Meu Bônus Infernal escrita por Mandy-Jam


Capítulo 79
Cicatriz


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura a todos!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/214827/chapter/79

POV Ares

 

Acordei lentamente, sentindo todo meu corpo latejar.

A dor no meu tronco indicava que Ártemis tinha quebrado minhas costelas. Se meus olhos estivessem abertos e se minha cabeça não estivesse ameaçando explodir, eu os reviraria em desdém. A irmã de Apolo não fora a primeira a me dar uma surra, e provavelmente não seria a última.

Virei-me de forma e ficar de costas para baixo, e ouvi o burburinho do ambiente parar. Alice entrou no meu campo de visão, primeiro como um borrão indefinido e depois com ganhando definição.

— Como você está? — Perguntou a filhinha de Hermes. As olheiras debaixo de seus olhos e a pele mais pálida que o normal me lembraram que ela ainda estava se recuperando do acidente.

— Com fome. — Resmunguei de mau humor. Estiquei-me um pouco e beijei seus lábios, para logo depois deixar meu corpo tombar na cama novamente — Com muita fome.

— Você levou uma surra até ficar inconsciente e tudo que está sentindo é fome? — Questionou sem acreditar.

O que ela esperava que eu dissesse? Que eu sentia que um trator tinha passado por cima de mim? Preferia fingir que aquela luta nunca tinha acontecido, e falar o mínimo possível sobre os detalhes da minha vergonhosa derrota.

— Ele está bem. — Declarou uma outra voz. Franzi o cenho e virei o rosto para o lado. Hermes estava sentado em uma cadeira, ao lado de Alice — Um pouco mais feio do que o normal, mas está bem.

— Olha só para você, sentadinho aí. — Zombei erguendo as sobrancelhas — Está fazendo o quê? Tomando conta para que eu não pare de respirar enquanto durmo?

Hermes sorriu torto, com maldade.

— É claro que eu faria isso. — Concordou — Me importo muito com você.

— Então pode se mandar daqui e voltar com alguma coisa para eu comer. — Ordenei remexendo-me com dor — E vê se não pede para a sua esposinha de brincadeira. Ela cuspiria na minha comida.

— Eu não vou pegar nada para você. — Rebateu — Já te ajudei o bastante te trazendo até aqui.

— Me carregou nos seus braços como uma princesa? Que cavalheiro.

— Alice queria te deixar no gramado. — Contou apontando para Alice. Estreitei meus olhos para ela, sem esperar por aquilo.

— Ah, muito obrigado, Kelly.

— Fui que falei para vo-! — Ela voltou-se com raiva para Hermes, mas o deus a interrompeu.

— Ei! Eu e sua mãe não te ensinamos a mentir. — Alertou balançando a cabeça — Você devia ter mais um pouco de empatia com os outros, Alice.

— Quanto tempo eu dormi? — Perguntei coçando a cabeça.

— Algumas horas. — Respondeu Alice — Mas a luta só durou 3 minutos.

— Dois minutos e 16 segundos. — Corrigiu Hermes, e encolheu os ombros — Mas quem se importa, não é mesmo? Diferentes de certas pessoas, — Olhou sugestivamente para Alice —demonstrações de violência gratuita não me animam.

— Ah, você é um cretino mesmo, não é? — Rebateu Alice, irritada.

— Por falar em cretinos, Apolo tirou uma foto sua, derrotado, e provavelmente espalhou pela internet do Olimpo. — Comentou cruzando os braços. A raiva no meu rosto falou por si só — Eu tentei impedir, mas foi em vão.

— Vou quebrar a cara daquele afeminado depois. Por sinal, onde ele está?

— No quarto debaixo. — Respondeu Hermes — Eu apaguei ele.

— Por quê?

— Tentou assediar Alice.

— Ah, ótimo. — Bufei e olhei para Kelly, que dividia o foco cada hora com um de nós — Como você está, benzinho?

— Melhor do que você, aparentemente. E considerando que eu voltei dos mortos, isso quer dizer muita coisa. — Alice esticou a mão e tentou tocar com gentileza meu olho roxo, mas acabou provocando dor. Recuou a mão ao ouvir meu gemido — Desculpa.

— Lesada. — Resmunguei sentindo meu corpo todo gritar comigo — Quando eu vir aquela garota de novo, eu juro que vou atravessar a minha lança na-

— Deuses! Sorri. — Alice arregalou os olhos para mim. Franzi o cenho para ela.

— Eu não quero sorrir, Kelly. — Ela insistiu e eu acabei cedendo. Mostrei meus dentes para Alice, que respondeu arfando.

