Conversando Com Os Anjos escrita por glassmotion


Capítulo 8
Capítulo 8




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Capítulo oito

“Red wine and sleeping pills
Help me get back to your arms.
Cheap sex and sad films
Help me get where I belong.

I think you're crazy, maybe…

Beautiful angel
Pulled apart at birth.
Limbless and helpless
I can't even recognize you.

I will see you in the next life…”

[Motion Picture Soundtrack - Radiohead]

~

            Uma chuva que parecia incessante caía em Jersey desde a tarde anterior. A quarta-feira estava muito cinzenta e fria, a constante água caindo do céu, deixando sapatos molhados, penteados arruinados e trânsito lento. Ninguém gostava muito da chuva.

            Os estudantes da Saint Peterson, porém, pareceram bem contentes quando, após um relâmpago fortíssimo seguido por um trovão estremecedor, a energia em toda a região acabou e as aulas tiveram que ser pausadas. Foi imediato: o relâmpago - olham pela janela, o trovão - tremor de susto, a luz acaba - comemorações e professores confusos.

            Já estavam daquela forma por quase duas horas. Os professores corriam pelos corredores e faziam perguntas que ninguém saberia responder. Quinn estava sentado no colo de Bert, brincando com os cabelos sujos dele, aquecendo-se um no outro. Adam e Jepha faziam planos de acabar com a raça de alguém. Gabe mandava mensagens de texto pelo celular. E Gerard brincava de forca.

            “Tem E?” Ele perguntou, observando os traços que havia ele próprio desenhado no papel. Havia perguntado num sussurro, a cabeça abaixada para que ninguém notasse que ele estava falando.

            “Hmmm, não,” respondeu Frank. Gerard desenhou mais um braço. _AG_I_I_O.

            “Tem M?”

            Frank fez um som de insatisfação. “Primeira casa.”

            MAG_I_I_O.

            “Magnífico?”

            Rolou os olhos. “Você sempre ganha.”

            Gerard balançou os ombros. “Você escolhe palavras fáceis.” Jogou o caderno em cima da mesa, já de saco cheio de brincar daquele jogo. “Quero sair daqui.”

            “Já vai acabar a aula,” observou Frank, se balançando de onde estava sentado (na mesa ao lado de Gerard, onde Bert estava previamente). “Quer jogar alguma outra coisa?”

            “Não muito.”

            “Hm.” Vagou o olhar pela sala, olhando a interação dos outros alunos. Adam e Jepha tinham sorrisos tortos no rosto - o que quer que estivessem planejando, parecia bom. “Oh eu tenho uma idéia.” Desceu da mesa para a cadeira, podendo fitar Gerard de uma altura igual. “Me conte o que você disse que tinha planejado pra nós.”

            ‘Qualquer dia é bom desde que você esteja comigo.’

            Gerard balançou a cabeça rapidamente, tentando afastar as lembranças de si. “Nah, má idéia.”

            “Por favor?” Pediu Frank, fazendo um bico com seus lábios vermelhos. “Ger, por favor?”

            E ali estava, a capacidade (ou poderes) de Frank de convencer Gerard a fazer as coisas, a voz envolvendo-o por completo e invadindo sua cabeça. Os pensamentos vieram numa torrente forte, e Gerard teve a visão das coisas com as quais sonhava acordado, um universo utópico que não iria acontecer.

            Nesse universo, Gerard teria desligado o carro ainda no jardim da casa onde a festa foi dada. Frank ficaria muito grato e o beijaria, e eles ficariam dentro do carro por alguns minutos, a respiração quente lá dentro tornando os vidros embaçados e impedindo que as pessoas de fora os vissem. Estariam no banco de trás, Frank sobre Gerard, e Bert chegaria, abrindo a porta sem aviso, soltando uma exclamação de felicidade e se jogaria sobre os outros dois. Eles iriam rir e mandá-lo à merda, chamariam Mikey e Gerard iria dirigir até em casa com um cuidado extremo e velocidade lenta.

