disse pela enésima vez.

            “Ele não conhece outros adjetivos?” Bert questionou baixinho para Gerard, que mal ouviu a pergunta.

            O Sr. Newton encarou o garoto, sua boca de toicinho pendendo entreaberta por alguns segundos. “Seis milhões de pessoas inocentes foram mortas nos ‘grandes feitos’ desse monstro, senhor Williams. Ele invadiu países, abduziu pessoas, as torturou e matou e trouxe conseqüências horríveis e duradouras para diversas nações, inclusive a dele próprio. Como isso pode ser ‘foda’ na sua concepção?”

            Kevin riu. “Se ele não fosse, não tinha conseguido fazer o que fez.”

            O professor parecia incrédulo. “Quer dizer que se um homem entrasse em sua casa, estuprasse sua mãe e irmã, tomasse seus pertences e ateasse fogo no seu lar, matasse seu pai e te levasse a um campo de concentração gelado e pavoroso por meses antes de te matar, você o consideraria ‘foda’?”

            Um balançar de ombros despreocupados. “Minha família é toda loira.”

            Num movimento único, Gerard, Bert e Frank levaram a mão à testa, abismados. Alguns outros estudantes acompanhavam a discussão com a mesma incredulidade, enquanto alguns pareciam não prestar atenção e outros concordavam com Kevin.

            O professor, no entanto, gargalhou. Colocou as mãos na cintura e gargalhou, olhando para o teto como quem pede ajuda aos céus, pelo amor de Vosso filho, Deus, tire esse energúmeno da minha sala de aula. “Você acha que não havia pessoas loiras nos campos? Senhor Williams, se você pretende fazer tamanha barbaridade tal qual defender Hitler, pelo menos me apresente argumentos plausíveis.”

            Kevin assumiu a expressão soberba de sempre. “Eu acho meus argumentos perfeitamente bons.”

            “Seriam ótimos na Alemanha nazista de 1930, filho, mas na minha sala de aula não.” O professor puxara um lenço marrom do bolso e o usava para secar a testa. “E definitivamente não serão bons para Yale ou Brown, que ficarão sabendo de sua opinião sobre idéias fascistas, supremacistas e racistas.”

            Uma pontinha de satisfação atingiu Gerard.

            Kevin continuou a não se importar. “Eles também não gostam desse povinho, eles vão me aceitar.”

            O professor o fitou como se estivesse olhando um bode falar. “E quem se classifica como povinho?”

            Outro balançar de ombros. “Sei lá, esse povo.”

            O Sr. Newton meneou a cabeça, as mãos novamente na cintura. “Esse povo. Uhum. Senhor Williams, Hitler perseguiu qualquer pessoa que fosse judia, homossexual ou que não fosse ariana. Eu posso lhe garantir que nenhum de nós é ariano, nem mesmo o senhor com seu cabelo tão maravilhosamente loiro. Além de mim, quem nessa sala é judeu?”

            Seis pessoas na sala levantaram a mão.

            “Muito bem, somos sete,” continuou o professor. “Alguém não se incomoda em assumir homossexualidade ou bissexualidade?”

            Além de Katie Samsom no canto da sala, Gerard e Bert levantaram a mão imediatamente. Frank também, mas ele não era visto, então não contava.

            “Pois bem, mais três. Senhor Williams, porque o senhor também não passa a ser ‘foda’ e mata a nós todos, como Hitler mandaria fazer?”

            Kevin se virou para trás e olhou para Gerard, o rosto ainda inchado pelos socos que tomou de Bert. “Acho que o senhor Way já está providenciando isso para mim.”

            Foi questão de segundo para que Bert se levantasse (Gerard tentou, mas o gesso o impedia de sair da mesa pequena), e logo o burburinho de vozes foi ouvido, como se aquilo fosse um julgamento importante e o promotor tivesse acabado de dar uma cartada vencedora. Adam voou de sua carteira para segurar Bert, que estava pronto para terminar de transformar a cara de Kevin em purê de batatas.

            “Fora!” Gritou o professor, agarrando a mochila que Kevin não tinha sequer aberto e a jogando no corredor. “Você não entra mais na minha sala de aula, senhor Williams, não me importa quanto dinheiro sua família tenha!”

            Kevin foi empurrado pelo professor para fora da sala, uma expressão ultrajada em seu rosto. A porta foi batida com força. O Sr. Newton passou a mão pelos cabelos encaracolados, respirando fundo, bastante nervoso, os alunos voltando a seus lugares.