— Você está banguela! — Exclamou com um misto de surpresa, divertimento e horror. Da cadeira, Hermes gesticulou incomodado.

— Alice, para que você foi falar? Eu queria ver até onde ele iria sem perceber.

Soquei o colchão com raiva, fazendo Alice quicar ao meu lado. Ergui meu dedo indicador para Hermes, que fitou-me de volta com atenção.

— Você e Ártemis tem sorte de eu não poder usar meus poderes divinos. Assim que eu estiver livre dessa maldita aposta, eu vou usar o crânio dos dois para beber cerveja, se prepare, otário! — Ameacei rosnando. Hermes, no entanto, não se abalou. O deus inclinou-se para frente cheio de curiosidade e confusão em seu olhar castanho.

— Como é? — Perguntou sem entender — Você não pode usar poderes? Por que isso?

Hesitei por um instante.

Depois de considerar a situação que havia criado, decidi que estava com dor demais para inventar uma história e que, no fundo, não me importava com as consequências.

— Eu apostei com a sua filha. Se eu usar meus poderes volto para casa. — Poderia ter parado aí, mas continuei sem pensar — E se eu ganhar, escolho a roupa dela por uma semana.

Os olhos castanhos de Hermes se afiaram como facas e miraram em mim. Achei de primeira que eu seria o foco de seu descontentamento, mas ao vê-lo voltar o rosto para Alice, notei que estava errado. Ela engoliu em seco, e se ajeitou na cama, puxando o cobertor sobre seus ombros como se ele pudesse protegê-la da bronca que estava prestes a levar.

— Será que você nasceu sem aquela voz interna que diz quando alguma coisa é uma má ideia? Isso, em algum momento, pareceu certo para você, Alice? — Reclamou, nada contente — O que deu na sua cabeça para aceitar uma aposta indecente dessas com alguém como Ares?!

— Não se preocupe, ele vai perder. Não vai ficar sem usar os poderes. — Argumentou, mas ele não parecia nada convencido. Alice também não tinha passado muita certeza em sua voz, o que me arrancou um sorriso dolorido.

— Não vou não, quero demais ver você usando biquíni enquanto faz o almoço. — Impliquei e Alice fez uma careta para mim. Os olhos de Hermes faiscaram sobre a filha, fazendo-a ficar sem jeito.

— Argh, eu falei para a sua mãe que não era para deixar você namorar até os 30, mas ela não me ouviu! Olha só no que deu. — Reclamou descontente — Uma fila de garotos inúteis e agora isso.

— Você parece Deméter reclamando com Perséfone. — Intervim ao ver que Alice estava incomodada. Hermes voltou o olhar para mim.

— A diferença é que eu tenho razão.

— Razão em reclamar com ela, enquanto ainda está se recuperando do veneno? — Rebati com firmeza o suficiente para que ele se desarmasse por alguns instantes.

— Não me diz como cuidar de minha filha. — Retrucou.

— Se você soubesse cuidar de alguém, sua namorada já teria se divorciado. — Pude ver que atingi um ponto sensível pela forma como o rosto de Hermes ficara vermelho. Resolvi continuar enquanto ele ainda não conseguia pensar em uma resposta — Por que você não levanta e vai atrás do seu irmão? Diz para ele que a minha mão tá coçando para quebrar aquele rostinho de boneca dele.

— Eu não sou seu escravo, Ares. — Respondeu amargo — Muito menos a sua mãe para agir com naturalidade toda vez que você faz algo idiota como envolver a minha filha em uma aposta dessas.

— Eu quero envolver a sua filha em muitas outras coisas. — Respondi sorrindo para ele. Hermes se colocou de pé, tomado de raiva — Uh, durão, hein? Estou falando sério quando digo que deveria sair daqui. Eu sei que somos gregos e que somos bem abertos para um monte de coisas, mas ficar sentado nessa cadeira olhando eu e Alice na cama é um pouco Édipo demais, não acha?

— Escuta aqui-!

— Ele só está querendo te irritar. — Alice interrompeu-o. Hermes olhou para ela, ainda furioso, e a semideusa revirou os olhos — Não está vendo? O idiota está sorrindo e tudo. Ignora ele.

Senti-me frustrado por Alice estar estragado a minha diversão. O deus dos ladrões pareceu amenizar um pouco sua raiva e seus músculos antes tensos relaxaram. Fez um barulho pelo nariz em puro desdém, enquanto olhava para mim.

— Olha para você. Não consegue nem se levantar, que dirá fazer alguma coisa com a minha filha. — Falou e minhas narinas se dilataram com desgosto — Você fala demais, Ares.