            Donald os estaria esperando na poltrona, cochilando, exausto. Perguntaria se está tudo bem e iria para o quarto, nem sequer vendo Bert tirando a roupa e ficando totalmente nu na sala de estar dos Way antes de se jogar no sofá e dormir ali, abraçando almofadas e murmurando ‘Quinn’ por entre suspiros bêbados. Gerard jogaria um cobertor sobre ele, comentando que Bert havia emagrecido desde que... - pararia a frase quando Frank lançasse a ele um olhar bravo de ciúmes. Gerard iria rir, abraçando Frank, que o beijaria sem aviso como se tentasse roubar-lhe o sorriso, e o maior diria que não queria mais ninguém, que só queria Frank, que iria mostrar isso a ele, e o levaria para o quarto onde cairiam desajeitadamente sobre o colchão extra no chão. Frank iria desabotoar a blusa de Gerard, revelando a pele clara que ele adorava, passeando a boca por ela e levando ambos ao delírio, ficando surpreso consigo mesmo e seu corpo embriagado quando virasse Gerard no colchão, pressionando o peito contra as costas alvas e sentindo que aquilo tudo era tão novo porém tão familiar e tudo se encaixava e sabiam o que fazer e queriam fazer e iriam fazer e estavam prestes a fazer quando Mikey voltou do banheiro e berrou em horror.

            Então Gerard diria a Mikey o quanto o detestava, e tirariam os sapatos e dormiria com Frank no colchão dele, e seus corpos cansados ficariam adormecidos por algumas horas até que Frank acordasse, mas não realmente acordasse, apenas se movesse contra Gerard, ainda meio dormindo, e fizesse o maior despertar, e logo estariam se tocando, mais acordados, e tentariam manter a voz baixa para que Michael não acordasse e visse o que estavam fazendo, e Gerard sentiria a mãozinha de Frank em si, e notaria que o talento dele não se restringia à música, e gemidos e grunhidos iriam se perder na boca um do outro, e ficariam fracos e suados e deliciados juntos, e dormiriam de novo, e acordariam com mais sons horrorizados de Mikey pois o cobertor havia escorregado e havia mais do que devia à mostra na desordem de pele que eram Gerard e Frank.

            Mas eles apenas ririam e tomariam café, mesmo que já fosse bem mais de meio-dia, e Gerard sujaria o rostinho de Frank com a calda de caramelo das panquecas, e fariam na cozinha uma bagunça tremenda, e teriam que limpar toda a bagunça antes que Donna chegasse, e isso era difícil pois estavam de ressaca, e Alicia chegaria lá e diria a eles o quanto eram fracos para bebida, e iriam tomar banho, e Frank iria usar um dos pijamas de Gerard, aquele com planetas desenhados, a saudação de Spock desenhada entre eles, e usaria meias diferentes, a azul no pé direito, a vermelha listrada no esquerdo, e Gerard acharia tudo muito lindo e o manteria em seus braços durante todo o tempo que passariam em frente à TV assistindo filmes de terror, Mikey segurando Alicia também, e dormiriam novamente e acordariam com o toque gentil de Donna dizendo a eles para irem dormir na cama, ela precisava passar o aspirador no tapete, como foi a festa?

            Se Gerard não tivesse ido atrás de Kevin. Se.

            Mas ele fora, e agora tudo aquilo não passava de um sonho, no qual ele freqüentemente se perdia, e ficava quieto e calado durante um longo tempo até que alguém o chamasse. Sempre inventando cenários, diálogos e reações em sua própria mente, tentando criar um escape para o fato irrevogável de que havia arruinado tudo. De que nada daquilo iria acontecer e que aquele Frank ao seu lado era apenas o espírito do que fora um dia.

            “Eu não quero falar sobre isso,” finalmente respondeu, sua voz soando como se ele estivesse cantando uma música triste.

            Frankie o fitou durante alguns segundos. “Tudo bem. Eu só estava curioso.”

