Kuroi Crystal escrita por Luciane


Capítulo 16
Capítulo 15 - Inocência manchada




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            Karin nem ao menos viu como ele havia feito aquilo. Apenas olhou horrorizada para a faca sendo arrancada de sua mão e, num movimento rápido, ir parar em seu pescoço. Não saberia dizer se os movimentos dele é que eram extremamente rápidos, ou se seus reflexos é que diminuíam consideravelmente quando estava na presença dele. Aquele homem possuía o incrível dom de deixá-la completamente aterrorizada.

Sempre fora assim. Desde criança, sempre teve medo dele. Mas o enfrentava. Não se deixava abaixar a cabeça, mesmo recebendo severas punições por isso. Mas, quando cresceu mais um pouco e deixou de ser uma criança, as coisas mudaram. Desde os seus doze anos, quando o nível de violência e de “punição” passou a se diversificar, que ela não conseguia mais contê-lo. Às vezes tentava escapar, se esconder, fugir... Porém, quando estavam frente a frente, raras vezes ela conseguia reverter a situação.

            Contudo, agora seria diferente. Não iria permitir que ele tivesse o que queria mais uma vez. Iria detê-lo, nem que para isso tivesse que matá-lo.

            Agarrou com força as mãos dele, tentando arrancar a faca que mantinha em seu pescoço. Enquanto fazia isso, reparou que ele sorria, parecendo não fazer o mínimo esforço para impedir que ela conseguisse tirar tal objeto de suas mãos.

            -Se tivesse voltado para casa conosco hoje cedo, talvez eu não fosse obrigado a te machucar. – Ele disse num tom de voz debochado, pressionando levemente a lâmina no pescoço da garota.

            Juntando todas as forças que possuía, Karin conseguiu empurrá-lo. Assim que viu-se livre, ameaçou fugir, no que foi prontamente impedida por ele.

            Minoru agarrou fortemente os punhos da sobrinha e pressionou-a contra o fogão.

            -Me solta! – Karin ordenou, apenas conseguindo que ele risse do terror evidente em sua voz. – Me solta! – Ela repetiu, gritando.

            Mas foi calada pelos lábios dele que se grudaram aos seus de uma forma que a enojou. Ao mesmo tempo, sentiu uma forte ardência nas costas.

Quando afastou sua boca da dela, Minoru a ouviu gritar em desespero e dor. Só então reparou no fogo aceso sobre o fogão. Puxou-a de volta, jogando-a de costas no chão, para apagar o fogo em sua blusa. Karin gritou novamente.

 

*****

            Os dois já estavam próximos à república quando Yuuhi parou subitamente. Hideki o olhou, curioso, e indagou:

            -O que foi, Yuuhi?

            O adolescente ficou calado por alguns instantes, antes de dizer:

            -Ouviu isso?

            -Isso o quê?

            -Não sei. Pareceu um grito.

            Hideki piscou.

            -Um grito? Não, eu não ouvi.

            -Parecia um grito de mulher. Mas deve ser impressão minha. Essa vizinhança é pacata demais para ter mocinhas em perigo. – Ele fez pose – É uma pena para um herói como eu.

            Hideki, no entanto, ignorou a brincadeira e continuou a tentar ouvir qualquer coisa. Em vão, pois as ruas, àquela hora da noite, encontravam-se no mais absoluto silêncio. Porém, pensou acerca das palavras de sua mãe, que andava preocupada em deixar Karin sozinha na República e, em meio à “balada” tivera a súbita sensação de que algo de ruim poderia estar acontecendo à filha. Hideki não era de levar muito a sério tais ‘pressentimentos’ de Maaya, mas nesse momento algo lhe disse que ela poderia ter razão.

            E, sem dizer qualquer palavra, começou a correr em direção à República.

            Confuso, Yuuhi o seguiu na mesma velocidade.

 

*****

            Gemendo de dor, ela virou-se de lado, tirando as costas queimadas do chão. Encolhendo-se, fechou os olhos, desejando que quando voltasse a abri-los, despertasse daquele pesadelo sem fim. Sentia-se aflita, enojada... Apavorada com o que estaria por vir. Ouvindo os passos em sua direção, apertou mais as pálpebras. Sabia que não teria forças para lutar. Lembrou-se da primeira vez em que aquilo acontecera e da esperança inútil que ela nutria de que alguém apareceria para protegê-la. Mas não havia ninguém por ela. Seus pais e irmão estavam mortos e sua tia, do cômodo ao lado, se esforçava em fingir que nada estava acontecendo. Por um instante, voltou a imaginar que alguém poderia chegar para salvá-la. Ao mesmo tempo, sentiu-se tola por isso.