Ergui o dedo do meio para ele, que prendeu o riso sem dar importância.

— Por que não entrega isso para Apolo, com todo o meu amor? — Sugeri mau humorado — Já que é o deus dos mensageiros, é seu dever. Desce, entrega para ele e fala exatamente onde ele pode enfiar por ter tirado aquela maldita foto.

— Quanta maturidade. — Assentiu com a cabeça e depois olhou para Alice — Acho que preciso conversar com você sobre escolhas e responsabilidade, Alice. — Ela suspirou com cansaço, e ele estreitou os olhos — Não pense que se livrou de mim tão fácil. Vou procurar a sua mãe e já volto. Ares, mãos longe da minha filha.

Imitei-o em implicância e Hermes saiu do quarto.

— Enfim a sós? — Disse ao ver Alice olhando-me de forma enigmática.

— Por favor, me convença de que meu pai está errado e que você não é uma má opção. — Pediu franzindo o cenho, como se ainda estivesse se decidindo. Parei por alguns instantes pensando nos argumentos que poderia usar, mas decidi só dar de ombros e sorrir para ela, sem mostrar os dentes. Alice respirou fundo e soltou o ar pesadamente — Ah, deuses. Estou perdida.

— Quer sentir uma coisa estranha? — Perguntei mudando de assunto.

— Acho que já senti coisas estranhas o suficiente por hoje.

— Passa a língua aqui. — Falei abrindo a boca e passando minha própria língua pelo espaço com os dentes faltando. Alice fez um “eca” alto e me deu uma careta — Não, é sério! A sensação é engraçada, passa a língua aqui. Vem, me dá um beijinho, boneca.

— Argh, você é nojento! Eu não vou fazer isso! — Protestou e eu me diverti com sua reação.

— Então me dá seu dedo. Vamos! É só um dedo! — Insisti pegando sua mão. Alice acabou cedendo depois que eu jurei não mordê-lo fora, e levei seu indicador até o local. Ela franziu o nariz, estranhando, e eu ri ainda com seu dedo na boca — Ai dizê qui ão é egau?

— Quê? — Perguntou puxando o dedo de volta. Alice limpou a baba em meu próprio braço, mas eu a ignorei.

— Vai dizer que não é legal? — Repeti. Alice afundou o rosto em uma das mãos, e permiti-se rir.

— Como você consegue estar feliz com dois dentes a menos? Eu ia estar chorando de nervoso, por parecer uma velha banguela. — Perguntou sem entender. Enlacei sua cintura fina com um braço e puxei-a contra mim.

— Como eu consigo? Bem, por dois motivos. Primeiro, porque eu não sou uma garotinha chorona que nem você, filhinha de Hermes. E segundo… — Gesticulei para todas as lesões visíveis, desde meu olho roxo até as costelas fraturadas e toda série de marcas que eu tinha pela minha pele — Isso tudo são cicatrizes, e cicatrizes contam histórias. Elas também fazem você entender que nem tudo pode ser apagado, e que nós levamos conosco das consequências das nossas ações por todo uma vida. Marcas nos ensinam coisas, nos fazem versões melhores de nós mesmos.

Encantada com o que eu dissera, os olhos de Alice brilharam para mim. Devo admitir que eu gostava de guardar sabedoria para momentos raros assim, porque chamava mais atenção. Ninguém ficava impressionado quando Atena dizia algo inteligente, ela já fazia isso o tempo inteiro. Mas eu? Não. Eu gostava de doses de inteligência da hora certa.

— Uau. — Fez, impressionada — Isso foi realmente bonito. É sério?

— Não. — Menti rindo com o nariz — Isso é só um monte de baboseira filosófica que eu inventei para você ficar me olhando com esses olhinhos brilhantes. A verdade é que as garotas se amarram em cicatrizes, isso mostra que o cara é homem de verdade.

Alice revirou os olhos, mas acabou estendendo a mão e tocando uma das minhas cicatrizes com a ponta dos dedos. Traçou o desenho e eu fingi que sua pele não estava gélida como a de um cadáver.

— Homem de verdade. — Repetiu em um murmuro, pensativo — Eu até que gosto das suas cicatrizes, para falar a verdade.

— Claro que gosta. Eu disse que as garotas se amarram. — Acompanhei seu dedo com o olhar — Essa aí que você está tocando foi Aquiles. Foi quando o filha da mãe atravessou uma lança no meu peito. — As sobrancelhas de Alice se arquearam, e ela se debruçou por cima de mim para ver de perto uma prova de que Aquiles realmente existiu — Curiosamente, Atena fez a mesma coisa, centímetros mais para o lado. Mas essa história é outra.