            A porta da sala se abriu bruscamente, chamando a atenção dos alunos que se calaram imediatamente. Era a diretora. “Senhor Way, na minha sala, agora,” foi tudo o que ela disse antes de dar as costas e sair.

            Todos os alunos imediatamente se viraram para Gerard - vários com sorrisos maldosos no rosto. “O que eu fiz dessa vez?” Ele perguntou para ninguém em particular, tentando se levantar.

            “Nasceu,” respondeu Bert, que magicamente apareceu ao lado dele e o ajudou a colocar-se de pé. “Sua mãe está ali.”

            Gerard olhou rapidamente para a porta - Donna estava, de fato, esperando por ele do lado de fora. O que diabos ela estava fazendo ali era um tremendo mistério. “O que ela está fazendo aqui?” Ele perguntou para Frank, que balançou os ombros, assim como Bert.

            “Acho melhor você ir antes que a senhora Hudson venha te buscar com uma máquina de dar choque,” Bert avisou. “Eu junto suas coisas.”

            “Ok, obrigado.” Pôs-se a desviar de cadeiras que foram tiradas do lugar, fazendo seu caminho até a porta, eventuais olhares preocupados trocados com Frank - e ignorando os olhares maldosos dos outros alunos. Chegou à porta. “Mãe, o que está acontecendo?”

            “Você fez alguma coisa errada?” Donna perguntou imediatamente.

            “Nasceu, segundo Bert,” brincou Frank, mas ela não ouviu.

            “Não que eu saiba,” respondeu Gerard, seu tom de voz duvidoso. Havia feito algo de errado? Só se apanhar de Kevin, ter seu armário marcado e ser alvo de zombarias e preconceito fosse errado. Ele não tinha provocado ninguém... tinha? E se alguém tivesse mentido? Ah, decerto não acreditariam nele. Sentiu a familiar sensação de nervosismo nauseante invadir seu estômago.

            “Então não sei por que me chamaram,” disse Donna. “Vamos, filho. Vamos ver o que é.”

            Eles fizeram o caminho pelos corredores escuros até a diretoria. Gerard perdera a conta de quantas vezes estivera ali nos últimos dias. A sala estava escura, uma vez que as cortinas grossas não foram abertas. Havia, porém, algumas velas espalhadas pelos cantos, sombras bruxuleantes dançando contra os móveis antigos, pelo tapete trabalhado, dando ao lugar um ar sombrio digno de filmes de bruxas.

            Talvez fosse proposital, uma vez que as mulheres dentro da sala pareciam bruxas. A diretora estava acompanhada de três outras mulheres, todas com roupas formais e escuras, expressões impassíveis em seus rostos.

            “Bom dia, senhora Way,” disse uma das mulheres, a qual Gerard reconheceu como sendo aquela que adiantou o funeral de Frank e deixou Donna furiosa. Ela tinha um sorriso cínico no rosto. “Por favor, queira sentar-se.”

            Estavam distribuídas cinco cadeiras; três de um lado, onde as mulheres se sentavam, e duas de frente para elas, onde ficaram Donna e Gerard. A diretora permanecia em detrás de sua mesa. “Do que isso se trata, senhoras?” Questionou Donna, seu tom amável tão fingido quanto o delas.

            “Bem, bem,” começou a mesma mulher. “A senhora sabe bem como nós todas queremos o melhor para nossos filhos, não é mesmo?”

            Donna não respondeu. Apenas continuou a encará-la de forma nada simpática.

            “Às vezes, quando vemos ameaças, temos que tomar uma atitude antes que coisas horríveis aconteçam.” Ela folheou alguns papéis que tinha em mãos, sorrindo para eles como se fossem um troféu que segurava. A diretora pigarreou de seu canto. A mulher voltou a encarar os Way. “Como a senhora já foi informada, sou a presidente da Associação de Pais e Mestres. Essa é a vice, e essa é nossa diretora de recursos humanos.”

            As três ladras unidas.

            “Meus parabéns,” disse Donna com ironia felina.

            “Obrigada!” Sorriu a mulher num tom falsamente empolgado. “Sinto, no entanto, informar-lhe algumas notícias que provavelmente não serão de seu agrado.”

