Mar de Lírios escrita por Jajabarnes


Capítulo 19
Um Pouco Mais de Tempo.


Notas iniciais do capítulo

Olá! Um capítulo grande pra tentar compensar a demora :D
Nos vemos nas notas finas!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/225285/chapter/19

“Sometimes you wonder if this fight is worthwhile
The precious moments are all tost in the tide, yeah
They're swept away and nothing is what ir seems
The feeling of belonging to your dreams”
Listen to your heart – Roxette.

 

Sem dizer uma palavra, apenas a puxei para perto de mim tentando confortá-la e, de alguma forma, tentando me certificar de que aquela chama de esperança ainda estava ali. De que era real.


.
Susana

 

Houve silêncio na cabine, até a tempestade pareceu silenciar. O calor e o aconchego dos braços de Caspian que me envolviam aos poucos foram acalmando as batidas aceleradas em meu peito. Podia ouvir o coração de dele, ressoando tranquilo e compassado. O meu próprio se apertou involuntariamente, e afastei-me de seus braços devagar, os dele deslizaram a minha volta, permitindo o movimento. Quando o olhei, sem dizer uma palavra, Caspian segurou meu rosto entre suas mãos e usou os polegares para secar as lágrimas que eu nem sabia que ainda escorriam. Uma hora inteira pareceu passar antes que um de nós quebrasse o silêncio. E eu era incapaz disso naquele momento.

—Está melhor? – a voz de Caspian estava rouca, foi um sussurro. Assenti.

—Você está bem? – sussurrei de volta, um fio de voz.

—Estou. – confirmou com calma.

—Acho... – parei com a garganta seca. – Acho que não vimos a mesma coisa, não é?

Caspian concordou comigo sem precisar usar uma palavra. Eu vi em seus olhos, agora e no momento que o feitiço foi quebrado, pelo susto em sua expressão, soube que não viu o mesmo que eu. Até porque, se tivesse visto, qual seria a razão de não estarmos juntos o tempo todo?

O silêncio recaiu mais uma vez, e as lembranças de tudo que vi povoavam minha mente, ainda frescas. A dúvida começou a despontar em seus olhos escuros e eu quis do fundo do coração jamais ter que falar sobre aquilo. Abri a boca levemente mas tudo que saiu foi minha respiração. Caspian, porém, começou em meu lugar.

—Eu vi meu pai. – disse, baixo. Olhei-o lamber os lábios e respirar fundo.

—E como foi? - instiguei-o, mantendo a voz cautelosa, eu sabia que era uma questão delicada para Caspian.

—Como esperado. – deu de ombros, um breve sorriso sem emoção passou por seu rosto. – Mas pensei que a conversa com Aslam seria mais esclarecedora.

Assenti algumas vezes, em silêncio. O ar pesou. Tudo que eu podia dizer, tudo que eu queria dizer, pareceu sumir da minha mente. Sem perceber, coloquei-me de pé, começando a caminhar pela cabine. Sequer notei quando comecei a falar.

—Eu pensei que poderia ter esperança... – falei, olhando pela janela. – Achei que, talvez, dessa vez seria diferente. Sequer sei porquê voltei, mas justamente por isso, por voltar quando não podia... achei que seria diferente.

Silêncio, até Caspian quebrá-lo.

—Como foi com você?

—Eu vi Pedro. – então contei a ele, sobre Pedro, sobre a carta e a conversa dele com Professor Kirke. Caspian não tirou os olhos de mim e ouviu paciente. – Todas as vezes que viemos a Nárnia, o tempo em nosso mundo não passou até que retornássemos. Anos aqui, nem um segundo lá. Pedro não teria como saber que vim para Nárnia sem que eu tenha voltado para a Inglaterra.

Pisquei para tentar desfazer a ardência em meus olhos, cruzei os braços na frente do corpo somente por não saber o que fazer com eles.

