A Pedra Vermelha escrita por Cambs


Capítulo 12
XI. Sonhos




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— Levante um pouco mais os braços e os mantenha junto ao corpo — Allan demonstrou o que dizia, com Carfax acompanhando cada gesto. Ela concordou e os reproduziu com uma destreza que fez Allan sorrir abobado. Eles voltaram a lição desde o começo novamente e agora Carfax conseguiu um resultado melhor. — Está ótimo, mas ainda precisa de mais força se quiser que o golpe funcione. Vamos lá, pode me machucar.

— Certo — Carfax balançou a cabeça e respirou fundo antes de refazer os movimentos. Não conseguira. Teve uma ótima precisão, mas não fora forte o bastante. Allan suspirou e passou a mão pelos cabelos, ela certamente não o atingiria mais forte com medo de machucá-lo, e tinha quase certeza de que não conseguiria convencê-la do contrário.

— Uma pausa? — Allan sugeriu.

— Está bem — Carfax sorriu. Depois de Allan passar a mão por sua cintura, ela encostou a cabeça no ombro dele enquanto andavam e permaneceram assim até que se sentaram na grama da margem de uma das lagoas. — Como foi o treinamento?

— Foi exemplar — Allan sorriu e então beijou a garota, voltando a encarar a água logo depois, perdendo-se nos pensamentos que ele próprio não entendia. Ele apenas voltou a si quando Carfax o chamou e o questionou sobre o comportamento de Meds.

— Liem, quieto! — Lyra gritou para o dragão, que simplesmente a ignorou e continuar a grunhir para o céu.

— O que é agora? — Shane perguntou.

— Acho que eles descobriram algo que não gostaram — Brandon respondeu enquanto encarava Kórin. — Só não me pergunte o que é.

— Liem! — Lyra gritou novamente, conseguindo agora fazer com que o dragão a olhasse. O animal aproximou-se da garota e abaixou a cabeça até deixar os olhos na altura dos dela. — O que é? — Lyra engoliu em seco depois de perguntar. Em resposta, Liem rosnou e deitou-se, deixando claro que, se Lyra quisesse descobrir o que era, teria que montá-lo e voar. Ela não fora a única que entendeu o recado.

— Não — Brandon foi o primeiro a se pronunciar.

Lyra passou a mão pelos cabelos. Sua curiosidade era a única coisa mais forte que seus medos, inclusive o medo de altura. Mas ela não poderia voar, mesmo que quisesse — o que não queria —, era perigoso demais.

— Está brincando não é? — ela encarou o dragão, com a mente dividida entre a curiosidade e o medo, e, no fundo, também lutando contra a razão. Deveria ficar ali, evitando que mais alguém se perdesse. Lyra suspirou e caminhou até Liem, com cada passo sendo observado, até que encostou a mão na base do pescoço do animal, subindo até o topo de sua cabeça, passando a encarar seus olhos. — Pode esperar até a noite? — ela sussurrou. — O primeiro turno é meu, assim que eles dormirem, eu vou para onde quer que seja, certo? — Liem apenas resmungou alto e levantou a cabeça para se afastar das mãos de Lyra, virou-se de costas e deitou, passando a cuspir labaredas de fogo em cada mosquito que passava em sua frente.

— Melodramático igual a dona — Allan revirou os olhos.

— Pelo menos os dragões pararam — Kerry disse. — O que disse para Liem?

— Nada demais — Lyra deu de ombros e voltou para seu lugar no treinamento, parando na frente de um Shane de sobrancelhas arqueadas. — O que? Quer levar para casa?

— Não consumo coisas de segunda categoria, mas obrigado pela oferta — Shane sorriu irônico e revirou os olhos quando Lyra levantou o dedo do meio. — Deixe de ser infantil.

— Só quando você deixar de ser idiota — Lyra pendeu a cabeça para o lado. — Sua vez de começar.

— Primeiro as damas.

— Exatamente por isso que você pode começar.