            Gerard viu a sobrancelha direita da mãe se levantar. Só a direita. Mau sinal, muito mau sinal. “Que notícias seriam essas?”

            “Oh bem, como eu disse antes. Nós vimos uma ameaça aos nossos filhos e tivemos que intervir. Que tipo de mães seríamos se deixássemos nossas crianças à mercê de doenças e crueldades?”

            “Eu não sei como isso é razão para trazer-me aqui,” disse Donna rapidamente, num tom nada amigável. Ela estava desconfiada, assim como Gerard, e os dois sabiam que dali não sairia boa coisa. “Meu filho não é doente e muito menos cruel.”

            A mulher suspirou - as duas outras permaneciam quietas como estátuas de cera, obedientes. “Ora, senhora Way, vamos encarar os fatos, hm? Sei que é duro para uma mãe, querida...”

            “Não sou sua querida.”

            “... mas você precisa aceitar que seu filho é homossexual e causou a morte de um garoto.”

            Donna tinha os punhos fechados, apertados com tanta força que sentia as unhas compridas cravadas em sua palma. “Ele não causou nada.”

            “Oh, querida,” fez a mulher mais uma vez, sorrindo, condescendente. “Acho que causou sim,” adicionou num tom de quem fala com uma criança.

            “Foi um acidente,” ela disse pela milionésima vez naquela semana, defendendo Gerard mesmo que ele achasse que não merecia. “Não foi culpa de ninguém.”

            “Era ele quem estava dirigindo, não era? Dirigindo bêbado, Donna querida, não podemos aceitar nessa escola alguém que...”

            “Inacreditável,” Frank rosnou do canto da sala, chamando a atenção de Gerard por um momento. Frank o anjo, morto num dito acidente, por um Gerard bêbado que subitamente sentiu a culpa engolfá-lo novamente.

            “Ah é mesmo?” Fez Donna, passando a ficar vermelha de ira. “E aquele monstrinho Logan que estuprou aquela menina? E aquele outro do time de pólo que levou drogas para a festa?”

            “Não acredito que isso esteja registrado nos arquivos da polícia,” a mulher retrucou com tranqüilidade.

            “Claro que não estão!” Donna vociferou, batendo a mão comprida no braço da cadeira. “Porque tiraram, seus maridos corruptos e todo o seu dinheiro sujo! Sujo, sujo como o Demônio, suas sanguessugas idiotas!”

            “Mãe, calma,” pediu Gerard baixinho, triste, tentando tocar o braço dela, mas ela estava muito agitada.

            “Vocês não podem tirar o meu filho da escola se ele não fez mal algum a vocês,” ela adicionou, a luz das velas formando em seu rosto sombras que a deixavam assustadora.

            A mulher voltou a sorrir, pedante. “Oh, eu acho que posso. Aliás, podemos.” Voltou a alisar os papéis que tinha em mãos. “Vê essa pasta, senhora Way? É uma petição. Foi assinada pelos pais de quase todos os alunos, querida, e todos eles demandam que esse garoto não freqüente mais essa escola.”

            A veia na testa de Donna estava inchada, pulsante. Muito, muito mau sinal. Gerard estava assustado, o coração disparando.

            “O nome dele é Gerard,” Donna finalmente retrucou após alguns segundos.

            A mulher balançou a cabeça. “Que seja.”

            “Que seja? Que seja?!” Ela se levantou, lívida. “Deixa eu te dizer uma coisa, querida. Meu filho me dá alegrias e orgulhos que vocês nunca vão compreender, já que vocês largaram os seus com babás a vida inteira. Vocês passam mais tempo cuidando da aparência e da vida alheia do que de suas próprias crias! Vocês não são ninguém para julgar meu filho, suas vadias plastificadas.” - As mulheres fizeram menção de falar alguma coisa, mas falharam. “Se Gerard prefere dar seu amor a outros garotos, eu fico muito feliz que ele o faça, e se Deus definiu o destino dele como sendo cheio de provações, que seja! Nós vamos enfrentar isso juntos, e bem longe desse covil de falsidades!”