            Gerard arfava, frustrado por não ter conseguido se levantar e matar aquele filho da mãe da forma lenta e dolorosa que ele merecia. Tinha uma mão sobre a boca e encarava a madeira polida da carteira com olhos brilhando de fúria. Fechou os olhos.

            “Ger, calma.”

            Uma faca; uma faca bem grande e afiada, uma faca como as de Jamie Oliver. Gerard arrumaria uma dessa, prenderia Kevin, e lentamente introduziria a faca no olho dele, girando em sentido horário para que ele sofresse bastante. Depois, Gerard atacaria o peito dele com golpes rápidos, profundos, raivosos, rrrhw, rrrhw, eu te odeio, cale a boca e morra.

            “Gerard.” Abriu os olhos. Era a voz de Frank, que estava de joelhos ao lado da mesa, queixo apoiado na madeira. “Fiquei calmo. Já passou, não foi nada. Acalme-se.”

            Os batimentos cardíacos de Gerard diminuíram a velocidade, seu corpo ficando calmo de fato, Frank inundando a mente do maior com seus poderes persuasivos ou que quer que fosse aquilo que ele fazia. Fitou os olhos doces de Frank, que pareceu satisfeito e sorriu para ele.

            O professor tentava reganhar a compostura à frente da sala, mas parecia uma tarefa árdua. Ele dava instruções para o novo trabalho deles: escrever sobre a segunda guerra mundial do ponto de vista dos prejudicados, foquem Auschwitz, foquem os sobreviventes, ponha-se na pele deles, mostrem àquele garoto tolo o tamanho da bobagem que ele vinha falando.

            Bert ficou muito quieto em seu assento, mordendo o osso do polegar de forma impaciente. Gerard pediu a Frank que o acalmasse também, mas aquilo aparentemente não era possível. A agitação continuou por mais alguns segundos, até que o sinal que indicava o final das aulas da manhã tocou, alto e estridente ecoando pelas paredes tradicionais do Saint Peterson.

            “Você acha que ele vai tomar detenção?” Questionou Gerard a Bert quando se levantaram. Alguns alunos faziam questão de esbarrar em Gerard ao passar por ele.

            “Duvido muito, mas a esperança é a última que morre,” declarou Bert, pegando as duas mochilas e jogando uma em cada ombro. Começaram o caminho para fora da sala. “Você quer sair daqui pra almoçar?”

            “Tanto faz.”

            “Não estou com muita fome, pra ser sincero.”

            “Nem eu,” brincou Frank, e Gerard lançou a ele um olhar impaciente.

            “A gente pega um sanduíche leve na cantina, Bertie. Só preciso guardar essa mochila no meu armário.”

            “Eu não me importo em carregar.”

            “Eu não preciso mais dela por hoje, tenho educação física.”

            Bert riu. “Adoraria vê-lo jogar futebol com esse gesso.”

            “Eu adoro futebol,” Frank declarou de seu cantinho - era curioso como ninguém trombava com ele no corredor lotado. Era como se soubessem que ele estava ali, mesmo que não o vissem, abrindo caminho para o pequeno ser antes tão ignorado.

            “Eu sei,” respondeu Gerard. Lembrou-se do dia em que Frank começou a falar sobre futebol, e Gerard não entendia nada, e Frank entendia tudo, e animava-se a cada segundo da conversa, e Gerard decidiu que Frankie definitivamente seria o homem da relação caso viessem a ter alguma coisa.

            “Como porras funciona futebol afinal de contas?” Bert perguntou num tom quase revoltado. “Além das orgias no vestiário após os... oh.”

            Parou de falar quando chegaram em frente ao armário de Gerard.

            Os alunos que passavam encaravam, e alguns até ficaram por perto para ver a reação dele. Sobre a tinta azul escura que cobria o metal do armário, havia tinta vermelha vinda de um spray. Letras grandes, a palavra escapando as bordas e violando armários alheios. A palavra que vinha ecoando na mente de Gerard há quatro dias e que agora ele via em sua mais perfeita manifestação, estridente, chamativa, crua: ASSASSINO.

            “Vamos sair daqui,” Bert falou rapidamente, ignorando sua própria vontade de perguntar quem foi o filho da puta que fez aquilo. Saiu praticamente carregando Gerard pelo corredor afora, todos os olhares voltados para eles, julgando, acusatórios. Assassino.