—Não há como saber. – Caspian chamou minha atenção de volta para si. - Bem, eu não possuo qualquer experiência entre mundos, mas se alguém ficasse, o tempo certamente correria em seu mundo normalmente.

—Também não há como saber sobre isso. - sorri-lhe de leve, com tristeza. – Ninguém jamais ficou.

Caspian ergueu-se e caminhou até mim, com um brilho diferente nos olhos.

—Não é o que as lendas dizem. – um ar tranquilo de sorriso trouxe serenidade ao seu rosto. Aguardei que continuasse. – Dr. Cornélius sempre contava sobre os primeiros reis que governaram Nárnia. Foram trazidos de outro mundo, e ficaram. – sem desviar os olhos dos meus, Caspian acariciou meu rosto como sua voz acariciava meus ouvidos. – O tempo continuou a passar ainda assim, não?

Um sorriso começou a se formar em meu rosto, mas a lembrança da casa em Finchley, da aliança em meu dedo e, principalmente, das palavras de Aslam na praia, voltaram a minha mente e meu coração se apertou de novo. Fechei os olhos, quase aconchegando meu rosto na mão de Caspian.

—Acho que as coisas não serão tão simples para nós, Caspian. - segurei-me em seu braço estendido até alcançar sua mão em meu rosto. Não tentei esconder o leve embargo em minha voz. A dele, soou rouca.

—Por quê?

Respirei fundo, apesar da dor no peito não deixar. Como um sussurro, as palavras saíram.

—Porque eu não ficarei.

 

“Com tudo o que viveram, me conheceram um pouco aqui, assim poderão me conhecer melhor lá.”. A voz de Aslam ecoou em meus pensamentos.

“Então acho que não aprendi tanto quanto os outros.”. Comentei, sentada sobre a areia. Aslam riu.

“Ninguém tem o mesmo futuro que outras pessoas, ainda que sejam próximas, como irmãos, ou tenham qualquer semelhança em suas histórias. Existem escolhas e razões diferentes para cada um.”.

“Se tem uma coisa que Lúcia me ensinou, foi a acreditar antes de ver. E não duvido. Mas para mim, é mais difícil acreditar quando não vejo e também não entendo.”. Comentei, brincando com a areia em meus dedos. Eu sorri. “Gostei muito de ter voltado, mas isso me deixou bastante confusa.”.

Aslam me olhou com doçura e uma dose de humor, mexendo as orelhas.

“Tudo a seu tempo, Susana. Você não entenderá logo. No entanto, é necessário. Nada acontece por acaso ou passa desapercebido por mim. Se você veio a este mundo outra vez, foi porque você precisava, assim como Caspian.”.

Franzi o cenho. As palavras de Aslam acalentavam o coração mas não diziam um veredito. Na verdade, seria tolice esperar por algo assim. Ele não diria um, não era do seu feitio. Aslam nos deixaria livres para vermos por nós mesmos. Ainda assim, no fundo do meu coração e de minha mente, eu via o final.

“Eu não ficarei, não é?” falei, não era bem uma pergunta. Era a resposta para a qual todos os sinais e evidências indicavam. Ergui o olhar para Aslam quando ele não respondeu, e encontrei seus olhos dourados sobre mim. Para ele eu era um livro aberto que Aslam sempre lê ao simples cruzar de olhares, ou até mesmo sem olhar. O conforto que encontrei em suas orbes douradas levaram à mesma resposta que minha razão.

“Da última vez que esteve em Nárnia, vocês deixaram uma questão em aberto. O país inteiro notou, com toda certeza.”. Aslam riu, e eu o acompanhei, sentindo as bochechas corarem. Desviei os olhos para a areia. “Eu estou sempre com vocês, Susana. Conheço seus anseios, e suas aflições. Sei também o quanto pode ser doloroso quando as questões inacabadas incomodam os corações. Algumas delas precisam ser saciadas".