Fazendo uma careta, Shane movimentou-se até conseguir atacar Lyra, que por centímetros não conseguiu desviar. Com o braço esquerdo doendo, ela começou a travar cada investida de Shane com os braços, xingando mentalmente cada vez que seus membros se chocavam, não queria nem saber com quantos hematomas apareceriam nas horas seguintes, já tinha áreas vermelhas espalhadas por todo o braço. Odiava os treinamentos, de verdade, se pudesse não treinava, mas o fato de depender de Allan ou qualquer outro guardião para manter-se salva era praticamente humilhante demais para Lyra. Perdida nos pensamentos e ofensas que dava a si mesma, ela acabou sendo derrubada por Shane.

— Estamos no cinco à zero? Parei de contar — Shane sorriu.

— Porque não vai contar carneirinhos ou qualquer outra coisa Kinney? — Lyra revirou os olhos e jogou a cabeça contra a grama, limpando o suor da testa com as costas da mão. Não conseguia nem levantar os braços sem que eles pesassem. Ou era muito fraca e sensível, ou estava mais cansada do que imaginava.

— Seja, pelo menos, uma boa perdedora — Shane estendeu a mão para Lyra, que só depois de suspirar pesadamente aceitou a ajuda para se levantar. — Vamos outra vez?

— Se quiser treinar mais uma vez, peça para Brandon ou Kerry.

— O que vai fazer?

— O que faço de melhor.

— Reclamar? — Shane arqueou uma sobrancelha.

— Dormir, seu engraçadinho — Lyra sorriu irônica antes de virar as costas para Shane. Ela foi, arrastando as pernas, até os sacos de dormir, para, então, jogar-se em cima de um deles e arrumar-se para dormir. Fechou os olhos e deixou a mente vagar, tentando fazer o que queria, mas tinha plena certeza que não conseguiria. Como queria não ser tão curiosa.

Não se lembrava de ter adormecido, mas essa parecia ser a única explicação plausível para a drástica mudança de ambiente. Ou então fora abduzida. De qualquer maneira, Lyra caminhava lentamente, passando os dedos pela parede de tijolos gelados e expostos, enquanto os passos ecoavam naquele chão que, deferentemente da parede, era liso e sem nenhuma imperfeição refletindo em sua negritude. Certo, menos pela parede. Não conhecia o lugar, costumava guardar na memória túneis e arcos, mas realmente não sabia que túnel era aquele e nem para onde ele estava indo. Escutava alguns barulhos, mas todos bem baixos tornando impossível descobrir o que os causava. Continuou seguindo em frente, até que o vento e o final do túnel começaram a aparecer. Uma luz no fim do túnel. Estou morta? A luz começou a ganhar tons de verde e os barulhos tornaram-se mais altos, parecendo serem feitos por animais, pássaros provavelmente. Lyra continuou caminhando, até que resolveu ir mais rápido, com a curiosidade crescendo a cada passo. Finalmente saindo do túnel, piscou várias vezes até fazê-los se acostumar com a nova iluminação, e, quando conseguiu ver, não sabia estranhava ou se sorria.

— 28e Avenue, Sainte-Marthe-sur-le-Lac — sussurrou.

A pequena casa branca continuava do mesmo jeito. Lembrava-se de ter viajado para aquele lugar duas ou três vezes, com o pai e com a tia. Da primeira vez, perguntara por que não ficaram no centro de Montreal, mas então vira a floresta ao lado da casa e, quando descobriu uma trilha, não queria mais voltar para Vancouver.

Mas a questão era: por que estava ali? Com tantos lugares para se sonhar, porque justo ali? Eram suas lembranças de tempos felizes, não sabia nem mesmo que ainda conseguia identificar os lugares pelo qual viajara com seu pai e sua tia. Se fosse para sonhar com um lugar para onde viajara com o pai, por que não sonhar com Siracusa? Pelo que conseguia recordar, fora difícil voltar ao Canadá depois de conhecer aquela parte da Itália, e ela só tinha uns cinco anos.

— Está atrasada — um homem apareceu na porta da casa. Lyra também o conhecia. Os cabelos escuros bagunçados no topo da cabeça, os olhos azuis, o corpo esguio e os dedos longos que quase sempre iam para o cabelo em uma mania comum, a voz de veludo com notas de desafinação ao fundo e a barba rala no rosto pálido de queixo forte. Continuava o mesmo. Pai.