            Largando a faca sobre a mesa, Minoru usou as mãos para rasgar facilmente o restante do tecido da camisa de Karin. Num único movimento, arrancou-lhe a peça de roupa, deixando-a com o sutiã à mostra. A garota voltou a gemer quando ele a virou, encostando novamente suas costas queimadas ao chão. Ao sentir as mãos dele indo de encontro aos botões de sua calça, sentiu o estômago revirar e, mesmo com os olhos fechados, algumas lágrimas começaram a escorrer por entre suas pálpebras. Há até poucos minutos, sentia-se tão segura. Acreditava, realmente, que estaria em segurança naquela República. Mas agora via que estivera enganada.

            Entretanto, foi surpreendida ao sentir o corpo dele, subitamente, sair de cima do seu. Hesitante, abriu os olhos e mal pôde acreditar no que via. Alguém chegara para salvá-la. Primeiramente, tudo o que conseguiu identificar foi a silueta de um rapaz que segurava Minoru pelo pescoço antes de desferir um soco na face dele. Não demorou até reconhecê-lo, o que lhe ocasionou ainda mais surpresa.

            -Kawamoto... – Sussurrou, incrédula.

            Ao ouvir a voz baixa a pronunciar o seu nome, Yuuhi pareceu esquecer-se de Minoru por um instante, apressando-se em olhá-la para constatar se ela estava bem. Assim que chegara àquela cozinha, achara que Sayuki estivesse desacordada e foi um inesperado alívio ver que ela estava consciente.

Minoru aproveitou o breve instante de distração para levantar-se do chão e, numa velocidade incrível, iniciar sua fuga. Yuuhi apressou-se em segui-lo. Ao chegar à sala, parou por um instante ao encontrar Hideki que acabara de descer as escadas.  Logo que chegaram à casa e encontraram a porta aberta, eles haviam se separado, indo Hideki procurar no andar de cima enquanto Kawamoto procurava embaixo.

Ao avistar aquele homem sair correndo porta a fora, Hideki expressou toda a sua preocupação em apenas uma pergunta aflita:

            -E a garota?

            -Tá na cozinha. – Respondeu Yuuhi, antes de ameaçar voltar a seguir o fugitivo.

            No entanto, Hideki o segurou pelo braço e pediu:

            -Cuida dela. Eu pego o desgraçado.

            E, antes que o mais novo pudesse responder qualquer coisa, Hideki saiu correndo pelas ruas, no encalço de Minoru.

            -Er... Eu? – Yuuhi enfim disse, ligeiramente apavorado com a missão que acabara de receber.

            Adoraria perseguir o “tio abusador” e dar-lhe umas boas lições. Encararia qualquer briga sem temor algum, mas a idéia de ter que cuidar de uma garota naquela situação o assustava. Não fazia a menor idéia do que iria fazer ou dizer. Talvez seria bem mais simples caso se tratasse de qualquer outra menina. Mas era Sayuki Karin.

            Vencido, voltou para a cozinha. Parou diante da porta, olhando um tanto assustado para a cena: Karin estava deitada de lado, encolhida no chão com os braços cruzados sobre os seios. Seu olhar estava totalmente opaco, distante.

            Novamente, ele perguntou-se o que deveria fazer, ao mesmo tempo em que sentiu um forte aperto no peito. Uma estranha angústia ante a sensação de incapacidade que lhe corroia no momento.

 

*****

            -Embora? – Choramingaram Tiemi e Harumi em uníssono. Realmente estavam se divertindo na festa.

            Mesmo chateada por decepcionar as jovens, Maaya confirmou:

            -É, embora. Mas vocês não precisam ir, podem ficar, se quiserem. Eu vou a pé mesmo. Jean e Kairi levam os carros.

            -Eu não dirijo. – Comunicou Kairi.

            Maaya se surpreendeu com a confissão, mas deixou isso de lado, por hora:

            -Então, Jean e Miyu levam os carros.

            -Eu dirijo, sim! – Desesperou-se o chinês, já conhecendo as ‘incríveis’ habilidades de Miyu ao volante.