            Houve uma pequena comoção, e logo a petição foi parar nas mãos de Donna, que berrou que elas enfiassem os papéis naquele lugar, já que aparentemente os maridos delas estavam ocupados demais enfiando em prostitutas de strip clubs e secretárias e não iriam se interessar nelas nunca mais. Jogou a pasta sobre uma das velas, deixando-a ser consumida pelo fogo. Saiu quase arrastando Gerard da diretoria, Frank os seguindo com olhos arregalados, deixando as quatro mulheres ultrajadas e constrangidas no matadouro cheio de velas.

            “Pro inferno com esse colégio, aquele bando de mentirosas, ah mas elas vão ver...” murmurava Donna por entre dentes travados, andando de forma tão firme e furiosa que o barulho de seus saltos ecoava até as extremidades de cada corredor. Quando passaram pela sala de Gerard, Bert esperava à porta, a mochila do amigo em mãos.

            “O que houve?” Ele perguntou, olhando a senhora Way continuar andando naquela forma assustadora.

            “Eu fui expulso do colégio,” Gerard informou, pegando suas coisas. Quando Bert começou a falar alguma coisa, Gerard o interrompeu. “Eu tenho que ir, a gente se fala depois.” E saiu mancando o mais rápido que conseguia, a mãe já saindo pela porta principal.

            “Isso é absurdo,” comentou Frankie, e pela primeira vez desde que aparecera, ele parecia realmente chateado. “Eu não sei como elas têm coragem.”

            “Bem, elas têm de onde tirar os motivos,” retrucou Gerard amargamente, desistindo de usar as muletas. Aquela perna quebrada estava lhe causando tamanha frustração que ele tinha vontade de arrancá-la fora de uma vez. Mas isso seria ainda pior. Argh.

            “Coisa nenhuma, você não fez mal a ninguém - pst, nem vem, Gerard, já falei pra esquecer essa história.”

            Gerard parou de andar e virou-se de frente para Frank. Estreitou os olhos e inclinou a cabeça. “Me dê um abraço, Frank.”

            “Você sabe que eu não posso,” respondeu com sobrancelhas arqueadas.

            “Por que não?”

            Boca entreaberta, hesitante. Pequeno tique de impaciência - pezinho descalço infantilmente batendo no chão. “Gera-ard!”

            “Exatamente, porque você atravessou o pára-brisa do meu carro e se arrebentou contra a parede que eu não vi e, portanto, não freei o maldito veículo automotor,” disse com amarga ironia, enunciando cada palavra como havia feito o delegado na noite do acidente. “E agora você está preso no mundo sem realmente estar vivendo. É, Frankie, acho que elas têm sim de onde tirar e não, eu não vou esquecer essa história.” Sabia que era ridículo estar sendo rude com Frankie, depois de tudo que já havia acontecido. Porém, ele tinha que escolher: ou deixava-se chorar pela enésima vez no meio do corredor, ou substituía a tristeza por raiva temporariamente e evitava mais um vexame e chilique emocional.

            Ouviu a porta principal abrindo e Donna reaparecendo. “Vou buscar seu irmão,” ela disse ao passar por Gerard, “ele também não vai freqüentar esse lugar horroroso.” Virou num corredor à direita, o som de seus saltos permanecendo por mais alguns bons segundos.

            “Vamos esperar no carro,” disse Gerard, passando a andar novamente.

            “Que seja,” Frank retrucou, mal-humorado, seus braços bonitos cruzados fortemente sobre o peito. Gerard olhou-o de esguelha.

            “Não seja rabugento,” disse num tom automático, abrindo a porta e esperando Frank passar. Ainda estava muito nublado, mas Frank, como sempre, parecia estar sob o sol forte, quase iluminado. Quão clichê.

            “Olha só quem está falando.” E continuou a andar, sem esperar Gerard, suas costas largas para ele - primeira vez.