— Como? — Lyra perguntou, entrando um estado emocional que não sabia se era bom ou ruim. Na verdade, ela não sabia de mais nada.

— Desculpe se tenho mais coisas para fazer do que apenas atendê-lo, Dominic — para a surpresa maior do sonho, Tryna apareceu atrás de Lyra, usando um vestido preto esvoaçante e longo, que passava por cima da grama enquanto a ruiva andava em direção a casa. O que Tryna fazia ali? E pior, o que estava fazendo com seu pai?

— Ele ainda...? — Dominc perguntou, observando Tryna parar pouco abaixo dele.

— Sim, ainda está foragido, mas certamente fraco demais para tentar alguma coisa pelas próximas décadas, principalmente estando sozinho — Tryna suspirou. — E Hanna?

— Sumiu, não consigo encontrá-la em lugar nenhum.

— E a garota?

— Está com Angie em Vanvouver. E é Lyra.

— Bonito nome, mas vamos logo ao assunto principal. Você disse que tem um presente — Tryna cruzou os braços. Onde estavam os sorrisos irritantes dela?

— Presentes são, geralmente, bons. O que tenho não é muito bom.

Lyra observou seu pai passar as mãos pela calça em busca de algo. Céus, como ela queria saber o que estava acontecendo ou simplesmente abraçá-lo, deixando levar-se pela saudade que sentia e toda sua explosão de sentimentos acumulada no fundo de sua mente.

Dominic finalmente achou o que queria. Do bolso traseiro de sua calça, ele puxou um pedaço de papel, completamente amassado e amarelado, com as bordas queimadas, e, de um lado, possuía linhas pretas andando em harmonia, uma grafia provavelmente. Ele entregou o papel à Tryna e Lyra parou atrás da mulher para conseguir ver.

Era um bilhete, com uma caligrafia quase perfeita desenhada em preto, formando uma linha de letras até que a frase fora formada, pela letra, Lyra achava que quem havia escrito era uma mulher, ou, então, fora um homem altamente caprichoso. De qualquer forma, a frase ali escrita chamou sua atenção.

“Não possuo arrependimentos em lhes mostrar apenas o começo”

— Quem lhe entregou isso? — Tryna perguntou, ainda olhando para o bilhete. Ela parecia perturbada pelo bilhete, mas tentava não demonstrar, ficara tensa após ler e isso era visível até mesmo para Dominic, que não estava ao lado de Tryna.

— Não faço ideia, simplesmente apareceu na minha porta junto com um dragão — Dominic limpou a garganta antes de falar. Estranho. Pelo que se recordava, sempre que seu pai limpava a garganta antes de falar, era sinal de que estava mentindo. Ao menos era o que sua tia falava.

— Um dragão? — Tryna arregalou os olhos. — E onde ele está?

— No meio da floresta, fazendo sabe-se lá o que, só vi algumas árvores serem derrubadas — Dominic apontou com o queixo para a floresta ao lado da casa. — Não me olhe assim, o que você queria que eu fizesse?

Tryna revirou os olhos e suspirou, pendendo a cabeça para o lado enquanto olhava para a floresta pintada de laranja e marrom pera época do ano.

— É um dragão negro? — ela perguntou.

— É — foi a vez de Dominic suspirar. — Parece ser novo. O dragão é de Caliro, não é?

— É, é sim.

— Certo, vocês podem me explicar o que está acontecendo agora? — Lyra cruzou os braços, pensando seriamente em soltar uns palavrões.  Essa vontade de intensificou quando nem Tryna nem seu pai responder sua pergunta. Na verdade, eles estavam alheios a ela, ambos olhando para a floresta com um ar de pesar, como se tudo do que haviam falado fosse ruim. Talvez fosse mesmo, a julgar pela expressão de seu pai. — Oi — Lyra cutucou Tryna, mas a mulher pareceu não sentir. A garota só parou de cutucar e bufar quando Liem apareceu. — Mas o quê?