“O que não significa que deixarão de doer.”. Completei, num sussurro. Aslam assentiu.

“Sei que farão a coisa certa. Compreenderão quando for a hora, e saberão todos os motivos. É preciso ter paciência.”.

 

A voz de Aslam ecoou em minhas lembranças. Os olhos de Caspian a minha frente aguardavam ansiosos por uma resposta. Engoli em seco.

—Ficar em Nárnia não faz parte do meu futuro, independente do que eu queira. – terminei a tempo de evitar um soluço, apertando os lábios. Meu coração doía. Caspian franziu o cenho, ponderando em minhas palavras.

—Ele disse que irá partir? – perguntou.

—Aslam é bondoso demais para determinar algo em nosso futuro. Ele não revelaria. – expliquei. – Tudo o que vi me deu uma resposta.

Caspian pareceu ponderar no que lhe disse. Meu peito ardeu, a garganta secou. Doía como brasa, mas era nítido demais para não ser a única explicação. Por quaisquer que sejam as razões de Aslam, ele sempre sabe o que faz. Continuei, depois de uma breve pausa:

—O destino que os primeiros reis tiveram não é o nosso.

Saiu como um sopro, uma brisa quente que secava as lágrimas em minha pele. Meus olhos embaçaram, minha mente subitamente exausta. Caspian não se moveu e fez o silêncio perdurar pelo que pareceram horas. Olhá-lo foi impossível. O silêncio era profundo, pesado, denso. Sua mão em meu rosto, dava-me conforto ainda assim. A dor crescia dentro de mim, prendendo-me a algo com qual eu não tinha forças para lutar. Qualquer esforço que fizesse, seria vão.

Num átimo, senti os lábios de Caspian contra os meus. O calor de seu corpo estava próximo, o repente fez-me olhá-lo por mero segundo, o suficiente para perceber o cenho franzido acima dos olhos fechados. A intensidade daquele beijo arrebatou-me. Senti o calor de seu corpo colar-se ao meu e qualquer mundo a nossa volta desaparecer. O frio que circulava as borboletas em meu estômago tornou-se o crepitar de uma chama. Então, tão repentino quanto começou, o toque gentil e determinado dos lábios dele deixaram os meus.

Abri os olhos e encontrei os dele observando-me, tão intensos quanto seu beijo. Nossa respiração se misturava no curto espaço entre nossos rostos. Sem desviar o olhar, Caspian disse:

—Aslam me falou sobre escolhas. Sobre decidir o que fazer. Eu tenho a minha escolha feita há muito tempo. E lutarei por ela. Até onde minhas forças aguentarem. – tocou meu rosto mais uma vez. – Meu desejo é que nossas lutas sejam as mesmas.

—Lutaríamos por um destino que não mudaria.

—Eu lutaria mesmo assim.

Ao dizer isso, um lágrima solitária rolou pela face de Caspian. A dor cortou meu peito outra vez, prendeu minha voz, torceu-se e mergulhou fundo em minha mente.

—Sempre há uma chance- ele disse. – Você estar aqui é prova disso.

Suspirei.

—Estar aqui foi um presente que eu não mereço. – disse a ele, tranquilamente. – E quero ter cada segundo vivido da melhor forma.

—Não posso lutar sozinho, Su. – tornou ele, a voz mais baixa. – Não posso lutar para que fique se não quiser ficar.

—Caspian. – protestei, aproximando-me e mantendo seus olhos fixos nos meus. – Meu maior sonho seria ficar em Nárnia, ao seu lado. Mas não se trata apenas de nós dois. Há algo mais, uma razão maior. Seja ela qual for, parece que somos peças importantes. – respirei. – Importantes o suficiente para sermos os peões de sacrifício.