            -Bem, se May-chan vai, vamos logo todos. – Sugeriu Luna – Eu estou mesmo caindo de sono.

            Ignorando a sugestão da amiga, Tiemi indagou:

            -Pra que tanta pressa em ir embora, May? Ainda não são nem duas e meia da matina. E não venha me dizer que não está se divertindo porque eu te vi de papo com um cara super gato.

            -É. – Maaya confirmou – Um “gato” apenas sete anos mais velho que meu filho. O que te faz pensar que eu tenha qualquer interesse em continuar esse “papo”, Tiemi? Vamos, decidam logo se querem ir embora ou se preferem ficar, porque eu vou de qualquer maneira.

            Alguns minutos de plebiscito depois, a maioria decidiu que seria melhor irem logo embora. Já estavam saindo do local, quando Manami olhou ao redor, finalmente dando falta de “algo”.

            -Cadê o Yuu-chan?

            -Ele foi mais cedo, com o Hideki. – Respondeu Tiemi.

            -Er... Eles foram mais cedo, é?! Tem muito tempo isso?

            -Tem mais de uma hora, Nami-chan! Não acredito que só agora você sentiu falta do seu namorado.

            Manami não respondeu. Apenas começou a torcer, em silêncio, para que Yuuhi e Hideki não tivessem arruinado os seus planos.      

 

*****

            Ela soltou um gemido de dor quando Yuuhi passou um pano molhado na queimadura em suas costas. Estava sentada numa cadeira na cozinha, segurando o que restara de sua blusa sobre os seios.

            Em silêncio, Yuuhi colocou suavemente os cabelos dela por cima de um dos ombros, observando-lhe melhor as costas. Havia inúmeras cicatrizes sobre a pele, umas bem antigas, outras mais recentes. Hematomas, marcas de cortes e queimaduras. Não apenas nas costas como também sobre os ombros. Lembrou-se da ocasião em que ela veio lhe pedir uma camiseta emprestada, usando uma blusa de Maaya. Afinal, naquele dia, os cabelos dela estavam soltos apenas para que escondessem as marcas em seus ombros. Na certa, a saia de seu uniforme era mais comprida do que as das demais alunas pelo mesmo motivo. Se as costas estavam naquele estado, não era de se surpreender se o corpo inteiro daquela garota estivesse marcado.

            -Chega.

            A voz baixa e carregada de rancor o fez parar o que fazia. Deixou o pano em cima da mesa e parou de pé diante da garota.

            Viu que ela continuava a fitar o chão, evitando encará-lo. Isso o surpreendeu, era a primeira vez que a via desviar os olhos de alguém.

            Analisou-a melhor. Aquela situação acabou ajudando-o a entender muitos dos inúmeros mistérios sobre Sayuki Karin, como a extrema irritação que sentia ao simples toque de outra pessoa, a mania de querer esconder ao máximo o seu corpo e o medo que pareceu sentir quando ele a beijou. Agora, tudo fazia sentido. Vendo o estado em que ela se encontrava, ele finalmente percebeu que toda aquela agressividade dela era conseqüência de tantos maus tratos a que fora submetida durante anos. E que, por trás daquela “casca” ocasionada por anos de dor e sofrimento, parecia existir uma garota extremamente frágil.

            Fragilidade... Era só o que ele conseguia enxergar nela nesse momento. Estranhamente, preferiria mil vezes a ‘bad girl’ mal encarada, fria e arrogante do que aquela garotinha ferida e amedrontada que estava agora diante de seus olhos.

            Levou uma das mãos ao queixo dela, levantando delicadamente o seu rosto e obrigando-a a olhar para ele. Com a voz baixa, disse:

            -Você não tem porque abaixar os olhos diante de ninguém.

            -Não olhe para mim. – Ela falou, tornando a fitar o chão. O que era para ser uma ordem soou como uma súplica.

            Ele a fitou por mais um instante. Em seguida, tirou o casaco que usava e o colocou sobre as costas da garota. Ela se surpreendeu com o gesto e, mais ainda, quando Yuuhi disse:

            -Posso olhar agora? Já está coberta, não vejo razões para não olharem para você. E já disse que não tem porque ficar desviando os olhos de mim.

            Ele abaixou-se diante dela, mais uma vez levantando o seu queixo. Olhou-a nos olhos e continuou:

            -Escuta, você não fez nada de errado. Não tem motivo pra se sentir envergonhada.

