Dez milhões de sentimentos passaram pela cabeça do homem, que, no final, acabou por ficar estático, de boca aberta, olhando a irritada bonequinha em sua mão.

- Vai ficar me encarando com cara de bunda por quanto tempo, querido? – Indagou, cruzando os bracinhos.

Jim sacudiu a cabeça, e começou a pensar melhor.

- Mitsra, é você mesmo?

- Não, não, sou a bezerra que morreu. Vim aqui contar minhas histórias do além. Luz branca porra nenhuma, aquela porcaria era colorida!! Parecia que eu tinha tomado um chazinho de cogumelo. – Bufou, fazendo um discurso grande demais.

- Mas deixe isso de lado. – Continuou, mexendo ansiosa nos cabelos brancos da boneca que agora era seu corpo. – Onde estão nossos filhos? E ele, voltou quando fui atrás? – Disparou quase que tudo junto, preocupadíssima.

- A Lorene ficou com a Sheila, mas o... – Não conseguiu completar a frase.

- VOCÊ DEIXOU A LORENE SOZINHA??????!!!! – Gritou, consternada. – Que tipo de pai você é?

- Eu não queria ter uma família incompleta, fiquei buscando por vocês... – Mitsra continuou olhando-o com um olhar repreendedor, ele encolheu os ombros.

- E se não conseguisse me trazer de volta? Aliás, depois teremos uma conversinha séria sobre o meu corpo... Me diz? Nunca mais veria a cara da sua filha? Ficaria vivendo de passado? – Ela continuava direta, dura. – Enfim... Sei que suas intenções são boas, e realmente deve ser insuportável viver sem parte da sua família, mas você tem que medir um pouco o parâmetro das coisas... – Ela assumiu um tom mais leve. – O que faremos com a Lô agora?

- Desculpa, não sei... – A encarou de novo. Baixou a cabeça. – Desculpa...

- Então trate de descobrir!! – Tentou rir. – Olha, vamos deixar as coisas do jeito que estão por enquanto. Confio na Sheila. Quantos anos se passaram?

- Dois, mas e o...? – Foi interrompido por um sorriso grande e malicioso da mulher.

- Ah, aquela criança não vão aceitar tudo quieto, não precisa se preocupar.

Jim não sabia se ficava com medo ou ganhava esperanças.

-x—

Resumindo, quando Mitsra foi atrás de seu filho, acabou sendo separada dele e trancafiada (perpetuamente) num calabouço. Sabia que seu filho continuava no Céu, seu instinto nunca falhava, e sabia melhor ainda que seu sangue corria nas veias do garoto, sangue de pessoas que não se submetem ao que não acreditam.

Apesar de preferir não ser uma boneca, Mitsra aceitava que ser uma boneca era “menos pior” do que ficar vegetando no calabouço daqueles hipócritas, certinhos, que ficam presos em seu mundinho e olhando para seu próprio nariz, achando que tudo era certo. Sim, ela sabia que havia pessoas e pessoas, ou melhor dizendo, anjos e anjos no Céu. Teve vários amigos em seus tempos de “pureza”, mas também entendia que várias das pessoas sorridentes tinham é uma careta no coração. Como podia ser? O Céu era pra ser um lugar único, uma utopia, um paraíso. Até agora ela não se conformava...

Ela observava sua filha sempre que podia, apesar de lhe deixar um pouco triste e nostálgica. Nossa, como o tempo passava rápido, Lorene estava tão grande. Olhava a menina encantada, escondida não muito bem atrás de um poste. Estava com o cabelo longo, branco como o seu, mas os olhos eram do pai, o que deixava Mitsra cada vez mais maravilhada. Viu Sheila despedir-se da sua nova filha e, percebendo a bonequinha, acenou. A verdadeira mãe acenou de volta, agradecendo. A antiga empregada cada dia se mostrava mais preciosa.

Jim às vezes também dava suas escapadas apesar de estar ocupado cuidando da academia, para ódio de Kate: uma mulher inteligente e capacitada que empregara como secretária. Riu consigo mesmo. Kate era muito irritável, como não contara que sua esposa era uma boneca, Jim sempre ria da mulher e se fingia de tarado. Algumas máscaras realmente são efetivas em deixar a dor de lado um pouco, refletiu.

Mas o que não deixava dúvidas sobre o casal era que sentiam muita falta de seu filho mais novo. Quando não estavam trabalhando ou perseguindo Lorene (eles se preocupavam um pouco pelo fato dela ser tão lerda e não perceber, mas deixavam assim porque era melhor pra eles) estavam olhando para o nada, pensativos e dispersos.

Sim, Mitsra trabalhava, sendo ou não boneca, continuava ajudando ONGs, anonimamente, porém. Pediu a Jim que fizesse a macumbinha que a transformou em boneca para trazer outras amigas suas do calabouço do Céu. A bonequinha era bem categórica e exigente pra escolher o novo corpo das amigas, sempre buscava o mais parecido o possível, ser uma boneca já não era bom, que pelo menos parecesse com você, era a sua visão de vida.

Obviamente, como o escritório ficava lotado de bonecas discutindo calorosamente o que fazer com o Greenpeace e similares, Jim fez outro escritório, secreto, já estava cansado de justificar que estava discutindo com ele mesmo para Kate, que tinha que demonstrar imitando vozinhas finas.

A academia ficava cada vez mais renomada. Jim decidiu, no começo, fazer uma escola só para garotos, não sabia o porquê, talvez esperava encontrar seu filho lá ou algo assim... A escola também focava em fugidos do céu e inferno, na verdade, todas as raças possíveis, apesar de terem vários alunos humanos. A terra santa e um diretor compreensivo atraíam-os. Pode-se dizer que Mitsra não gostou tanto da escola ser só de garotos:

- E a Lô?? Queria que ela estudasse aqui! – Fez um muxoxo.

- Não se preocupe, querida. Temos que admitir que o nome da Lorene não é tão feminino assim, não vai ser difícil mexer os pauzinhos. – Riu-se Jim.

- Ahh!? É feminino, sim!! Fui eu que escolhi!!

- Tal mãe com nome estranho, tal filha com o nome pior ainda!!! Que bom que adaptei o nome do nosso filho, coitado. Ficou normal...

- Normal demais!!! Nem acredito que você tirou o “sriel” dele!!!

- Ele deve é me agradecer até hoje!!!

Com o passar do tempo, Sheila deu dicas pro seu vizinho, Lion, a quem Lorene era muito apegada para entrar na Liberty Academy, Lorene foi atrás, como o planejado, e assim, para a felicidade de Mitsra, e de Jim também, Lorene entrou na academia de garotos.

--x--

- Então, Lorene. - Diretor Chrow olhou pra mim, hesitando. Pigarreou. - É difícil de falar, mas a coisa mais importante agora é... - Se interrompeu.

- Fala logo!!! - Eu e a boneca gritamos em uníssono e eu olhei confusa ela me dar um sorrisinho.

- Sam é teu irmão...