Conversando Com Os Anjos escrita por glassmotion


Capítulo 6
Capítulo 6




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Capítulo seis

"Most of what I remember makes me sure
I should have stopped you from walking out the door

You could be happy, I hope you are
You made me happier than I'd been by far

Somehow everything I own smells of you
And for the tiniest moment it's all not true"

[You could be happy - Snow Patrol]

~~

            “Ugh - merda,” veio um sussurro irritado de algum lugar do quarto escuro, junto com o barulho de algo batendo contra a gaveta da cômoda. Gerard abriu os olhos e não pôde ver muita coisa: apenas o borrão avermelhado do mostrador do relógio e a claridade que vinha de uma fresta na porta.

            “Mikey?”

            O barulho cessou. “Desculpa, Gee, não queria te acordar.”

            Gerard virou o rosto e encarou o relógio até os números se focarem em frente a seus olhos: 07:39am. “Mikey!” Sentou-se rapidamente. “Por que você não me acordou? Acenda a luz, eu vou me atrasar. Porcaria...”

            “Olha a boca suja, menino,” veio a voz de Frank de algum lugar.

            “Mas, Gerard...” - Mikey acendeu a luz, fazendo o irmão piscar fortemente algumas vezes para acostumar as pupilas à claridade súbita. “Eu achei que você não ia pra escola...”

            “Bem, eu vou.” Procurou rapidamente por Frank: o encontrou empoleirado na cabeceira da cama de Mikey, distraidamente desenhando padrões em sua pele com a ponta do dedo. Michael já estava vestido, porém descalço, uma meia em mãos - obviamente estava procurando pela outra quando acordou Gerard.

            O caçula pareceu pensar por um momento, observando o irmão mancar até o closet. “Acho que a mamãe não vai deixar você ir.”

            “Eu já estou bem grandinho pra decidir que quero ir à escola,” retrucou impaciente, pegando um par de calças limpas de um cabide. Pensou se teria que cortá-las para que pudesse passar o gesso por dentro de uma perna.

            Michael sentou-se no chão, enfiando a meia rota no pé. “Pra que diabos você quer ir?”

            “Porque sim.”

            “Isso não é resposta digna,” Frank provocou do canto do quarto, ainda concentrado em seu próprio antebraço.

            “Porque sim não é resposta,” disse Mikey.

            Gerard jogou o conjunto do uniforme sobre a cama e pôs as mãos nos quadris, mostrando-se irritado de um jeito levemente feminino. “Eu vou. Ponto. Não devo satisfação a ninguém.” Lançou a Mikey um olhar de irmão mais velho.

            “Você deve satisfação à mamãe, imbecil,” retrucou, levantando do chão. “E só pra você saber,” recomeçou, pegando os tênis e saindo do quarto, “você está muito ridículo com esse gesso.”

            A porta do quarto foi fechada. Gerard abaixou o olhar para si mesmo: gesso até a coxa, boxers escuras, peito e barriga marcados pela marca arroxeada (já evanescendo para verde) do cinto de segurança, um curativo do lado esquerdo, arranhões por toda parte. E um chupão feito por Frankie escondido sob o cabelo. Isso sem contar que ele era gordo e pálido como uma baleia branca. Sentiu-se repentinamente muito envergonhado de seu corpo e quase se jogou na cama em busca da camisa do uniforme.

            “O que foi?” perguntou Frank, finalmente pulando no chão. Encostou-se contra a parede, braços cruzados.

            “Nada.” Vestiu a camisa e tentou abotoá-la o mais rápido possível, amaldiçoando-se internamente por não ter morrido naquele acidente. Por ter causado o acidente em primeiro lugar. Por não ter se tocado do quão horroroso era e ter ficado o tempo todo daquele jeito na frente de Frank, que era absolutamente perfeito.

            “Gerard,” chamou Frank quase num canto. “O que há de errado? Você errou um botão.”