Caspian negou com a cabeça, afastando-se um pouco. Senti meu coração rachar. Pisquei. Minha garganta estava seca, a voz sumira bem como as palavras. Não consegui desencoraja-lo, nem concordar sabendo do contrário. Busquei algo mais para dizer na maior velocidade possível, algo que tornasse as coisas mais fáceis. Abri a boca para começar, mas nada chegou para ser dito, como um pesadelo.

—Não posso acreditar nisso.

Seu tom de voz havia mudado, o cansaço era nítido E me perguntei se já estava ali antes. Além da exaustão, vi também um lampejo do que pareceu ser um brilho de dor escondido em seus olhos.

—Por favor, me diga que também não acredita nisso. – ele pediu. – Temos escolhas, Susana, sempre teremos.

—Não sobre coisas que fogem ao nosso controle. – lembrei, sentindo as lágrimas que segurava rolarem por meu rosto. – Caspian, veja, o que mais desejo é ficar, mas tudo diz que voltarei para casa.

Ele passou as mãos nos cabelos e no rosto, sentando-se. Aproximei-me devagar e segurei suas mãos.

—Eu estive na Inglaterra. – disse. – Na visão. E não vi ninguém, porém havia uma aliança em meu dedo... Eu não sei quem tinha o par do anel... Mas isso tudo, a conversa de Pedro, Aslam... Tudo diz a mesma coisa.

Caspian esticou a mão e acariciou uma mecha de cabelo antes de sussurrar:

—Está tarde. Podemos terminar essa conversa outra hora. Precisamos descansar... e pensar.

Mordi um lábio e então assenti uma única vez. Algo em mim pensara que Caspian poderia ficar ali até amanhecer, a última coisa que queria era me afastar dele naquele momento, depois de tudo o que aconteceu. Quando Caspian levantou, a sensação de angústia e de que estávamos deixando as coisas mal esclarecidas invadiu-me fazendo meu coração disparar. Quis gritar, segurá-lo ali e só abraçá-lo. Ou ao menos dizer-lhe o que devia, porém essa conversa devia esperar. Caspian sussurrou um “boa noite" e afastou-se em direção a porta. Longe dele, o ar mais frio me atingiu em cheio. Movi-me quando ele segurou a maçaneta, num rompante.

—Caspian. – chamei, fazendo-o parar e virar-se para mim. Avancei em direção a ele. – Eu o amo. Não importa o que aconteça, nunca esqueça disso.

Pela mão, Caspian levou-me um passo mais perto de si e deixou um beijo calmo e intenso em meus lábios. Entretanto, quando se afastou, aquele brilho ainda estava em seus olhos, lá no fundo, fazendo meu coração se apertar ainda mais. Sem dizer mais nada, Caspian deixou a cabine e as lágrimas voltaram a meu rosto antes que pudesse contê-las. Mordi o lábio e busquei a cama para sentar. Havia algo mais importante que nós, independente do que pudéssemos desejar ou não. Haviam mais detalhes a serem revelados, razões a serem explicadas e só seriam no seu devido tempo.

No entanto, porém, o que mais me doía era aquele lampejo de dor que percorreu os olhos de Caspian. Sentia em meu íntimo que não se tratava da incerteza quanto as circunstâncias, se tratava de mim. Sou incapaz de mensurar como a possibilidade de feri-lo sufocava-me. Apesar de tudo, ainda teríamos uma longa jornada até nosso objetivo e não pretendia desperdiçar esse tempo que dispunha ao seu lado. Bem perto do amanhecer, com as lágrimas secas no rosto, finalmente consegui adormecer.

 

[...]

 

Como se meus maiores medos se tornassem reais, não vi Caspian o dia inteiro. Nem pelos dois dias seguintes. Os últimos de tempestade. Depois de longos e exaustivos treze dias em auto mar sem sequer um minuto de sol e – em grande parte - sem mastro, finalmente a tempestade cessou. O alívio era incompleto, pois ainda não havia sinal de terra e as provisões acabariam logo.