— É esse? — Tryna perguntou.

Dominic apenas maneou a cabeça em concordância, começando a pensar em possíveis desculpas para explicar as árvores caídas. Ah, como isso dava trabalho, santo Deus.

— Viu o que ele tem no pescoço? É uma coleira com dois símbolos — Dominic disse, voltando seu olhar para Tryna. — Um é o das joias, o outro é o brasão de minha família.

— O brasão dos Moonthrough? — Tryna pareceu surpresa. — Porque ele teria o brasão da família? É algum tipo de pedido de desculpas a você?

— Duvido que seja, além do que, você viu o bilhete. E o dragão veio sozinho. Caliro não está pedindo desculpas.

— Quem é Caliro? — Lyra perguntou, já irritada. Ser ignorada não era algo que ela gostava, mas, novamente, fora exatamente isso que acontecera. Então, ela estava ali apenas de observadora, maravilha.

— Não é uma surpresa — Tryna suspirou outra vez. Trocara os sorrisos pelos suspiros.

Por um momento, Lyra teve sua visão embaçada e pensou que estava com tontura pela repentina vertigem que sentiu, mas não estava. A visão foi embaçando cada vez mais até que ela se viu acordada e enrolada entre dois sacos de dormir, com a respiração alta e os dedos das mãos gelados. Acordara. Acordara.

— Seu modo de dormir é realmente fascinante — a voz grave e carregada de sotaque inglês de Shane foi a primeira coisa que Lyra ouviu.

— Gostou? Quem sabe um dia eu te ensino — ela revirou os olhos e livrou-se dos sacos de dormir. Sentou-se e esticou os braços para se espreguiçar. Já havia anoitecido e tinha certeza de que seu turno começaria daqui a pouco.

— Parece cansada, estava correndo atrás de homem no sonho também? — ele estendeu a mão para ajudar Lyra a se levantar, curvando os lábios em um misto de sorriso e careta de dor quando a garota ignorou sua mão e deu-lhe um chute na canela. — Quanta hostilidade — Shane resistiu ao impulso de pular em um pé só e esfregar o local atingido, mas, desgraça, estava doendo;

— Sua sorte é que eu gosto demais desses seus olhos para impedir que eles sejam transportados para seus herdeiros — Lyra sorriu irônica e pegou impulso com as mãos para ficar de pé, para então alisar a roupa e bocejar. — Perdi alguma coisa?

— No momento, apenas o meu amor.

— Nada de importante. Bom — ela deu de ombros e procurou Liem, para encontrá-lo fazendo exatamente a mesma coisa que fazia na hora em que ela fora dormir. Lembrou-se do sonho e quis perguntar para Allan se ele sabia de alguma coisa, mas certamente teria mais perguntas do que respostas, mesmo que ela conhecesse Allan desde que tinha quatro anos. Mas, de qualquer maneira, enterraria o sonho em sua mente e esperaria por mais algumas horas até encontrar-se com algo novo, afinal ela ainda tinha que voar com Liem. Voar, maravilha. Ela ignorou o arrepio.

Caminhou arrastando os pés para o local onde a fogueira estava montada e acessa e sentou-se ao lado de Carfax no tronco que usavam como banco.

— Boa noite luazinha — Carfax sorriu e deu um peteleco no nariz de Lyra, fazendo a garota revirar os olhos.

— Luazinha? Sério?

— Prefere Moony?

— Adorei luazinha.

Carfax riu e balançou a cabeça em negativo, batendo a palma da mão levemente no joelho de Lyra. Elas sorriram, ah, como parecia ser fácil antes de tudo começar. Lyra desejava voltar no tempo, desejava não ter seguido aquele gato branco, bonito e peludo até os arbustos, desejava ter fugido quando a névoa negra começou a aparecer, mas, de acordo com seu sonho, seu passado tendia a ser tão confuso quanto seu futuro. Ah maravilha, grande, grande, grande maravilha.


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Notas finais do capítulo

Recadinho procês::: http://jewelsofdeath.tumblr.com/post/36457337248/aviso-declaracao-confissao-whatever



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