            “Frankie!” Tentou andar mais rápido para alcançá-lo, ma só conseguiu tropeçar, ensopando a capa do gesso na grama molhada. “Frank, espere.”

            Frank estancou de repente, dando meia-volta e encarando Gerard com uma irritação firme nunca vista antes. “O quê,” rosnou, nem sequer em tom de pergunta.

            Gerard estava parcialmente boquiaberto. “O que - você está bravo comigo? Você finalmente está bravo comigo?” Fazia sentido, porque sério, antes de Frank aparecer, Gerard imaginava que se qualquer dia algo daquele tipo acontecesse, iria se deparar com um espírito furioso e não com um anjo contente. Porém, aquilo doeu. Ver Frank irritado - puto da vida, na realidade, com ele, doeu mais do que a cabeça e o corte e a perna e o resto tudo junto multiplicado por mil.

            Aos poucos, os olhos de Frank foram caindo, ficando menos nervosos. Ele descruzou os braços. “Não, não estou chateado com você. Estou chateado comigo mesmo.”

            “Mas por quê?” questionou, sua voz ficando fina ao final da pergunta.

            Frank afastou a franja do rosto. “Porque eu me enfiei na sua vida com um destino marcado, e esse destino faz você sofrer, e meu trabalho é diminuir esse sofrimento.”

            “Frankie--”

            “É pra isso que eu estou aqui, Ger, pra cuidar de você,” Frank disse num tom quase implorativo, seu olhar triste caindo no rosto de Gerard. “Estou aqui pra fazer você se sentir melhor e entender que não é culpa sua, que isso foi traçado para nós e nada poderia mudar isso. Mas eu estou falhando na minha missão. Você se sente assim o tempo todo, tanta culpa, tanta tristeza...”

            “Desculpa,” murmurou infantilmente.

            “Não, Gerard...” Fitou-o de forma que ficou óbvio o quanto queria tocá-lo. “Eu que estou falhando aqui. Não era pra você estar assim. Se eu sinto algo negativo, é porque você sente. Eu só sinto a sua dor. E eu não quero que isso aconteça, não por mim, mas por você.” Deu um passo para frente; voltou. Segurou um braço nervosamente. “Eu só quero que você fique bem.”

            Gerard sentiu a testa formigar, mãos invisíveis apertando sua garganta. “Eu queria poder ficar, Frankie, mas eu não sei se consigo.” Cada palavra era sincera e pura. “Eu sinto tanto, Frankie, eu não quero que você fique triste, eu não quero... eu só queria que isso tudo acabasse.” Uma lágrima caiu rapidamente de seu olho esquerdo, aterrissando na grama já úmida. “Eu só queria que acabasse.”

            Ele estava à beira de um colapso, e Frank sabia disso. Gerard tentava fingir que as coisas estavam bem uma vez ou outra, mas seu rosto denunciava o contrário. Antes, ele tinha sempre o brilho de um sorriso no rosto, os olhos imensos, os dentes pequenos e as gengivas rosadas, sempre agradável, sempre Gerard... agora era diferente. Quando ele sorria, o sorriso não alcançava seus olhos cansados. Ele sempre tinha o olhar perdido em alguma coisa, no quê não importava, sempre alheio a conversas que deveriam animá-lo. Gerard não notava, mas todos os outros sim. Aquela constante expressão de apatia e escuridão, combinando com o estado em que sua alma estava - e que Frank podia sentir. Sabia que Gerard nunca poderia esquecer o que aconteceu, não poderia se perdoar por ser aquele atrás do volante, não superaria ter perdido Frank. Não se podia cobrar isso dele. Tudo que Frank podia fazer era tentar seu melhor ajudá-lo, custasse o que fosse.

            Viu Gerard sucumbir às lágrimas e nada pôde fazer. Desejou que pudesse tomá-lo nos braços e afagar seus cabelos macios, pressionando os lábios contra a pele branca e sussurrar que tudo ficaria bem. Mas não podia. Apenas ficou ali, vendo Gerard largar as muletas e a mochila, levar as mãos ao rosto e tentar esconder sua face molhada e vermelha. O corpo sendo sacudido, soluços tomando conta de sua forma solitária parada no meio do pátio.