            O maior bufou, desabotoando de volta para desfazer o erro. “Estúpido,” ele murmurou para si mesmo. “Feio, gordo e burro.”

            Frankie arqueou as sobrancelhas. “Wow, obrigado.”

            “Não - não você, Frankie, você sabe que não,” Gerard retificou imediatamente, levantando o olhar para o outro. “Você sabe que não é de você que eu estou falando.”

            “De você certamente não é,” declarou com um sorriso terno.

            “Oh, imagina.” Voltou a olhar para si mesmo. Balançou os dedos do pé, ainda visíveis pela abertura na ponta do gesso. Suspirou, triste. Balançou a cabeça com amargura.

            Frank deu alguns passos e parou à frente do maior. “Gerard. Gerard, olha pra mim.” - Ele olhou, as íris verdes transparecendo o sentimento de derrota que o dominava. Frank tentou passar tranqüilidade a ele. “Ger, no momento em que o carro bateu, enquanto eu passava do meu corpo pra isso aqui... um segundo, só um segundo no tempo mundano, mas que pra mim durou uma eternidade. E durante esse segundo eu vi tudo. Tudo no mundo, e bom e o ruim, o feio e o belo. E nada, nada no mundo é mais bonito que você.”

            As palavras sinceras de Frank, pronunciadas com a intenção de fazerem bem, não ajudaram muito. Não que Gerard desacreditasse que ele achasse aquilo. Ele acreditava. Acreditaria em qualquer coisa que Frank dissesse. E por essa exata razão, o fato de que não poderia tocá-lo tornava-se cada vez mais doloroso. A idéia correu pelas veias de Gerard como um veneno, fazendo-o concentrar todas as suas forças em se manter firme. Queria tanto poder abraçar Frank. Poder afagar seus cabelos macios e sentir seu cheiro puro de sabonete, pressionando os lábios contra o pescoço quentinho dele e sussurrar a ele o quanto o adorava.

            Mas não poderia fazer isso.

            Terminou de se vestir em silêncio.

            **

            Mais um sinal vermelho. “Filho, você tem certeza?” Perguntou Donna pela qüinquagésima terceira vez, suas mãos tensas no volante.

            “Tenho, mãe, não se preocupe. Eu estou ótimo.” Com a cabeça girando por causa do monte de remédios que acabara de tomar, mas hey, eu estou absolutamente maravilhoso. A verdade é que não queria ir para a escola. Não queria fazer basicamente nada que não fosse tomar Frank em seus braços e embalá-lo para sempre. Mas não poderia fazer isso tampouco.

            Os argumentos de Frank, porém, eram inegavelmente razoáveis. A vida de Gerard iria continuar. O tempo ia passar, fim do colégio, começo de faculdade. Ele precisaria de notas boas se quisesse entrar na NYSVA. Ele já não sabia se queria entrar. Ele não sabia se queria que sua vida continuasse.

            Mas sempre que Frank sugeria ou pedia alguma coisa, ele simplesmente não conseguia negar.

            O sinal abriu e Donna continuou seu caminho, expressão ainda preocupada no rosto, ignorando totalmente o fato que Mikey tinha os tênis sujos sobre o banco de trás do carro. Ela sempre brigava por isso. Era um carro tão novo, com câmbio automático - ela adorava só ter que trocar de ‘ré’ para ‘frente’ e não ter que mudar a marcha. Carro de mulher, Donald zombou baixinho quando foram comprar.

            Estacionaram em frente à Saint Peterson, que parecia ter voltado à rotina normal sem problema algum. Nenhum falso luto.

            Bert veio quase correndo até o carro, abrindo a porta de Gerard ao que Mikey saía pela de trás. “Bom dia, bom dia, pequeno Simba,” saudou, ajudando o amigo se equilibrar nas muletas. “Não achei que você viria hoje.”

            Gerard deu de ombros. “Não vou dar a esses imbecis a satisfação de me ver caído.”