            **

            Os raios fracos do sol, encobertos por uma camada cinzenta de nuvens e poeira, não aqueciam a pele dos que se aventuravam a dar um passeio no parque. A brisa vinha do mar lá em baixo, a água gelada batendo contra as pedras e fazendo véus de espuma que sumiam aos poucos para se formarem novamente no segundo seguinte. Tudo era nublado e revolto como a alma de Gerard, que estava sentado sobre a grama, encarando a distante cidade de Nova York detrás da cortina de fumaça que saía de seu cigarro. Bert estava alguns bons metros atrás, dentro do carro, ouvindo música e fazendo nada.

            “Já está na hora de tomar seus remédios,” avisou Frank, sentado ao lado de Gerard, que deu de ombros.

            “Mais tarde eu tomo.”

            “Você vai sentir dor.”

            “Eu mereço.”

            Frank arqueou as sobrancelhas. “Eu sinto qualquer dor que você sinta, sabia? Vai me deixar assim?”

            Gerard expirou rispidamente. “Já não basta eu ter matado você, te faço sentir dor mesmo depois de morto. Bacana.”

            Revirando os olhos, Frank levantou as mãos aos céus. “Senhor, dai-me paciência e ilumina a cabecinha teimosa desse pobre diabo.” Virou-se para Gerard. “Sério, Gerard, isso já era pra ter passado.”

            Outro balançar de ombros. “Não passou, sinto muito.” Sabia que estava parecendo que não se importava, mas essa não era a verdade. Ele simplesmente estava ficando entorpecido. Fosse pelos medicamentos, fosse pela constante noção do que havia feito: seu corpo não conseguia se destacar dos pensamentos ruins e ele estava se acostumando, tendo a si mesmo em padrões cada vez mais desprezíveis.

            Frank o fitou durante um longo tempo, a lamentação presente em seus olhos. “Você não pode ficar assim para sempre.”

            “Não vai ser pra sempre, eu também vou morrer um dia.” Tragou do cigarro, como que pedindo por favor me dê problemas de saúde e me leve daqui.

            “Gee, por favor,” Frank pediu naquela voz doce que só ele conseguia fazer. “Você precisa se animar. Pra que ficar tão preso ao que as outras pessoas dizem de você? Elas não nos conheciam, Gerard. Elas não sabem nada da gente. Elas não sabem que eu prefiro mil vezes estar desse jeito agora e ter me entregado a você do que continuar naquele orfanato horroroso. Elas não sabem o que nós tivemos. Eu conheço a sua alma, e eu sei o quão bom você é, não importa o que eles digam.”

            Gerard balançava a cabeça com amargura. “Eles podem não me conhecer, mas conhecem os fatos, e isso não se muda. Eu fui um imbecil, procurando briga ao entrar naquele carro. Eu não deveria ter feito aquilo e fiz...”

            “Eu ficaria ofendido se você não fizesse. Às vezes, quando o coração se sobrepõe à razão, o resultado não é bom mas a intenção fica clara, e é isso o que realmente importa.” Os olhos verdes de Gerard encontraram os de Frank, que pôde ver a completa falta de esperança neles presentes. “Eu sei que agora parece burrice, mas se a cena acontecesse de novo, você sentiria a mesma coisa. As razões parecem bobas e desaparecem, mas o sentimento não.”

            Ambos sabiam que isso era verdade. Muitos erros podem ser evitados caso as conseqüências sejam apresentadas antes que o fato seja consumado, e o medo se sobrepõe à raiva com facilidade. Não se luta com um brutamontes, pois é bem claro que o que vem depois disso é uma temporada no hospital. Se Gerard soubesse que ir atrás de Kevin para fazê-lo comer o pão que o diabo amassou causaria a morte de Frank, teria engolido seu ódio e desligado o motor quando Frank pediu. A vingança é um prato que se come frio, como todos dizem, e se ele soubesse o motivo desse ditado, tudo poderia ser evitado.

            Ou não, segundo as filosofias de Frankie o anjo sobre destino.

            Talvez não.

            Mas ele estava morto, e isso era a manchete principal.

            “Hey, Frankie,” chamou fracamente, dando uma última tragada no cigarro antes de jogar o filtro fora. “Você se lembra de quando nós viemos aqui a primeira vez? Você disse que queria ter o poder de confortar as pessoas,” lembrou tristemente. “Agora você meio que tem, não é?”