            Donna chegou com Mikey. Os dois abraçaram Gerard, preocupados, mas o garoto apenas afastou o choro e pôs-se em direção ao carro. “Eu estou bem,” ele murmurava, a voz anasalada por vias congestionadas. O coração de Donna parecia estar muito grande e não mais cabia em seu peito, impedindo-a de respirar, deixando-a tonta de preocupação. Mikey ficou calado e muito quieto.

            A viagem até a casa deles foi silenciosa. Donna dirigia seu carro sem câmbio devagar, o rosto inexpressivo escondendo o tornado de pensamentos por trás dele. Gerard continuava olhando para o nada. Tinha uma coisa em mente, e sabia que não deveria, sabia que era ruim, mas também sabia que nunca havia precisado tanto daquilo antes. Precisava esquecer tudo por um momento, esquecer que existia e apagar o mundo de sua mente. Precisava de um tempo, de uma pausa. Precisava parar de pensar naquilo tudo para que não sentisse tanta dor para que Frank não sentisse a dor junto. Precisava de uma dose.

            Assim que entraram na casa, Gerard fez seu caminho até o banheiro do térreo, onde encostou-se contra a porta, encarando a parede. Frank apareceu ao lado dele.

            “Não faça isso, por favor,” pediu o anjo. “Isso é ruim.”

            Gerard balançou a cabeça. “Eu vou me sentir melhor, você vai se sentir melhor.”

            Frank tentou protestar enquanto Gerard foi até a pia. O maior abriu a torneira de água quente, deixando-a esquentar suas mãos geladas por alguns segundos. Lavou o rosto pálido, mal notando que seus lábios estavam arroxeados assim como a área sob seus olhos, e os arranhões do acidente tinham formado casquinhas escuras pelo seu rosto, como teias de aranha finas presas à pele clara. Ele nem se importava. Não mesmo.

            Ignorou os pedidos de Frank. Saiu do banheiro sorrateiramente, passando pelo corredor que levava até a sala de jantar. Olhou para os lados. Ouviu a mãe mexendo na cozinha. Ouviu o som da TV ligada no programa preferido de Mikey.

            “Gerard, por favor...”

            “Você vai se sentir melhor, Frankie,” ponderou, mesmo sabendo que aquilo não era completamente verdade. Deu a volta na mesa. Chegou ao canto da sala, de frente para a arca antiga que guardava a prataria e todo o álcool existente na casa dos Way. “Nós vamos nos sentir melhor.”

            Abriu a portinha com cuidado, coração correndo com medo de ser pego. Pairou a mão entre o Black Label e a vodca. Vodca não tem cheiro. Agarrou a garrafa. Escondeu-a sob o paletó por precaução e pôs-se a subir as escadas. Frank continuava protestando, cada vez mais fracamente. Gerard continuava a ignorá-lo. Entrou em seu quarto. Sentou-se na cama, encostado contra a cabeceira. Pegou o vidro de remédios no bolso.

            “Gee, por favor, não faça bobagens, por favor,” Frank implorava, de pé ao lado da cama.

            “Eu não vou me matar, Frankie,” ele murmurou, tomando algumas das pílulas com a bebida - já estava na hora, de qualquer forma. Fez um som que demonstrava a queimação na garganta. Fitou Frank com olhos úmidos. “Não enquanto eu não achar sua mãe.”

            Frank se sentou na cama de Mikey. Parecia tenso. Sabia que não tinha como discutir com Gerard. A única forma que ele tinha de chegar perto de algo que lembrava esquecimento era aquilo. Ele não mudaria de idéia. “Só... só não beba muito disso.”