Saí da cabine assim que as últimas gotas de água desceram das nuvens. Havia uma atmosfera de tranquilidade, de renovação, como as primeiras flores e os primeiros dias ensolarados depois do inverno. Ajudei na limpeza do navio que nos ocupou do raiar do dia ao pôr-do-sol. Nessa ocupação, Caspian não parou um instante assim como seus marinheiros e, talvez, esse tenha sido o motivo de não termos nos falado mais que o necessário.

Ripchip tornou-se minha dupla de limpeza e ficamos falando o tempo inteiro. Até Eustáquio também ajudou, disse que faria qualquer coisa para pegar um pouco de sol. No fim do dia estávamos exaustos e com comida e água reduzidos, mas o alívio do fim da tempestade ainda era maior. Toquei a borda do Peregrino, olhando o pôr-do-sol no horizonte, tingindo o céu de roxo, rosa e laranja. Soprava uma brisa suave, sinal de uma calmaria que, embora bem-vinda, todos no fundo esperavam que não durasse muito.

Sentei em um dos barris e baús ali no convés, recostando ao lado da escada que levava ao manche. O balanço suave do navio embalou minha espera. Fiquei ali vendo o dia dar lugar a noite, quando os tons exuberantes do pôr-do-sol deram lugar ao céu estrelado de tirar o fôlego. Percorri o manto negro com os olhos, na esperança de que a Estrela Azul despontasse em qualquer lugar, mas não havia sequer um sinal. Apenas os comuns pontos de luz.

No toque da brisa, a suavidade das palavras de Aslam voltaram aos meus ouvidos, como tem sido desde que lemos o feitiço. Quatro dias atrás. Não era como se sequer nos falássemos, mas havia algo errado entre nós dois. Caspian estava diferente, distante, sempre se ocupava quando estávamos perto um do outro. Não o culpava. Aquela conversa mal resolvida também estava me matando. Porém, apesar da dor, era preciso confiar. E depois do que houve na deposição de Miraz, decidi que não falharia de novo nesse propósito. Aguardar era a melhor opção no momento.

 

“Do que tudo se trata, exatamente?” Perguntei, sentindo a areia escorrer por meus dedos. “Sei que conseguiremos resgatar os narnianos, mas parece não ser só isso.”.

“E não é.”. Aslam respondeu. “Sei o que se passava entre você e seus pais, Susana... Phil é um bom rapaz, mas independente de sua decisão, você deverá voltar para junto de seus irmãos, para o seu próprio bem. Portanto, certifique-se de quem quer que escolha, se escolher, lhe permita retornar para casa.”.

Ponderei por alguns segundos.

“Quando vou partir?”. Foi inevitável perguntar.

“Na hora certa, somente.”. Ele pausou. “Mas lembre-se, existem coisas que não estão no seu controle, ou no meu.”.

“Não quero magoá-lo...”. Senti os olhos molhados, mordi o lábio com força. Nada específico foi necessário para saber de quem eu falava.

“Ele, na verdade, é uma das razões que permitiram a sua volta.”. Explicou. “Se despedir de você e de seus irmãos foi algo com o qual Caspian conseguiu lidar muito bem no começo, mas não foi um simples até logo. Foi um adeus. Isso o estava ferindo demais e logo interferiria em outros aspectos.”.

“Ainda assim, haverá uma despedida afinal.”. Lembrei. “O ciclo não se repetiria?”.

“Não se fizerem as escolhas certas.”. Respondeu. “Tudo o que Caspian desejava era um pouco mais de tempo, e eu vi que esse tempo seria necessário.".

 

A coragem faltou para falar a Caspian os pormenores. Primeiro, por que temi feri-lo e piorar as coisas. Segundo, por que ainda precisava entender tudo o que significava. Isso parecia me consumir aos poucos.

—Um pouco mais de tempo... – repeti, um sussurro involuntário levado pela brisa.