            Um sorriso largo se abriu no rosto de Bert lentamente, seus olhos azuis brilhando contra o sol frio da manhã. “É assim que se fala.” Havia um tom orgulhoso em sua voz. “Eu cuido dele, tia!” gritou para Donna e bateu a porta do carro. “Trouxe seus remédios?”

            “Na mochila,” Gerard respondeu, olhando rapidamente para Frank, que chegou ao seu lado do nada.

            “Mochila,” repetiu Bert, tirando a mochila de Gerard do ombro dele e colocando no seu próprio. “Vamos lá, bebê, um passinho...”

            Começaram o caminho em direção ao prédio principal, as muletas afundando na grama fofa e macia pelas chuvas de outono. “Acho que acabou o teatro,” disse Gerard, notando que incontáveis alunos o encaravam com zombaria ou desprezo. Nenhum fingia tristeza por Frank. “Aposto que nem falam mais no assunto.”

            “Ah, falam,” respondeu Bert, prendendo os cabelos compridos detrás da orelha. “Falam e muito, até do que não aconteceu. Já escutei cada história bizarra.”

            “Tipo?”

            “Ah, besteira.”

            “Eu quero saber,” pediu Frank, andando com as mãos nos bolsos. Gerard ainda achava esquisitíssimo vê-lo sempre naquelas roupas brancas, camiseta fina e descalço. Estava um frio danado; Frank provavelmente não sentia.

            “Me conta, Bert,” Gerard insistiu, mesmo que não quisesse realmente saber. “Quem sabe dá roteiro pra uma edição dos meus quadrinhos.”

            “Oh, bem - opa!” - Gerard se desequilibrou quando a muleta foi apoiada numa pedrinha solta. Fez sinal para Bert continuar. “Tem umas coisas bem ridículas.”

            “Tipo...?”

            Robert suspirou. “Hmmm. O grupo de perto da estátua disse que vocês estavam tentando suicídio.”

            “Ah, claro,” Gerard disse amargamente, insultado pela forma como o julgavam estúpido.

            “Tem gente dizendo que o Kevin cortou os freios do seu carro.” Riu. “Aposto que ele nem sabe onde ficam os cabos.”

            “Aposto que ele nem sabe manejar um alicate,” Frank disse, e Gerard concordou.

            “O que mais?”

            Dessa vez, Robert hesitou um momento. “O grupo de Kevin... bem, eles estão dizendo...” - ajeitou o cabelo de novo.

            “Dizendo o quê?” Frank e Gerard perguntaram em uníssono.

            “Tsc. Dizendo que o Frank estava chupando você.”

            Gerard parou de andar, pronto para perguntar onde diabos estava Kevin e enfiar a muleta nele num lugar onde o sol não batia. Mas a risada de Frank o desarmou. “Só a boca, huh Ger?”

            Gerard lançou a ele um olhar impaciente. Frank deu de ombros, ainda rindo, porque hey, é verdade, foi um beijo, não foi? Bert fitava Gerard com uma expressão confusa. Recomeçaram a andar sem uma resposta.

            “Você abriu a caixa?” Perguntou Bert, querendo mudar de assunto.

            “Nope.”

            “Por que não?”

            “Não vá responder ‘porque sim’ de novo,” Frank ralhou, brincalhão.

            Tinham chegado aos degraus, e Gerard tentava se apoiar no pé engessado - agora com uma cobertura azul sobre o gesso, que Mikey carinhosamente nomeara Botinha De Aleijado. “Acho que eu quis esperar um pouco, não sei por quê.”

            Bert subia os degraus no mesmo ritmo lento. “Você sempre deixa a cereja pra comer quando o sorvete já acabou,” ele lembrou. Fato.

            “A gente abre depois da aula. Pode ser?” - a pergunta foi para Frank, que meneou a cabeça, mas Bert também respondeu.

            “Sim senhora.” Terminaram os degraus e entraram no corredor movimentado. “O que você acha que tem lá dentro?”