            Ela o fitou em silêncio e Yuuhi admirou-se com aquele olhar. Estava bem diferente do que ela já havia demonstrado até então. Nunca poderia imaginar que algum dia pudesse ver fragilidade nos olhos de Sayuki Karin. Uma fragilidade estranhamente familiar.

Instintivamente, aproximou lentamente o seu rosto do dela. Desviou um pouco seu olhar, fitando os lábios que pareciam atrair os seus como um imã.

Conforme ele se aproximava, Karin sentia o coração acelerar e a respiração ficar mais pesada. Também por instinto, fechou os olhos. Porém, no mais leve toque dos lábios do rapaz nos seus, ela puxou bruscamente a cabeça para trás, afastando-se dele. Contudo, ainda não tinha aberto as pálpebras quando sentiu um leve e cuidadoso beijo em sua testa. Tal demonstração de carinho a deixou ainda mais confusa.

No instante seguinte, ouviu um sussurro próximo ao seu ouvido:

-Não precisa ficar com medo de mim, tá?!

Ela abriu os olhos e balançou a cabeça numa afirmação. Yuuhi sorriu e caminhou até o outro lado da mesa, onde puxou uma cadeira e se sentou.

Daí em diante, nenhuma palavra era ouvida naquela cozinha.

 

*****

            Era um apartamento pequeno, porém confortável. Mais do que o suficiente para um homem solteiro.

            O morador do local chegou. Tinha os cabelos curtos e castanho-claros e os olhos também castanhos, num tom levemente esverdeado – o que costumam chamar de “cor de mel”. Deixou as chaves sobre a bancada que dividia a cozinha da sala e dirigiu-se até uma poltrona, onde se sentou fechando os olhos. Em sua mente, a imagem daquela ruiva ainda estava nítida. Era bonita, inteligente, comunicativa, simpática... Era sensual, sem ser vulgar, tinha um bom papo... Realmente, o tipo de mulher que não se encontra todo dia.

            -Gostaria de vê-la de novo. – Disse para si mesmo, voltando a abrir os olhos.

            Olhou para o aparelho telefônico na mesinha ao lado e aproveitou para checar as mensagens de sua secretária eletrônica.

 

            -Tamaki? Aqui é a Hitomi, meu bem! Preciso te ver amanhã, pode ser? Kosugi-sama  tem um servicinho para nós. É coisa importante, então, se não quer deixar nosso chefinho nervoso, é melhor aparecer. Ao meio-dia, no local de sempre. Até amanhã, queridinho!

 

            Quando a mensagem terminou, Hayao de imediato a apagou, não parecendo muito empolgado o que ouvira. Levantou-se, indo direto para sua cama. Estava exausto!

            -Tô ficando velho pra isso de balada. – Resmungou, enquanto se deitava.

Não demorou a pegar no sono.

 

*****

            Terminando de estacionar o carro na garagem, Maaya apertou a tecla do controle para fechar o portão. Contudo, viu-se obrigada a abri-lo novamente ao avistar Hideki chegar correndo da rua.

            Os jovens entravam em casa, enquanto Maaya ia até o portão ao encontro do filho. Viu que ele respirava pesadamente e carregava uma expressão preocupada no rosto. Ia perguntar o que havia acontecido, mas ele se adiantou, segurando-a pelos ombros.

            -Fica calma, mãe.

            Maaya sabia bem que quando alguém lhe manda ficar calma, é porque o que tem a dizer certamente é uma ‘bomba’. E a reação mais lógica de quem escuta esse aviso inicial é exatamente o oposto: ficar ainda mais nervoso.

            -Certo. – Disse ela, tentando seguir o “conselho” do filho. – O que aconteceu?

            Hideki ainda ficou pensativo por alguns segundos, tentado escolher a forma ideal de contar o ocorrido.

 

*****

Os dois permaneciam calados há longos minutos. Até que Yuuhi resolveu dar um fim ao incômodo silêncio:

-Suas costas estão doendo ainda?

Ela moveu a cabeça numa negativa. Yuuhi insistiu:

-Maaya deve ter algum remédio ou pomada para queimaduras. Logo ela tá chegando aí e vai cuidar de você.

-Por que...

Ele piscou, curioso. Após uma breve pausa, ela continuou:

-Por que se preocupa tanto com uma pessoa que você odeia?