— E essa? — Perguntou descendo o dedo até a altura do meu umbigo. Estiquei o pescoço sentindo a dor das costelas quebradas — Ela faz um zigue-zague.

— Um ciclope imbecil me esfaqueou duas vezes. — Contei lembrando-me da briga. Estava estampado no rosto dela que ela queria saber o motivo — Porque eu estava tentando arrancar o olho dele com uma colher.

Recuou imediatamente o dedo de lá, e fez uma cara de estranhamento para mim. Alice tocou novamente a minha pele e foi descendo. Resolvi implicar um pouco mais.

— Está indo para uma parte sensível, benzinho. — Sorri maldoso, e ela parou.

— Não é isso que eu quero. — Falou, e se não estivesse mal, apostaria que seu rosto teria corado — Eu ainda não me sinto bem.

— Eu sabia que era mais do que você podia aguentar. — Impliquei escapando a mão para baixo e beliscando sua bunda. Alice deu um pulo na cama, e bateu em mim. Um tapa simples, mas bem em cima das costelas quebradas. Arfei de dor, e fechei os olhos com força. Alice passou a mão devagar por lá.

— Desculpa! Eu esqueci, desculpa! — Falou ao me ver com dor. A semideusa esticou-se para frente e beijou o local atingido — Pronto, viu? Passou, passou.

— Se esse veneno não te matar, eu te mato. — Falei gemendo.

— Ahm, onde estávamos mesmo?

Seu dedo tocou uma marca funda e torta na altura do meu quadril. Seus olhos se demoraram ali, e embora ela estivesse bem próxima da minha virilha, aquilo não estava me deixando animado.

— Essa não é lá grande coisa, deixa para lá.

— Mas é uma das piores. — Falou confusa — Não tem uma história fascinante por trás?

— Tem. — Assenti com a cabeça, fitando o teto com incomodo — Meu pai me odeia e lançou um raio em mim.

— Zeus fez isso com você? — Perguntou, surpresa. Assenti com cabeça — Como um pai pode fazer algo assim com um filho?

— O que eu posso dizer? Eu e ele não nos damos tão bem assim. — Falei vendo seus olhos castanhos encarando o resultado da ira de Zeus. Como se lesse seu semblante, suspirei — Olha, eu sei o que você está pensando. Tenho muitos motivos para xingar o bastardo do Hermes, mas uma coisa ele faz direito. Ele é um bom pai. Ele não te odeia, só pega no seu pé porque acha que é o melhor a se fazer.

— Eu não estava pensando nele. — Negou Alice com a cabeça. Franzi o cenho, sem entender a quem ela se referia — Will.

Assenti com a cabeça, e senti o clima ficar mais pesado.

— Bem, ao menos ele não tem raios. — Brinquei.

— Não. — Concordou sem achar engraçado. Não pude deixar aquilo quieto.

— Tá bom, conta para mim. O que houve? — Perguntei franzindo o cenho — Ele fez alguma coisa com você?

Alice abriu a boca, mas deteve-se por um instante, como se não tivesse certeza se poderia contar para mim. Por fim, fiquei aliviado em vê-la confiar o suficiente para falar sobre o assunto.

A notícia me pegou de surpresa. Alice contou sobre o medo do escuro e de onde ele vinha, e de todas as inúmeras vezes em que Will e ela discutiram feio. Contou sobre todos os castigos, sobre como sua mãe tentava amenizar as brigas dos dois, e sobre como o detestava. Ouvi tudo com uma paciência que não era do meu costume, e incentivei-a a continuar falando.

Quando terminou, Alice só repousou a cabeça sobre meu peito devagar e ficou ouvindo meu coração bater. Batia forte como um batalhão marchando, tamanha raiva e desgosto que havia me preenchido.

Lembrei-me de Zeus, e de como sempre achava que violência e medo eram as melhores formas de educar alguém. Lembrei de todas as vezes que temi buscar ajuda do meu pai para qualquer coisa, achando que levaria uma bronca por algo que não fui eu que fizera. Lembrei de como nós nunca tivemos um momento realmente bom como Apolo e Ártemis sempre tinham com ele.

Nunca sentei ao lado de meu pai para conversar sobre um passatempo. Nunca recebi um afago na cabeça ou um olhar de orgulho.

— Ele não te merece. — Concluí beijando o topo da cabeça de Alice — Aquele infeliz.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O que acharam?

Estou sentindo falta dos reviews! Por favor, não deixem de mandar nem que seja para dizer "show". Eu adoro o feedback de vocês.

Beijos e até o próximo capítulo!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Meu Bônus Infernal" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.