            “Mmmm.” Encarou de volta uma menina que olhava para ele com soberba nos olhos. “Frank gosta de música... talvez uns CD’s?”

            “Duvido que ele tivesse um aparelho de som, esperto,” Bert retrucou, fazendo Frank rir e dar razão a ele. “Talvez alguns papéis com eu-coração-Gerard.”

            Não houve tempo de Gerard responder. Seu corpo foi repentinamente lançado contra a fileira de armários, causando um barulho alto. Ele bateu a testa no metal e praticamente quicou, voltando para os braços de Kevin, que dessa vez o empurrou para trás. Gerard - com um maldito gesso na perna - obviamente caiu como um peso morto, a nuca colidindo fortemente contra o chão e mandando uma onda repentina de dor por todo seu corpo já ferido.

            “O que você está fazendo aqui, veado?” Berrou Kevin, ameaçador. “Nós não queremos você na nossa esc-”

            Foi obrigado a parar de falar quando o punho de Bert colidiu violentamente contra seu queixo - Kevin mordeu a língua, sangue sendo derramado, seu corpo musculoso caindo no chão. Bert se jogou sobre ele, sentado em seu peito, desferindo socos ritmados contra o rosto do jogador. “Filho - da puta - cale - a boca - seu fodido - imbecil!”

            A roda de estudantes que assistiam foi quebrada por Jepha, que tirou Bert de cima de Kevin com seus braços fortes, dizendo a ele para ter calma, calma, Bert, não vale à pena. Gerard estava caído no chão, uma careta em seu rosto - Frank estava agachado ao lado dele, o rosto igualmente em dor, sussurrando coisas calmantes. Kevin se contorcia no chão, mãos sobre o rosto sangrento.

            “Você fica longe do meu amigo, seu pedaço de merda!” Bert berrou, o rosto vermelho e com veias saltadas, se debatendo nos braços de Jepha. “Se você encostar o dedo nele de novo, você não vai conseguir abrir os olhos por um mês, seu cretino estúpido!”

            Alguns seguranças da escola chegaram correndo - felizmente antes do resto do time de futebol.

            A visão de Gerard ia e vinha, flashes desordenados à sua frente cada vez que abria os olhos. O rosto de Frank, o teto da escola, um homem o ajudando a ficar de pé, seus próprios dedos cobertos de sangue, o corredor... e foi ficando mais nítido. O corredor. O corredor avançando, pessoas passando, pessoas o encarando, Bert ao seu lado, o corredor, a diretoria, Gerard jogado numa cadeira de couro, a senhora Hudson de braços cruzados e um rosto que mais parecia o de Satã.

            “... e não tem jeito!” Ela brigava, mas a atenção de Gerard ia e vinha. Ele estava muito tonto e sua cabeça latejava. Olhou para o lado: Frank o encarava com olhos preocupados. Gerard sorriu pra ele, dizendo ‘tô bom’, não se preocupe comigo, Frankie, sou duro de matar. Ha ha.

            “... sangrando!” - essa era a voz de Bert, definitivamente. Gerard virou o rosto para ele num movimento quase cômico, sobrancelhas franzidas como se ele precisasse de óculos para enxergar. “Por que Kevin não está aqui também, então?!”

            “Gerard, fique acordado.” Okay, essa era a voz de Frank se sobressaindo à discussão. Gerard virou o rosto para ele da mesma forma rápida e caricata. Frank o fitava. Gerard encarou de volta. Frank sustentou o olhar; Gerard fez o mesmo.

            “Quem piscar primeiro perde.”

            O ar foi sendo expulso dos pulmões de Gerard quando uma risada se formou, e logo ele estava gargalhando com Frankie, o coração batendo mais rápido, a cabeça latejando mais forte - doeu. Gerard levou uma mão à nuca, ainda rindo, e viu que estava sangrando. Faz sentido, ele pensou. Frank estava sentado no chão, recuperando o fôlego da risada.