Ele sorriu de leve e balançou negativamente a cabeça, antes de explicar:

-Eu não odeio você. Achei que te odiasse, mas agora vejo que não é isso o que eu sinto.

-Sente pena, não é?!

-Não. Também não é isso o que eu sinto.

-Então, o que sente?

-Quer mesmo que eu diga?

-Aham.

Ele abaixou o rosto, parecendo pensar bem nas palavras que iria usar. Entretanto, o que saiu foi carregado de uma inusitada sinceridade:

-Acho que... Se não fosse pela Akemi... – Ele tornou a encará-la – Eu poderia dizer que estou começando a me apaixonar por você.

Os olhos dela se alargaram, num misto de surpresa e raiva. Era evidente que o rapaz estava querendo tirar uma com a sua cara. Certamente percebera que ela estava frágil e, com isso, mais vulnerável a esses tipos de brincadeira.

No entanto, ao prestar mais atenção à expressão séria com que ele a fitava, percebeu que ele não parecia estar fazendo uma piada. Mas aquilo não poderia ser verdade! Kawamoto Yuuhi era do tipo que não diria aquelas palavras tão facilmente a ninguém.  Então, se ele não dizia aquilo nem mesmo às garotas lindas com quem estava acostumado a sair, por que diria a alguém como ela?

-Por que está falando isso? – Ela resolveu tirar a dúvida.

Desviando seus olhos para o chão, Yuuhi sorriu de leve.

-Sei lá! Veio na minha cabeça e eu disse. Não sou de falar esse tipo de coisa.

-Devo me sentir “honrada” de ouvir essas palavras de Kawamoto Yuuhi? – Ela ironizou.

Ele balançou negativamente a cabeça.

-Esquece isso, tá?!

            Karin não disse nada e o silêncio caiu novamente entre eles. Logo, no entanto, começaram a ouvir vozes na sala. Aos poucos, conforme os recém-chegados iam subindo para seus quartos, as vozes foram ficando distantes, até sumirem por completo.

            Mais alguns minutos depois, Maaya chegou correndo à cozinha, sendo seguida por Hideki.

            Aflita, a ruiva abaixou-se diante de Karin, que de imediato desviou os olhos para o chão.

            -Ka... Sayuki? O que fizeram com você?

            Yuuhi tentou tranquilizá-la:

            -Calma, Maaya. O infeliz não chegou a fazer nada. – E ele voltou-se para Hideki – Conseguiu pegá-lo?

            O mais velho fez que não.

            -O maldito conseguiu fugir.

            Yuuhi ia dizer mais alguma coisa, porém parou ao ouvir a pergunta angustiada de Maaya:

            -Ele chegou a machucá-la?

            Vendo que Karin não parecia querer responder perguntas, ele o fez por ela:

            -As costas dela estão queimadas. Parece que os cabelos queimaram um pouco também.

            -Ai, Deus! – Suspirou Maaya. Por mais que se esforçasse, não conseguia fingir indiferença àquilo – Melhor levarmos ela pra um hospital.

            -Não precisa. – Anunciou Karin, com a voz baixa e ainda olhando para o chão.

            -Eu tenho uma pomada ótima para queimaduras no meu quarto. – Maaya informou. Embora ela própria estivesse visivelmente nervosa, tentava tranqüilizar a filha – E quanto ao cabelo, não se preocupe, meu anjo. Vamos dar um jeito nele também.

            Karin estranhou toda aquela preocupação. As últimas demonstrações de carinho daqueles três a deixavam confusa. Não estava costumada a ser tratada daquela maneira. Sentia medo de acreditar demais nas boas intenções deles, e um dia acabar ‘quebrando a cara’ novamente. Havia aprendido desde muito nova que a única pessoa em quem ela poderia confiar plenamente era nela mesma.

            Sentiu as mãos de Maaya segurarem as suas e as puxou de imediato, levantando-se da cadeira e anunciando:

            -Dispenso sua preocupação. Tudo o que eu preciso é tomar um banho e dormir um pouco.

            -Fará isso mais tarde. – Informou Hideki, chamando a atenção dos três para si – Enquanto os vestígios da violência ainda estão em seu corpo, você precisa ir à delegacia denunciar aquele infeliz.

            -Ele não chegou a fazer nada. – Informou Karin, olhando para Hideki.