—Para quê, Majestade? – a voz de Rip fez-me virar para ele de repente, sobressaltando o próprio. – Oh, desculpe, perdoe minha intromissão. Eu havia perguntado se precisava de algo.

—Ah, desculpe, Rip. – sorri um pouco. – Não o ouvi. Estou bem, não se preocupe.

—Estranhei não encontrá-la lá em baixo.

—Hoje quis ver as estrelas aparecerem. - sorri-lhe.

—Oh, uma ótima escolha para encerrar um dia de trabalho. – concordou, animado, caminhando gracioso pela beirada até perto de mim. Seus olhinhos piscaram em minha direção e a pena vermelha oscilou no sopro suave da brisa.

—Só é uma pena a Estrela Azul estar se escondendo de nós.

—Certamente – concordou Rip. – Mas tenho certeza que logo o vento nos alcançará e ver a estrela será questão de tempo.

Apenas sorri. Sabia que ele tinha plena certeza daquilo. Rip não disse mais nada, apenas apoiou-se o suficiente para olhar o céu. E permanecemos assim, em silêncio, ouvindo o som do navio sobre o mar.

Entretanto, aquela calmaria aconchegante depois da tempestade custou tempo demais a passar. Os primeiros dias se foram, sem vento, sem sinal da estrela. As rações já haviam sido reduzidas e a temperatura começou a subir. Precisávamos achar terra, então a solução foi remar. Com o esforço a mais, a fome e a sede intensificavam. Caspian e eu nos falávamos sempre que preciso, mas aquela sensação estranha continuava ali. As coisas ainda não haviam se encaixado e não iriam até conversarmos direito, o que vínhamos evitando.

Foi assim por quase uma semana. Os dias eram quentes, pouca comida, pouca água, nenhum vento. No sexto dia, durante a hora do almoço, em que recebíamos parte de nossa porção diária, notei a ausência de Eustáquio. Fazia algum tempo que não o via, então fui procurá-lo. Desci até os dormitórios onde os marinheiros atavam suas redes. Estava silencioso lá embaixo e apenas Tarvos era visível no amplo cômodo.

—Tarvos, por favor, você viu Eustáquio? – perguntei, olhando em volta.

—Majestade. – Tarvos fez uma reverência. – Ele está ali. – indicou uma rede. Um resmungo baixo veio logo em seguida. Agradeci Tarvos com um aceno e aproximei-me.

— Aí está você.

Ele resmungou, mal abrindo os olhos. Notei sua testa repleta de suor e os lábios pálidos. Estiquei a mão para tocar seu rosto e o calor de sua pele chocou-se com minha mão.

—Por Aslam, está ardendo em febre! Eustáquio? – tentei de novo. Ele revirou os olhos, empurrando minha mão fracamente.

—Não, não quero ir trabalhar...

Suspirei. Tratei de tirar o colete que ele usava e abrir alguns botões da camisa para que a roupa não o aquecesse ainda mais.

—Tarvos? – chamei. O minotauro tornou-se a mim. – Sabe há quanto tempo ele está assim?

—Desde de hoje pela manhã, alteza.

—Porque não me avisaram? – perguntei, calmamente.

—Bem, talvez por desencontro, minha senhora. – respondeu. – Lorde Drinian saiu há poucos minutos para informar ao Rei Caspian.

Assenti, ponderando, e o agradeci. Tarvos se colocou a disposição para o que eu precisasse, mas não havia muito o que fazer. Sem saber o que Eustáquio tinha, com pouca água e comida, cuidar dele e esperar que se recuperasse seria uma perda de tempo e de recursos, a grosso modo. Então, o melhor era sará-lo e assim proteger a todos, caso fosse contagioso.

Tateei meu cinto em busca do elixir e chamei por Eustáquio de novo, dando leves batidinhas em seu rosto. Ele conseguiu abrir os olhos quando mencionei ter um remédio para ele. Com cuidado, deixei uma gota do elixir cair em sua boca. Ele fez uma careta, disse-lhe para ficar deitado e segui para fora, até a cozinha. Todos já haviam se servido quando cheguei até Rince.