            “Posso saber o que é tão divertido, senhor Way?” Questionou a senhora Hudson, obviamente não vendo a menor graça na situação.

            “Aww, eu pisquei primeiro. Bertie, estou sangrando de novo?” Perguntou com inocência, observando os dedos cobertos pela substância escarlate. “Ah merda, estou.”

            “Senhor Way!”

            “Ele está perdendo sangue, sua vaca idiota!” Bert berrou, soltando-se das mãos do segurança e indo até Gerard. Tirou o paletó e o pressionou contra a nuca do amigo. “É, é, vaca idiota!” Repetiu quando a senhora Hudson quis falar. “Vá em frente, peça aos meus pais mais dez mil para não me expulsar desse colégio ridículo! Eu vou levar Gerard pra enfermaria.”

            A diretora bateu a mão na mesa. “Vocês não vão sair daqui até-”

            “Até o quê?” Confrontou Bert. “Até seu marido largar a Heather gostosinha e voltar pra você, senhora pelanca? Porque o que aconteceu aqui está bem claro! Kevin começou uma briga por nada. Ele machucou Gerard, que não está sequer em condições de andar, e a cabeça dele bateu tão forte no chão e já sangrou tanto que ele está delirando!”

            “McCracken!”

            Bert ajudava um Gerard risonho a levantar da cadeira. “Ele está ferido. Ele está entupido de remédios. Eu vou levá-lo à enfermaria, e se você quiser me expulsar dessa merda de colégio, foda-se, quem perde dinheiro é você. E pode chamar a porra da polícia se você quiser, quem sabe eles te prendem por usar um penteado tão horrível!”

            Saiu da sala, Gerard apoiado em um de seus ombros, risadinhas alegres ainda presentes em sua garganta. Frank andava ao lado deles, seguindo o padrão dos azulejos no chão.

            “Bert,” Gerard chamou, olhando o amigo com carinho. “Eu pisquei primeiro. Não é, Frankie?”

            “Yeap.”

            Robert balançou a cabeça, sorrindo levemente a despeito de sua preocupação. “Você é muito ruim nisso.”

            “Não sou!” Gerard protestou, sua voz atingindo um tom que só morcegos podiam ouvir. A próxima coisa da qual teve consciência foi de estar, pela enésima vez, numa cama da enfermaria por causa de uma cabeça dolorida, Bert preocupado ao seu lado, Frank sentado no topo do armário de remédios.

            Quase nada fora do comum.

            **

            “E eles não vão fazer nada?” Frank perguntou.

            “Nah,” respondeu Gerard. “Os McCracken fazem doações altas demais para se desperdiçar por causa de uma briga. A vaga de Bert nesse colégio está garantida mesmo que ele ateie fogo no laboratório de química.” Na verdade, aquilo já tinha acontecido, mas ninguém descobriu que foram eles.

            Observavam de longe. Estavam sentados na arquibancada da quadra de basquete enquanto Bert conversava com Quinn lá em baixo. Quinn usava o uniforme do time e uma tiara felpuda ao redor da testa, seus cabelos loiros caindo sobre ela. Estavam encostados contra a barra de ferro do banco de reservas, a mão do loiro pousada carinhosamente sobre o peito de Bert.

            “O que você acha que eles estão conversando?” perguntou Frank. “Oh Bert, você é tão corajoso...”

            Gerard sorriu. “Quinny winny, você fica tão demais nesses shorts...”

            Frank fez uma cara sugestiva. “Você devia me ver sem eles.”

            Uma risada escandalosa ecoou no pequeno estádio. Bert e Quinn olharam para Gerard, que nem se lembrou do fato que as outras pessoas não podiam ver Frank. “O que é isso, Frank, você anda muito malicioso ultimamente.”

            O menor deu de ombros. “Vivi vidas inteiras em uma fração de segundo.”