            Frank meneou a cabeça lentamente. “Mais ou menos.”

            “Ponto pra você, eu acho.” Olhou para cima. “Ponto pro teu chefe e toda a baboseira de destino.”

            “Mas eu perdi o privilégio do toque, que eu também gostava muito,” ponderou o pequeno, descansando o queixo nos braços dobrados. “Nem tudo são flores nessa vida... ou na morte.”

            Gerard deu uma risada curta, preenchida de escárnio e amargura. “Acho que nós dois perdemos um bocado. A vida, a vida.”

            Mais uma expressão insatisfeita de Frank. “Perdemos, e você não pode se focar em manter essas coisas, porque elas não vão voltar. Você tem que pensar no que nós temos agora, Gerard.” Observou o rosto de porcelana dele, cada vez mais pálido. “Temos que dar valor ao que temos agora, somos a prova de que as coisas podem ser tiradas de nós de repente, quando nós menos esperamos.”

            Os dentinhos afiados de Gerard vieram morder seu lábio por um momento. “Por mim, já não ligo mais.” Fitou a grama, o verde sujo combinando com suas íris entristecidas. “Já me tiraram você; que me tirem do mundo de uma vez. Não me importo. Não quero mais nada aqui.”

            “Gerard!”

            “Bom, é verdade!” Ele quase gritou, irritado.

            “Um homem nunca dá valor às próprias mãos até que precise amputá-las, e de repente a idéia de perdê-las é o fim do mundo.”

            Mais uma risada mascarada. “Eu não tenho mais nada o que fazer com as mãos.”

            “Você tem que achar minha mãe,” Frank indicou de repente, como que dando a Gerard uma tarefa, uma lição de casa. “Se você diz que está disposto a perder a vida porque eu perdi a minha, se você está disposto a morrer por mim, então você tem que se dispor a viver por mim também.” Nunca achou que diria qualquer coisa prepotente do tipo, mas Gerard parecia tão perdido, Frank sabia que precisava guiá-lo antes que ele fizesse uma besteira, custasse o que fosse.

            Gerard fitou o menor, oferecendo um sorriso que não chegou a seus olhos. “O que você quiser, Frankie.”

~

            O pé direito de Bert balançava automaticamente no ritmo da música. Ele murmurava a letra sem emoção, sua boca mal se mexendo. You’ll speak in tongues and you’ll feel your heart racing, oh.

            Seus olhos azuis brilhavam como se o dia estivesse muito ensolarado, mesmo que tudo fosse nuvens por dentro e por fora. Ele via Gerard de costas, sentado quase na curva onde a terra acabava e tudo não passava de uns bons metros de queda até as rochas e o mar. E Gerard estava se mexendo. Falando. Tendo reações, se exaltando, balançando a cabeça, fixando o olhar num ponto vazio como se estivesse encarando alguém.

            Talvez estivesse.

            Bert sentiu seu coração ficar apertado, receoso. Não sabia o que estava acontecendo com Gerard, mas definitivamente havia algo fora do comum. Gostar de pensar que uma pessoa está ao seu lado é uma coisa; ter alucinações com ela é outra. E claramente Gerard estava tendo discussões não previstas pelo seu consciente ali, levantando o tom de voz, curvando-se para o lado como se tentasse desviar de palavras cortantes que o feriam ou desagradavam. Aquilo não era bom, mesmo na concepção de Bert, que sempre desprezou a definição do que é normal e o que não é.

            Considerou se aquilo era algo sério, se deveria contar a alguém, levar Gerard de volta para o hospital ou o que fosse. Não queria ver o amigo passando por esse tipo de coisa e ser considerado louco ou coisa pior, mas se uma alucinação estava deixando-o afetado daquela forma, sabe-se lá o que mais ela não seria capaz de fazer.

            Não havia forma de sair ganhando. Tomar iniciativa e reportar as preocupações aos pais dele poderia ser ruim. Não dizer nada e deixá-lo daquela forma poderia ser tão ruim quanto. Não se deixa esse tipo de decisão nas mãos de um garoto de dezoito anos, principalmente quando se trata do bem estar do seu melhor amigo. Mas ali estava. Lide com isso, ou ignore. Ele não sabia o que fazer.

            Bert secou rapidamente com a manga do casaco uma lágrima que escorreu pelo seu rosto frio. Balançou a cabeça e continuou a cantar. Ficou no carro, esperando por Gerard de braços cruzados.


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