—Por favor, coloque a minha porção de água e comida junto a de Eustáquio. – disse a ele. Rince piscou.

—Mas senhora...

—Está tudo bem, é só por agora. – tranquilizei com um breve sorriso.

Rince assentiu e serviu a comida e a água. Levei com cuidado de volta ao dormitório encontrando Eustáquio sentado em sua rede. Respirei aliviada, ele percebeu que me aproximava, sobressaltando-se. Seus olhos recaíram imediatamente em minhas mãos.

—Oh, graças a Deus! – ele pegou o copo com água e entornou de uma só vez.

—O mais sensato seria beber devagar já que essa é a última água que você terá em horas. – comentei, oferecendo-lhe a comida. Eustáquio olhou o copo em suas mãos e pareceu pensar um pouco, antes de retrucar.

—Fala isso porque não foi você que queimou de febre a noite toda. – apesar da língua afiada, sua voz não trazia o comum deboche, na verdade, foi uma constatação.

—Devia ter me falado.

Eustáquio olhou de mim para a comida, pegando-a de minhas mãos.

—Obrigado. – falou. – Que horas que eu falaria se não me deixam fazer outra coisa que não trabalhar?!

—Todos devem ajudar Eustáquio. Eu queria poder fazer mais, inclusive.

Ele me olhou e hesitou, mordendo um pedaço de cenoura.

—Parece que Caspian não quer que se esforce muito. – hesitou de novo. – Por que ele é tão legal com você?

Eu ri. Mais de nervosismo do que qualquer outra coisa.

—Caspian é sensato. Conheço muito pouco sobre os trabalhos em um navio, então existem poucas coisas em que serei útil. – expliquei, não deixava de ser verdade.

—Pergunto-me o que faz todos pensarem que eu sei alguma coisa. – resmungou.

—Tente aprender, então. – encorajei. – Eu estou tentando. Nunca se sabe quando um conhecimento será especialmente valioso.

Eustáquio resmungou algo que não entendi, e achei melhor deixar assim. Aproximei-me de uma escotilha para olhar para fora enquanto Eustáquio continuava comendo. O céu permanecia limpo e com poucas nuvens como na última semana inteira. Boa parte de nossos mantimentos foram perdidos, sendo um dos motivos dessa calmaria ser tão apreensiva para nós.

—Eu vejo como ele olha para você. – a voz de Eustáquio espantou-me, virei para ele num susto.

—O que? – perguntei por reflexo. Já podia sentir a vermelhidão se aproximando de meu rosto.

—Apesar do que muitos aqui acham, eu não sou tonto, Susana. – rebateu, rolando os olhos e levando à boca as últimas porções de sua refeição. – Sei que se conhecem há bastante tempo, e está claro como água o jeito que olham um para o outro. – ele fez uma pausa, desviando a vista. – É como tio Raphael olha para tia Helena.

Meus lábios se entreabriram involuntariamente. Fecharam e abriram de novo, sem saber o que dizer. Eustáquio ocupou-se terminando de comer e o silêncio reinou ali, quebrado apenas pelos batimentos em meu peito e o som de passos ouvido a distância. Estendi as mãos para pegar o prato e o copo vazio.

—Fique descansando pelo resto do dia, está bem? – disse a ele. – Se não se sentir bem outra vez, peça para me chamar.

Ele assentiu e eu saí rumo a cozinha com as palavras de Eustáquio ecoando dentro de mim. Ajudei na limpeza do lugar junto com Rince, ao longe podia ouvir o canto compassado dos marinheiros. “Remem!”. Queria ocupar a mente para não pensar nos últimos acontecimentos, e esquecer a fome e a sede que vinham fazer companhia, então dediquei-me pelo resto da tarde em ajudar, seja para fazer o que fosse.