            Gerard assistiu Bert e Quinn envolverem um ao outro num abraço firme, e se surpreendeu ao ver que era Robert quem parecia sensível. O afeto que Gerard nutria por ele pareceu inchar dentro de seu peito. Uma ponta aguda de inveja acompanhou. Não do fato de Quinn estar abraçando Bert, mas sim do fato de que Quinn conseguia abraçar Bert. Gerard não poderia abraçar Frank. Porque ele estava morto. Porque Gerard o matou.

            “Nngh.” Gerard abaixou a cabeça e a escondeu nas mãos, pressionando os polegares nas têmporas. Tentou esconder os olhos molhados.

            Frankie suspirou. “Será que você pode por favor parar de pensar nisso?”

            “Será que você pode por favor entender que eu nunca vou me perdoar pelo que eu fiz a você?” Correu os dedos pelo cabelo. “E que mesmo que você esteja aqui agora, não é a mesma coisa. Você sabe disso. Você sabe que eu daria tudo para que isso não tivesse acontecido, Frank. Você não merecia isso...”

            “Quem disse que é ruim?” Interrompeu o menor. “Prefiro estar aqui do que naquele orfanato gelado.”

            “Ah é?” Virou o rosto para fitá-lo. “Morto, sem poder tocar em nada, preso a mim?”

            Frank lançou a ele um olhar impaciente. “Eu não estou preso.”

            “Então o quê, você vai ficar comigo pro resto da minha vida? Você vai ficar de saco cheio.” Riu amargamente. “Deus, eu vou me matar antes que dê tempo de você ficar de saco cheio.”

            “Não diga isso,” falou firmemente.

            Gerard balançou a cabeça, os olhos verdes se perdendo na visão de Bert e Quinn. “É verdade, Frankie. Eu não sei se posso lidar com isso... eu tinha tantos planos pra nós. E eu matei você.”

            “Gerard.

            “E eu não vou mais poder tocar você, mas eu não quero tocar mais ninguém.”

            “Você vai mudar de idéia,” tentou tranqüilizar num tom mais suave. “É só muito recente...”

            Riu de novo. “Oh, claro. Vou querer namorar um bando de idiotas quando a pessoa que eu mais gostei na vida está ao meu lado.”

            Um momento de silêncio. “Você quer que eu vá embora?”

            “Não!” Retrucou mal Frank terminou a pergunta. “Não, nunca. Eu só...” - Lágrima. “Eu queria que eu não tivesse teimado. Não tivesse ido atrás de Kevin; tudo seria tão diferente.”

            “Não seria nada. Gerard, tudo isso estava planejado para nós dois.” Se pudesse tocá-lo, seguraria sua mão naquele momento. “De uma forma ou de outra, teria acontecido. Era minha hora.”

            “Então eu queria que nós nunca tivéssemos nos conhecido.” Quando viu o olhar magoado que Frank lhe lançou, tentou explicar. “Pelo menos você estaria vivo. Tudo isso que estão falando de mim - eu mereço. Eu mereço pior.”

            Frank suspirou lentamente, seus olhos amendoados cansados e carinhosos. “Ger. Eu prefiro incontáveis vezes ter morrido depois de te conhecer do que nunca ter te visto e, portanto, nunca ter vivido. Além do mais, eu já estava com você muito antes da Saint Peterson. Não cabe a nós decidir essas coisas.”

            “Cabe a quem, então?”

            “Nós vamos entrar nisso de novo?” Frank questionou como uma esposa que está cansada de discutir com o marido sobre a necessidade semanal de ir ao salão de beleza.

            Gerard esfregou a testa. “Eu - desculpa. Eu não quero te chatear, não é com você que eu estou puto.”

            “E com quem é?”

            “Bem, com quem quer que seja que definiu nosso destino dessa forma sádica, ridícula e horrorosa.”

            Frank sorriu. “Tudo acontece por uma razão,” declarou de forma profética.

            “Hey,” chamou Bert, que vinha subindo os degraus com Quinn. “Tudo bem aí?”

            Gerard levantou o olhar para eles. “Yeap, ótimo.”