            -Chama uma queimadura em suas costas de nada?

            -Não me importo com isso. Ele não fez o que queria.

            -Não fez, mas tentou. E não fez dessa vez, mas... – Hideki fez uma pausa, desviando por um momento os olhos para sua mãe e percebendo o terror estampado em seu rosto. Não queria ter que perguntar aquilo, mas sabia que era necessário. Respirou fundo e prosseguiu – Mas já chegou a fazer outras vezes, não foi?

            Karin ficou visivelmente perturbada com a pergunta. Começou a respirar pesadamente, levando as mãos à cabeça.

            -Eu... Eu não tive culpa! Sakuya diz que eu provoco, mas não é verdade! Eu nunca... Nunca... – O choro ameaçou vir à tona, mas ela o conteve.

            Aflita, Maaya a segurou pelos ombros e afirmou:

            -Por Deus, isso é um absurdo! Você nunca teve culpa de nada. Ele é que é um doente, um psicótico, um marginal que tem que pagar pelo que fez. Hideki tem razão: você precisa denunciá-lo!

            Karin a encarou:

            -Você não entende. Eu não quero que ninguém mais saiba sobre isso! Vão me fazer contar tudo, vão fazer perguntas... Vão querer me examinar para saber se digo a verdade... Vão mandar eu tirar a roupa, vão tocar no meu corpo, e eu não quero! Não vou deixar que façam isso comigo! Não vou!

            Cada palavra soava a Maaya como uma facada em seu peito, mas ela conteve-se para não deixar isso transparecer. Apenas respirou fundo e argumentou:

            -E vai deixar que aquele monstro fique livre pra fazer isso de novo com você?

            -Não. – Karin respondeu, convicta – Vou embora daqui.

            -E vai pra onde?

            -Pra qualquer lugar onde ele não me encontre.

            -Vai continuar fugindo a vida inteira?

            -Só por mais um ano. Quando fizer dezoito, vou ficar livre dele.

            -E vai passar mais um ano fugindo? Com medo? Se denunciá-lo, tudo isso acaba. Ele vai pra cadeia, e sua tia, por ser cúmplice nisso tudo, vai perder a sua guarda.

            -É, e vão me mandar pra um abrigo de menores.

            -Eu não vou deixar que façam isso. Confie em mim, Karin.

            -Por que eu deveria?

            -Porque eu quero o seu bem.

            A garota ficou em silêncio e abaixou a cabeça, parecendo refletir sobre tudo aquilo. Maaya, Hideki e Yuuhi a observavam, apreensivos sobre o que ela decidiria. Levou quase um minuto até que ela tornasse a levantar o rosto e, olhando para Maaya, perguntasse:

-Você vai comigo à delegacia?

            Ao mesmo tempo em que a fragilidade na voz da adolescente fazia o coração de Maaya doer, também lhe enchia de esperanças de conseguir se aproximar mais da filha.

            Sorrindo, a ruiva garantiu:

            -É claro que vou. Estarei ao seu lado o tempo todo.

            Enfim, Karin moveu a cabeça numa afirmação. Ainda segurando-a pelos ombros, Maaya saiu da cozinha, guiando-a até o carro.

            Assim que se viu a sós com Hideki, Yuuhi o surpreendeu com uma pergunta:

            -Tem alguma coisa para me contar sobre a Sayuki?

            Hideki olhou para o amigo, fazendo-se de desentendido:

            -O que eu teria para contar? Sei tanto sobre ela quanto você.

            -É, mas... Você e Maaya se preocupam demais com ela.

            -Impressão sua. Vou dormir, acho que você deveria fazer o mesmo. Boa noite.

            Dito isso, Hideki saiu. Yuuhi o seguiu com os olhos, intrigado. Mas logo deixou tais dúvidas de lado ao recordar-se do que dissera a Karin minutos atrás.

 

“Acho que... Se não fosse pela Akemi... Eu poderia dizer que estou começando a me apaixonar por você.”

 

            -Mas por que diabos eu disse aquilo? – Murmurou.

 

*****

            -Psiu! Here, baby!

            Manami terminava de subir as escadas quando ouviu o sussurro no corredor. Olhou ao redor, encontrando a dona daquela voz no banheiro.

            -Aqui, baby! – Miyu repetiu, fazendo sinal para que a amiga se juntasse a ela.