Antes do pôr-do-sol, o navio parou pois chegara a hora de trocar o turno. Neste intervalo, alguns homens decidiram se refrescar no mar. Quando retornaram, fomos servidos da segunda porção do dia e pensei que o rugido em minha barriga não poderia ficar maior até que peguei minha parte. Comi devagar, saboreando cada pedaço e cada gole, parecia a melhor comida do mundo.

Ao terminar, fui abordada por Ripchip que, com sua nobreza e gentileza de sempre, argumentou o quanto nosso progresso foi atrasado pela tempestade. Fui até a cabine buscar o jogo de xadrez, assim que abri a porta, vi Caspian olhando por papéis sobre a mesa. Ele parou e ergueu a visão assim que me ouviu entrar.

—Desculpe – falei. – Não sabia que estava aqui.

—Eu só vim buscar umas roupas. – explicou, mostrando a camisa dobrada e amassada em suas mãos. Murmurei um “ah" ao mesmo tempo que reparei o quão úmidas estavam as roupas que ele vestia, provavelmente do banho de mar. Assenti uma vez e aquele silêncio estranho se colocou entre nós. Era incômodo demais.

—Acho que...

—Precisamos...

Falamos ao mesmo tempo e nos interrompemos. Caspian umedeceu os lábios e olhou-me um pouco hesitante, antes de dizer:

—Você está bem?

Levei alguns segundos para processar a pergunta com a resposta.

—Vou ficar. – confessei, dando de ombros. – E você, como tem estado?

—Bem ocupado. – um breve ar de sorriso ameaçou aparecer, mas não passou de segundos.

—Eu imagino. – confessei, sabia que não era uma desculpa, embora pudesse ser usada como. – Vou deixá-lo se trocar.

E saí, aguardando do lado de fora com o peito apertado. Aquele silêncio incomodava demais ao passo que eu não sabia como rompê-lo. Não demorou nada, e a porta foi aberta. Caspian disse que eu já podia entrar, porém não fez menção de sair. Adentrei a cabine e agradeci, no entanto, Caspian não deixou que eu passasse por si. Seus dedos roçaram minha mão lançando um choque por minha pele. Congelei onde estava e ergui o rosto encontrando seus olhos tão perto. Sua feição trazia certa tensão e quase imperceptível agonia.

—Não quero que as coisas fiquem assim entre nós. – sussurrou. – Me perdoe por andar tão distante.

—Está tudo bem, Caspian. Eu entendo. – sussurrei de volta. – Só quero fazer o possível para que nosso tempo aqui seja bom, que possamos ter lembranças maravilhosas nos tempos que virão. E se isso significa estar a sós para pensar um pouco, está tudo bem.

Ele fechou os olhos por um segundo, e quando abriu, lá estava de novo aquele lampejo de dor escondido.

—Eu ainda não desisti. – havia uma nota de mágoa em sua voz.

—Caspian... – ele calou-me com um beijo na testa.

—Encontrarei uma solução. – prometeu, envolvendo-me com um abraço quente e aconchegante. Permiti-me deitar a cabeça em seu peito e retribuir o abraço que não sabia precisar tanto até aquele momento.

Um pouco depois, Caspian saiu para descansar, iria retornar para os remos na próxima rodada. Deitei-me cedo naquela noite, embora dormir tenha sido demorado. Na tarde seguinte, um vento breve e fraco nos aproximou de um dorso rochoso deitado sobre o mar. Depois de semanas, finalmente havia terra à vista.


“I wont't give up on us
Even if the skies get rough
I'm giving you all my love
I'm still looking up"
I won't give up – Jason Mraz.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Que tal? Espero que tenham gostado :)
Reviews são muito bem vindos, viu? Haha
Estou curiosa pra saber a opinião de vocês sobre essa revelação do feitiço *.*
Se cuidem!
Até o próximo
Beijos!!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Mar de Lírios" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.