            “Oi, Gerard,” saudou Quinn em seu jeito delicado e tímido. “Sinto muito pelo que aconteceu... sei que não é da minha conta nem nada.”

            “Eu gosto dele,” Frank declarou do nada, repentinamente sentado atrás de Gerard, no banco de cima.

            “Frank gosta de você,” Gerard ofereceu com um sorriso leve. “Quer dizer, gostava. Que seja.”

            Quinn meneou a cabeça, mordendo o lábio enquanto pensava nos momentos que passou com Frank, conversando sobre Hemingway, o dia em que saiu correndo atrás dele para avisar que os meninos estavam prestes a arrumar uma briga imensa com o time de futebol... “Eu gostava dele também. Se você precisar de alguma coisa, sabe. É.”

            “Valeu.”

            Bert se sentou ao lado de Gerard. “Ele pode ficar enquanto a gente abre a caixa?” Quinn se sentou ao lado de Bert, entrelaçando suas mãos. Gerard observou as mãos por uns segundos.

            “Sim, claro. Quer dizer, eu acho... pode?” Frank disse que sim. “Pode.”

            Com os movimentos lentos de um corpo entorpecido por codeína, Gerard tirou a caixa de Frank de dentro da mochila. Tinha amassado uma ponta quando Gerard caiu de costas, quando Kevin o empurrou. Demorou um momento para que conseguisse abrir a tampa.

            “Dez pratas que tem algum eu-coração-Gerard,” Bert lembrou. Quinn apertou a mão dele em reprimenda.

            Gerard o ignorou. A primeira coisa que viu foi um tipo de caderno, papel amarelado e gasto. Pegou, virou, abriu. “São partituras,” declarou ao ver os símbolos de notas musicais. Não entendia nada delas. Apostava que eram de alguma coisa linda que Frank estaria tocando para ele naquele momento se estivesse vivo.

            “Legal,” disse Bert, espiando. “São de piano.”

            Passaram algumas páginas, descobrindo partituras de instrumentos de corda também - acharam uma palheta enfiada entre duas folhas. Havia várias anotações nos cantos de algumas páginas, a letra espalhada de Frank anotando ajustes aqui e ali para músicas que ele havia composto sozinho. Numa delas, Bert comentou que parecia ser difícil de tocar e Quinn concordou - eles entendiam de música; Gerard só sabia ouvir.

            “Difícil mesmo,” Frank comentou atrás de Gerard, espiando por cima do ombro dele. “Nem terminei de escrever.”

            Os polegares de Gerard passeavam carinhosamente sobre a página, um sorriso saudoso em seus lábios. “Ele tocou pra mim uma vez,” contou a Bert e Quinn, a memória inundando-o por completo. “Na sala de música. Os dedos dele corriam tão rápido, tão precisos...” Sacudiu a cabeça, fechando o caderno. “Ele era bom.”

             Passou o caderno a Bert e pegou a caixa de volta. Alguns documentos - Frank Smith, filiação desconhecida, aniversário no Halloween, a foto tirada aos cinco anos de idade mostrando uma criança magra de olhos imensos e assustados. Extremamente adorável da mesma forma.

            Dois carrinhos de brinquedo - feitos de metal, a tinta gasta, algumas rodas faltando. Um pequeno Batman de plástico. Mais palhetas, algumas quebradas. Dentes de leite - Gerard os segurou na mão por quase cinco minutos, encarando, passando a ponta do dedo pelas partes quebradas, pensando de onde eles vinham, os olhos ardendo. Uma colher de plástico.

            “Uau, acho que ele estava cavando um túnel pra fora do orfanato,” disse Bert, observando a colherzinha na mão de Gerard, que via uma familiaridade absurda naquilo mas não a reconhecia.

            “É de quando você me levou pra tomar sorvete pela primeira vez,” Frank esclareceu.

            O corpo de Gerard tremeu inteiro e sua respiração ficou falha.

            ‘Comemorar sua chegada na minha vida.’