            Gerard riu, a cabeça rodando, os movimentos mais lentos que o normal. “Saúde.” Ergueu a garrafa brevemente antes de levar o gargalo à boca e tomar uns quatro bons goles. Sentiu a garganta arder, a cabeça ficar leve, o corpo ficar pesado. Teve a sensação de que nunca mais seria capaz de erguer um braço. Deixou o corpo escorregar, o rosto de frente para o teto, pontos brilhantes aparecendo à sua frente. Os pontos eram desfocados e se moviam - lembravam vaga-lumes, Gerard sempre adorou vaga-lumes. Tinham luz própria... como Frankie. Ficou observando por um tempo. Imaginava Frank brilhando e voando no céu, grandes asas brancas mantendo-o suspenso, e ele sorria e mergulhava e brilhava, voando. Tomou mais alguns goles.

            “Chega,” pediu Frank, e a voz dele soou colorida. A voz de Frank, que era tão grossa e que havia surpreendido Gerard quando ele a ouviu pela primeira vez. Na sala de artes, numa segunda-feira nublada. Quando Frank agarrava a barra do paletó, nervoso, e pulava toda vez que alguém encostava nele. Porque Gerard o tocava. A mãozinha pequena, o braço, o rosto, os lábios...

            “Frankie?” chamou, rouco, tomando mais alguns goles. Os vaga-lumes moviam-se com rapidez.

            “Sim?”

            Lágrimas embriagadas voltaram a escorrer pelo rosto de Gerard, caindo nos cabelos úmidos de chuva. “Você... você gostava de mim, certo? De mim sem ser destino, só porque sim?” Não fazia muito sentido, mas fazia muito sentido. “Porque você gostava que eu te abraçasse? E não porque você tinha que ficar comigo?”

            Frank passou a mão pela nuca, exasperado. “Sim. Sim, eu gostava muito de você.”

            Uma risada breve caiu dos lábios de Gerard. “Bom,” ele grunhiu, limpando o rosto com a manga da camisa. “Bom, porque eu também.” Voltou a levar a garrafa aos lábios, errando o lugar onde ficava a boca e derramando um pouco da bebida na camisa. Reposicionou. Bateu o vidro nos dentes, bebeu um pouco mais, deixou o braço cair. Seguia um vaga-lume em especial, mas ele continuava fugindo. “Bom, porque eu amo você, Frankie.” Virou a cabeça para olhá-lo. “Okay? Eu te machuco mas eu amo você.”

            Frank meneou a cabeça. “Eu sei, Gee. Pára de tomar isso.”

            Gerard continuava a fitá-lo com olhos molhados, rosto molhado, de lágrimas e álcool. “Eu amo você, Frankie. Por favor, não me deixe.” Soluçou, o lábio inferior num bico, a voz cada vez mais trêmula. “P-por favor, Frankie, não me deixe. Não me deixe. Por favor.”

            Lentamente, Frank sentou-se no chão, ao lado da cama de Gerard, que teria tentado tocá-lo se conseguisse mover o braço. “É melhor você dormir, Gerard. Durma,” disse com a voz baixa, quase como uma canção de ninar.

            Gerard lambeu os lábios, seu nariz congestionado fazendo barulho quando ele respirava fundo. “Você vai ficar aqui?”

            “Vou. Eu não vou a lugar algum, só largue essa garrafa e vá dormir.”

            De alguma forma, Gerard conseguiu colocar a garrafa no chão, quase debaixo da cama. Ficou deitado de lado, chorando baixinho, olhando para Frank de vez em quando, morrendo de medo que ele fosse embora. Permaneceu naquela angústia alguns minutos, até que caiu num sono profundo e sem sonhos.

            Frank ficou sentado no chão, observando Gerard dormir, coração apertado. A voz do maior ecoava em sua mente. Não me deixe.

            Não me force a deixá-lo, Frank pensava consigo mesmo, outra e outra vez, adereçando-se a algo ou alguém não presente ali. Não me faça deixá-lo.

           

           


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Notas finais do capítulo

GENTEEEEEEEEEEEEEEEE desculpa tô sem tempo de responder os comentários direitinho, mas eu li e MUITO OBRIGADA!!! Prometo que os desse post eu respondo. Nhom nhom lindas!



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