            Manami assim o fez, entrando no banheiro e fechando a porta. Viu Miyu sentada no chão, com um laptop aberto sobre o colo. Sentou-se ao lado dela.

            -O que está fazendo? – Indagou a mais nova.

            -Oh, nada demais! Apenas invadindo o sistema da empresa! ^^

            A naturalidade da resposta fez Manami piscar, pensando em o quanto era difícil imaginar que uma mulher tão bonita quanto Miyu também fosse tão inteligente em coisas relacionadas à informática (incluindo práticas hackers).

Ignorando os pensamentos da outra, Miyu perguntou:

-Mas, me diz, conseguiu escutar a conversa lá embaixo?

            -Consegui. – Manami suspirou, desanimada – Maaya acabou de sair com a monstrenga pra levá-la à delegacia. Parece que vai sujar pro lado do Minoru. Só espero que ele não inclua meu nome na parada. Se bem que, eu sou menor de idade... E, se der qualquer zebra, meu pai resolve pra mim.

            -But, o plano deu certo, né?!

            -Acho que sim. A monstrenga tá assustada. Ainda que Minoru vá pra cadeia, acho que ela vai ficar com medo de continuar morando aqui. Sem contar que deve estar morrendo de vergonha, e vai ficar ainda mais quando todo mundo souber o que aconteceu.

            Parando de digitar, Miyu a olhou.

            -Vai contar pra todo mundo?

            -Claro que vou! É só uma pena que Minoru não tenha terminado o serviço, assim ela estaria pior ainda!

            -Baby... Você é cruel!

            -Cruel? Cruel é eu ter que ficar sem meu Yuu-chan! E ela já passou por aquilo outras vezes. Uma a mais, uma a menos, que diferença faz? Dessa vez, ao menos, seria por uma boa causa.

            Miyu continuou a olhá-la em silêncio, impressionada com a naturalidade com a qual a amiga falava aquelas coisas. Sabia que ela própria estava longe de ser um exemplo como pessoa, mas tinha que assumir que Manami era bem pior do que ela. Simplesmente não parecia ver limites para alcançar seus objetivos.

            -Ah, mas o melhor eu ainda não te contei! – Manami continuou – Mesmo que ela resolva continuar por aqui, isso não vai durar muito tempo. Porque, com a denúncia, o Minoru e a mulher devem perder a guarda da Sayuki. Sendo assim, ela deverá ser mandada pra um orfanato ou coisa do tipo. E espero que seja um beeeem longe daqui!

            -But... Acha que pra isso precisava pegar tão pesado?

            -Claro que precisava, era ela ou eu! Bem, mas vou dormir. Boa noite, amiga!

            -Good night, my baby!

            Manami saiu do banheiro. Miyu ainda continuou mexendo no laptop por algum tempo, até que finalmente encontrou a informação que precisava. Sorriu.

            -Well... Acho que terei que usar de um pouquinho de crueldade também. Mas, como disse a Manami: será por uma boa causa! ^-^

 

*****

            Finalmente, Tachikawa Sayuri foi vencida pelo cansaço e acabou adormecendo.  Ainda deitado ao seu lado, Saito a admirava, enquanto passava de leve a mão sobre seu rosto.

            -Um anjo... – Dizia ele, quase que num sussurro – Tão linda e pura quanto um anjo. E parece que, quanto mais sofre, mais linda fica. Esse rostinho assustado, frágil... Acho que foi o que mais me atraiu em você, sabia?! Eu imagino a tristeza que terá ao ver seus companheiros morrendo mais uma vez, um a um. Nenhum deles será poupado, apenas você. Por que você será minha. Minha por inteiro!

            Beijando de leve os lábios de Sayuri, ele levantou-se da cama e saiu do quarto. Já estava quase amanhecendo e ele precisava voltar à República, antes que começasse a levantar qualquer suspeita.

 

*****

            Os primeiros raios de sol já começavam a iluminar a cidade quando elas finalmente chegaram em casa. Assim que Maaya parou o carro, Karin soltou o cinto de segurança, preparando-se para sair. No entanto, a ruiva rapidamente travou as portas do veículo. A adolescente a fitou, intrigada.

            -Precisamos conversar. – Explicou Maaya.

            Karin continuou a olhá-la em silêncio. Era notório que não estava em seu melhor momento para conversas, e Maaya percebeu isso. Contudo, o assunto em questão era algo que não tinha como ser deixado para mais tarde.