            Tolo.

            “Gerard?”

            Corria os dedos pela palma de Frank, que fechou os olhos e absorvia cada sensação que o toque o proporcionava. ‘Acho que a última vez que alguém me segurou sem ser pra me bater já faz uns bons anos.’

            “Gerard, você está bem?” A mão livre de Bert veio descansar sobre a dele.

            “Hum? Sim, estou.” Passou a colher para Bert, que a colocou no colo sobre as outras coisas. “É da sorveteria, de quando eu o levei lá pela primeira vez.”

            Quinn fez ‘aww’, mas Bert riu. “Ponto pra mim. Isso é basicamente um eu-coração-Gerard.”

            “Cale a boca,” brincou Gerard, batendo o cotovelo de leve no braço de Bert.

            “Ai! Geetard.”

            “Ai, Robert.”

            “Foi o que sua mãe disse ontem à noite,” Bert retrucou, e Gerard revirou os olhos para ele.

            Só havia mais uma coisa na caixa; um pedaço de papel. Gerard ficou olhando, sem tirá-lo da caixa. Parecia amarelado pelo tempo e, no canto esquerdo superior, uma tinta desbotada dizia ‘Linda’ - e uma data embaixo.

            “Acho que é uma foto,” disse Quinn.

            Gerard pegou o papel após um pouco de esforço, a ponta redonda de seu dedo escorregando sobre a borda. Finalmente conseguiu tirá-lo da caixa e o virou. Era, de fato, uma Polaroid. Parecia bem antiga, talvez uns vinte anos? E mostrava uma moça ainda mais jovem. Ela usava uma saia negra até os joelhos e uma camisa branca de mangas longas, a gola puritana escondendo quase toda sua pele. Ela tinha cabelos castanhos bem escovados que refletiam a luz do sol que batia contra seu rosto, e qual não foi a surpresa de Gerard ao ver que ela tinha os mesmos olhos de Frank.

            “É sua mãe?” Ele perguntou baixinho, escutando um murmúrio em resposta afirmativa vindo de Frank.

            “É só o que eu tenho dela,” disse o pequeno. “Estava na caixa que me acharam.”

            A moça - Linda, pelo visto - tinha as mãos cruzadas comportadamente à frente do corpo, e Gerard teve a sensação que os sapatos que ela usava eram severos e sem graça como as roupas, mesmo que eles não estivessem visíveis na foto. Porém, o que estava visível detrás dela que chamou atenção.

            Ela estava em frente a um pequeno coral, a pilastra com listras em um dourado fosco pintadas na transversal. Uma roseira crescia ao lado da moça - provavelmente a razão que o local foi escolhido para a foto. Um crucifixo de gesso pendurado.

            A realização atingiu Gerard com uma onda de animação. “O - eu, eu conheço esse lugar. Isso é Belleville.” Olhou para Bert. “Isso é onde minha mãe se casou. É a cidade da minha avó, isso é na igreja de Belleville.”

            Bert tinha uma expressão quase assustadora no rosto. “Você acha que ela ainda mora lá?”

            Gerard voltou a olhar para a foto. A mulher - a mãe de Frank - devia ser mais nova que eles quando a foto foi tirada. “Acho que vale a pena tentar.”

            Robert pegou a foto da mão de Gerard, deixando Quinn vê-la melhor. Olhou de volta para o amigo, parecendo animado. “Quais são seus planos para o fim de semana?”

            Algo que misturava alegria, alívio e excitação correu pelas veias de Gerard. A cabeça dele girou. Ele olhou para o lado, onde Frank estava agora sentado, parecendo mais feliz que os outros três juntos. “Nós vamos achar sua mãe, Frankie.”

            Os dois sorriram. Bert e Quinn trocaram um olhar preocupado.

            Frank se recostou na arquibancada, apoiando os cotovelos no banco superior. “Tudo acontece por uma razão.”

            Dessa vez, Gerard concordou.


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