            Sendo assim, Maaya começou:

            -Enquanto seus tios não forem julgados, você ficará sob minha tutela. Mas isso é apenas temporário. Depois do julgamento, e com certeza da condenação deles, começará uma busca por um tutor. Como você não tem mais parentes vivos...

            Karin a interrompeu:

            -Ficarei sob tutela do governo. Mas eu fujo antes disso. Não vou deixar que me levem pra um abrigo.

            -Nem eu. Por isso, se você concordar é claro, amanhã mesmo eu entrarei com pedido para sua tutela definitiva.

            Karin não pareceu demonstrar muita surpresa ao ouvir aquelas palavras. Seu olhar era apenas de desconfiança.

            -Escuta, Shihara... Acho que você está se envolvendo no que não é da sua conta.

            -Se você está com medo de ser explorada mais uma vez, fique tranqüila que eu não pretendo mexer em nem um centavo de seu dinheiro. Vamos abrir uma poupança em seu nome, onde todo mês iremos depositar o dinheiro do tal seguro que seus pais te deixaram. Depois que fizer dezoito anos, você usará esse dinheiro no que bem entender.

            -Por que está se preocupando com isso? Só vai arranjar problemas e dores de cabeça.

            -Sayuki, entenda uma coisinha: querendo ou não, quando abri essa república, automaticamente passei a me responsabilizar por todos os jovens que vinham para cá. O que quero fazer por você não é nada demais. Apenas, digamos, regulamentar essa responsabilidade. Você não precisa me responder agora. Até porque, deve estar cansada, não é?! – E ela destravou o carro, abrindo sua porta – Vamos entrar, você toma um banho, come algo e tenta dormir um pouco, tá?! Mais tarde, ou amanhã, conversaremos novamente sobre isso.

            Sem responder uma única palavra, Karin também saiu do carro. As duas entraram em casa e subiram as escadas. Antes que Karin entrasse em seu quarto, Maaya a impediu, dizendo:

            -Você não vai conseguir descansar ficando aí. Já está de manhã e logo as outras meninas começarão a levantar, fazer barulho...

            -E onde você sugere que eu durma? – Questionou Karin.

            Maaya fez sinal para que a garota a seguisse e esta, ainda desconfiada, assim o fez. Pararam ao final do corredor, onde havia uma porta que estava constantemente fechada. Maaya a abriu, revelando uma escada. Subiu, puxando Karin pela mão, até chegarem em um espaçoso quarto.

            Karin olhou surpresa para aquilo. Sempre soubera da existência de um sótão naquela casa, mas nunca poderia imaginar que ali houvesse um quarto.

            Junto à parede, do lado direito, havia um grande guarda-roupa. Mais a frente, ainda do lado direito, uma porta para um banheiro. Do lado esquerdo existia uma penteadeira e algumas estantes repletas de livros. À frente da porta, bem ao centro do quarto, havia uma cama de casal, com a cabeceira virada para uma grande janela. Olhando por aqueles vidros, Karin percebeu que a visibilidade era total, enquanto que, do lado de fora, quem olhasse para aquela janela não conseguia enxergar absolutamente nada do que tinha lá dentro.

            Diante do olhar curioso que a garota lhe lançou, Maaya explicou:

            -Montei esse quarto para ser meu, mas depois acabei achando melhor dormir lá embaixo, junto com as outras meninas. Aqui eu me sentia um pouco distante de todos e, quando se mora em uma casa cheia de meninos e meninas entre quinze e vinte e um anos, é sempre bom ficar por perto e de olho, né?! Nunca se sabe o que eles podem aprontar! – Sorriu de leve – Você deve estar louca por um banho, não é?! Tem toalhas limpas no armário. Enquanto isso eu vou lá embaixo trazer algo para você comer.

            Karin aceitou a primeira sugestão e começou a caminhar em direção ao banheiro. Mas negou a segunda:

            -Não precisa, estou sem fome.

            E fechou a porta do banheiro. Maaya deitou-se na cama, fitando o teto, pensativa. Ela própria não acreditava no quanto conseguira se manter forte durante as últimas horas, mesmo ao ouvir todo o relato de sua filha na delegacia.

Agora, porém, repassando aquilo tudo em sua mente, não pôde evitar que algumas lágrimas viessem à tona.

 


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